Ilustração: Carvall
Abuso, não nego, e não ligo pro TSE
Sete de Setembro mostra que Bolsonaro não terá problemas em praticar abuso de poder político e econômico como tática eleitoral
Quando muitos temiam que crimes contra o estado de direito partissem de seus lábios, Jair Bolsonaro inverteu o jogo. Contra as urnas e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), nada disse. Contra o Supremo, falou, quando muito, por elipses, pausas e símbolos. Seu máximo foi puxar, discretamente, uma vaia para o Supremo Tribunal Federal (STF), mencionando o tribunal e fazendo uma pausa convidativa, previsivelmente preenchida pelo público. Em outra mensagem críptica, prometeu que iria trazer “para dentro das quatro linhas” quem hoje “está fora” delas, metáfora frequentemente usada em suas contendas com o tribunal. No mais, andou para cima e para baixo com Luciano Hang, símbolo vivo e espalhafatoso do antagonismo da vez com Alexandre de Moraes.
Mas não é porque baixou o tom que Bolsonaro sinalizou compromisso genuíno com a integridade da democracia. Hoje, ele deixou claro que sua estratégia de subversão eleitoral vai além de desacreditar as urnas e a Justiça Eleitoral. Neste Sete de Setembro, Bolsonaro mostrou que não hesitará em abusar de todos os poderes de seu cargo durante a campanha, mesmo que isso caracterize condutas ilegais que o deixarão vulnerável a eventuais punições graves pela Justiça Eleitoral.
Bolsonaro parece acreditar que conseguirá resistir a ações judiciais que seguramente reclamarão dos abusos de poder político e econômico como os que ele cometeu hoje. Na melhor lógica “um soldado e um cabo”, seu cálculo parece ser o seguinte: um tribunal composto por sete juízes, como o TSE, que não está nem no nível do Supremo, não terá força política para barrar um presidente eventualmente reeleito, com apoio da maioria do eleitorado brasileiro. Um presidente que terá inclusive concorrido com a promessa explícita, à qual algum apoio popular ele poderá presumir, de cortar as garras da Justiça. Só essa confiança explica o descaramento com que Bolsonaro cometeu abusos de poder na data de hoje.
O presidente começou o dia usando bens públicos para ato de campanha antes mesmo do início do desfile em Brasília. Em entrevista à TV Brasil, emissora pública que em 2018 ele prometeu que fecharia ou privatizaria, convocou o público a “ir às ruas”, “de verde e amarelo”. “Ainda dá tempo”, apelou. Como se houvesse dúvidas, deixou claro que os festejos de hoje não eram apenas pela Independência, mas também pela “eternidade de liberdade”. Para enterrar qualquer dúvida, encerrou a entrevista com seu bordão político: “Brasil acima de tudo, e Deus acima de todos.”
No contexto de um “candidato militar” como Bolsonaro disputando as eleições, a cerimônia oficial em Brasília acabou se tornando uma grande celebração de símbolos hoje associados ao bolsonarismo. Diante da sabida identificação de Bolsonaro com o militarismo, um cerimonial efetivamente preocupado em não associar o ato público ao candidato incumbente ao menos tentaria fazer com que as referências explícitas às Forças Armadas não fossem as únicas de toda a parada, ainda que o desfile militar na data de hoje seja tradicional. Talvez salpicando outros elementos igualmente brasileiros, mas não tão diretamente associáveis a Bolsonaro, como a Amazônia, os povos indígenas, o samba. Porém, tudo na cerimônia na capital federal foi triturado pela engrenagem verde oliva que produz o suco de gosto duvidoso que tivemos de engolir. Pelotões diferentes das três Forças desfilaram uniformizados do começo ao fim do evento; estudantes civis foram representados por escolas cívico-militares; até a inigualável música brasileira foi reduzida a torturantes marchas marciais. As personagens, os bens, a liturgia, tudo, enfim, ecoava exclusivamente o militarismo inseparável da identidade do candidato Jair Bolsonaro.
Se a Velhinha de Taubaté ainda tinha dúvidas quanto ao uso eleitoral do evento de Brasília até o final da manhã, mesmo ela há de ter se convencido quando Bolsonaro subiu em um carro de som particular na Esplanada dos Ministérios, pago por ruralistas, para discursar à mesma plateia arregimentada para a cerimônia oficial. Quem empunhou o microfone não foi presidente de todos os brasileiros, mas o candidato: antagonizou explicitamente com o PT, nomeou os programas sociais de seu governo e rechaçou “o mal” que “perdurou por 14 anos” e agora quer “voltar à cena do crime”. Grotescamente, comparou Michelle Bolsonaro a Janja. Ao final, vaticinou que “o povo está do lado do bem” e falou, em tom confiante, de “vitória”. Bolsonaro chegou ao ponto de ser explícito em pedir que o público trabalhasse para virar votos em seu favor: “Vamos convencer quem pensa diferente de nós.” Foi, enfim, um inequívoco comício eleitoral, pago com dinheiro público, em total subversão de um ato comemorativo oficial, e evidente desequilíbrio da disputa.
No Rio de Janeiro, especulava-se que Bolsonaro falaria do carro de som da igreja de Silas Malafaia, o que em si configuraria outra ilegalidade. Ao fim, discursou de um palco oficial. O tom de comício, porém, se manteve. Falou dos novos programas sociais, da recuperação da economia e fez referência aos riscos da volta de Lula, a quem chamou de “quadrilheiro de nove dedos”, ao poder: “esse tipo de gente tem que ser extirpado da vida pública”. Ao seu lado, além do mesmo Luciano Hang, estavam outros candidatos, reais (o governador Cláudio Castro, do PL, e a deputada federal, Clarissa Garotinho, do União Brasil) e potenciais (o deputado federal Daniel Silveira, do PTB, que tenta disputar o Senado a despeito de estar inelegível). Malafaia estava lá também, mas em seu carro de som.
É impossível deixar de anotar que o abuso do poder político e econômico nas situações a que hoje assistimos vai além do impacto desigual sobre o público presente aos eventos em Brasília e no Rio de Janeiro. Como data nacional de grande relevância, a que se somavam as expectativas de conflito alimentadas pelo próprio presidente nos últimos meses, a enorme cobertura da imprensa deu ao discurso do candidato uma visibilidade imensa, que não será nem de perto alcançada pelos seus concorrentes. Essa dimensão específica do poder presidencial, que venho chamando de poder retórico, não deve escapar à disciplina do abuso de poder, especialmente em contextos de campanha, nos quais pode produzir, como hoje produziu, enormes desequilíbrios em benefício de quem disputa a eleição sem deixar o cargo. Se a visibilidade é a chave para tudo, o sucesso de Bolsonaro hoje foi imenso.
Na cobertura da GloboNews, Fernando Gabeira chamou atenção para esse ponto, pedindo reflexão do jornalismo: ao destacar que o canal acabara de transmitir a íntegra do discurso eleitoral de um candidato, perguntou, retoricamente, se espaço semelhante seria dado aos demais candidatos. O fato é que não conseguiriam, nem se tentassem. Curiosamente, o discurso do Rio de Janeiro acabou não sendo transmitido ao vivo pela emissora. Segundo a jornalista Malu Gaspar (O Globo), o sinal de internet em Copacabana estaria fraco e a transmissão estava impossível. De qualquer forma, a ampla cobertura ao maior evento político bolsonarista do ano, pois é disso que se tratou tudo que aconteceu hoje, dominou a mídia hoje, como dominará a de amanhã. Por tudo isso, é importante que o TSE tenha dentes e pulso para combater os abusos de poder político e econômico que Bolsonaro praticou hoje, e deve continuar a praticar até a data da votação. Mas terá? Bolsonaro parece apostar que não.
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