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    Com cartazes com teor golpista, apoiadores de Jair Bolsonaro foram as ruas de Porto Alegre (RS) no feriado sete de setembro em apoio ao presidente Foto: Miguel Noronha/Futura Press/Folhapress

colunistas

Elites querem fazer crescer o bolo – mas sem distribuí-lo

Processo de reconfiguração civilizatória do Brasil veio acompanhado do crescimento da direita radical

Marcelo Paixão | 13 set 2022_12h01
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O Brasil celebrou seus dois séculos de existência como país independente. Mas convenhamos: a festinha foi meio chocha. No dia do aniversário da velha senhora se encontrava disponível para a admiração geral do público o coração empalidecido em formol de dom Pedro I. No Sete de Setembro, mais uma vez com o suado dinheiro dos contribuintes, e diante de seus apoiadores – que, é verdade, não eram poucos –, o mandatário portava uma importante mensagem à nação: ele é “imbrochável”. No seu Canto de Ossanha, Baden e Vinícius diziam que o “homem que diz sou, não é”. Mas, em tempos de fundamentalismo religioso, a sabedoria dos orixás não seria mesmo ouvida por aquela turma. É uma lei universal de que quando o extremismo fascista está muito em alta, esta palavra, sabedoria, anda muito em baixa.

No dia 6 de setembro, em Copacabana, o Comando Militar do Leste resolveu homenagear seu comandante em chefe, literalmente à altura, designando uma equipe de salto livre do Exército Brasileiro para se despencar de paraquedas em cima do bairro de Copacabana. De acordo com uma nota emitida pela mesma instituição, três paraquedistas, levados pelas rajadas de vento, acabaram se desviando do ponto previsto. Como sabido, a “princesinha do mar” é um bairro de modestos 4.1 km2, apertado entre morros e o mar. Ademais, é um local apinhado de edifícios e uma faixa de areia entre o calçadão e o mar que varia entre minguados 27 e 109 metros. Respeitosamente, espero que nada de mais grave tenha acontecido com os paraquedistas que arriscaram seu pescoço na imprudente manobra. Não sou meteorologista mas já residi naquele bairro. Mas supor que em uma praia de mar aberto rajadas de vento sejam ocasionais soa, no mínimo, um despropósito.

Aqui, vejam, não se trata tanto de uma questão de bom ou mau gosto. Se há gente disposta a passar o dia numa longa fila para ver pedaços de tecido esbranquiçados de um absolutista falecido há quase dois séculos dentro de um tubo de ensaio, se no dia da Independência o clímax do solene discurso presidencial à nação se resumiu em dizer que ele ainda é capaz de ejacular, se os incumbidos de defender a integridade do território nacional foram instruídos a se projetar do alto de uma aeronave sobrevoando um bairro tomado de prédios para ao final ficar vagando nos céus quem pipa sem rabiola. Enfim, paciência. Se o convescote dos dois séculos se deu em tom tão – para usar o termo da moda – brocha, o problema está longe de ser estético. Os ocorridos no começo de setembro de 2022 às vésperas das eleições gerais ilustram o clima de desmando e estultice que tomou conta de uma expressiva parte da nação.

O compositor Humberto Gessinger, em uma de suas músicas, nos ensina que “o fascismo é fascinante, deixa a gente ignorante fascinada”. Mesmo para os esquálidos parâmetros nacionais, o tempo atual vem apontando para um triunfante e preocupante irracionalismo. E que como tal não raramente assume a face do peripatético. Uma esdrúxula combinação de reacionários de todos os tipos saindo dos ralos do “Brasil profundo” carregando consigo o desejo de destruição e extermínio. Isso não é teoria ou psicologia barata. Vide os quase 700 mil vitimados pela Covid no Brasil desde 2020, isso fora os da violência policial que igualmente se contam aos milhares. De qualquer forma, a orquestração desse bando de reacionários não seria complicada se eles formassem um exclusivo grupo de TikTok que filmasse e trocasse os vídeos de suas dancinhas apenas entre si. O drama é que pelas atuais pesquisas eleitorais os portadores da pulsão de morte – um pouquinho de Freud não faz mal a ninguém – formam não menos de um terço do eleitorado brasileiro. Esta pergunta vem cercando minha série de artigos aqui na piauí. Por que e como, porca miséria, chegamos a esse nível tão baixo?

 

O longo processo de redemocratização brasileira se iniciou lenta e gradualmente a partir do governo do general Geisel entre 1974 e 1979. O que era para ser uma distensão controlada, acordada entre os donos do regime vigente, os empresários e os setores da oposição mais confiáveis foi se expandindo quando os “novos personagens entraram em cena”, tal como no título do influente livro organizado por Eder Sader. Sob a pressão do movimento sindical e do conjunto dos então chamados novos movimentos sociais, a abertura acabou se expandindo para além do previsto. Com isso, o texto constitucional de 1988 acabaria sendo parcialmente influenciado pela sua presença, tal como expresso pelo Capítulo da Seguridade Social (que posteriormente levou à criação do SUS, da universalização da Previdência Rural, do Loas e aos Estatutos da Criança e do Adolescente e à do Idoso) e pelas garantias individuais e coletivas, incluindo a criminalização do racismo e o direito de indígenas e quilombolas a suas terras. Porém, desde o começo dos anos 1990, já havia ficado evidente que a implementação dos direitos e garantias previstos na Constituição cidadã seria feita sob o fogo cruzado de um conjunto de constrangimentos econômicos que a cada instante ameaçava transformar os idílios do novo quadro institucional em letra morta. De alguma forma, este foi o primeiro paradoxo que se abriu a partir da promulgação da Constituição Cidadã. Mas outros não menos complicados vieram na sequência.

Os governos tucanos, e depois petistas, herdaram esse paradoxo e tentaram, cada qual ao seu modo, encontrar uma saída para a crise. O primeiro com o Plano Real, ainda no governo Itamar, e uma repactuação com o capital financeiro global por meio das políticas neoliberais de ajuste estrutural. O segundo com a busca por um novo contrato social englobando empresários e sindicatos de trabalhadores e crescimento do mercado interno pelo aumento do poder de compra dos mais pobres. Por algum momento, cada qual teve sucesso nas suas estratégias. Mas como ter sucesso por algum momento forma um inevitável sinônimo de ter fracasso por outros tantos, nem o projeto tucano nem o petista conseguiram efetivamente fazer frente ao conjunto de restrições internas que tolheram a capacidade de crescimento econômico do país por um prazo de tempo mais dilatado. Não se trata de procurar culpados. Voltando ao termo meio em desuso: esses impasses eram e são mesmo estruturais.

Alternativamente, se é verdade que desde os anos 1980 a economia brasileira vem crescendo a uma taxa medíocre, isso não implica que o conjunto de suas regiões tenha apresentado a mesma falta de dinamismo. Fui ao Ipeadata (http://www.ipeadata.gov.br/Default.aspx) consultar como se deu a distribuição relativa dos PIB estaduais brasileiros em 1980 e 2019. Como esse exercício não foi desagregado por setores econômicos, ele acaba sendo apenas sugestivo. Porém, malgrado sua simplicidade, esses dados não deixam de nos dar uma dica acerca das tendências de médio prazo da distribuição de nossa estrutura produtiva pelo território nacional. E das contradições sociais que dali emergiram.

Em 1980, o trio São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais respondia por 63,1% do PIB nacional. Em 2019, esse valor relativo caiu para 50,5%. Já o conjunto dos estados do Centro-Oeste (exceto Brasília) e do Norte mais que dobraram sua presença relativa: de 6,1% para 12,3%. Algo contra esse processo de desconcentração regional? Obviamente que não. Mas com a talvez exceção do Amazonas devido à Zona Franca, esse deslocamento exemplifica o especial crescimento relativo dos complexos extrativistas minerais e agropecuários (que obviamente não se limitou àquelas Unidades da Federação). Como são setores usualmente intensivos em recursos naturais – água e terra – aqui vamos encontrar a formação de campos de interesses políticos lastreados nessa perspectiva.

O Brasil teria terras suficientes para abrigar diferentes modelos de desenvolvimento agrícola. Porém a fome dos grandes fazendeiros pelos chamados bens de raiz (propriedades rurais), seja para produção seja para especulação, se transformou em uma patologia. No Brasil é estimado que menos de 1% das propriedades rurais detenham mais de 40% da área total ocupada, e o coeficiente de Gini para concentração fundiária seja superior a 0,8 (um é o valor máximo). Na era pós-moderna, o modelo agrário exportador brasileiro logrou juntar diferentes tempos sociais em um só. Tecnologia computadorizada e aérea para manejo de plantação e planejamento do ciclo produtivo associado ao trabalho em condições degradantes, não raramente assumindo a face nua e crua do trabalho em condições análogas à escravidão. O Ministério do Trabalho e da Previdência estima que entre 2012 e 2021 foram cerca de 13,6 mil brasileiros resgatados dessa condição. Somente neste ano de bicentenário já foram cerca de quinhentas pessoas. Somando o problemático ao complicado, entre 2018 e 2021 o desmatamento da Floresta Amazônica cresceu 56,6%. Isso fora a devastação de outros biomas como o Pantanal e a Mata Atlântica.

Não parece mera coincidência que os estados brasileiros onde o candidato à reeleição tem a liderança nas pesquisas eleitorais estejam fundamentalmente localizados dentro do arco do desmatamento, especialmente no Centro-Oeste onde sua dianteira é incontestável. Acre,  Rondônia e Roraima, últimos rincões de expansão de fronteira da destruição, reforçam ainda mais o raciocínio. A estes se somam a tradicionalmente conservadora Santa Catarina e o Distrito Federal, isso fora o empate técnico no Amapá, Paraná, Rio de Janeiro e no Espírito Santo. A mesma contradição que nos congela na condição periférica em comparação aos centros mais avançados é aquela que direciona excedentes econômicos para as atividades que degradam o meio ambiente e expropriam povos tradicionais. A extrema direita negacionista, na sua cruzada para reverter a Revolução Copernicana, encontra especial audiência nesses segmentos do agronegócio brasileiro e demais atividades extrativistas. Aqui sejamos justos e reconheçamos: nem todos os empresários desses ramos de atividades portam essa postura e muitos vêm se manifestando publicamente em contrário. Porém, creio que seria uma imperdoável ingenuidade supor que eles sejam hegemônicos junto aos seus pares. Desse modo, assim, tal como as vacinas, o aquecimento global seria uma farsa e medidas de combate ao fenômeno, pura perda de tempo. Indígenas e quilombolas são vistos como povos primitivos e, portanto, elimináveis. Hoje o pano da hipocrisia caiu, e agora já podemos chamar pelo nome aquilo que os pruridos nacionais antes tinham tanta dificuldade de reconhecer. O conflito tem características étnico-raciais. É o capitalismo racial brasileiro em ação.

Por outro lado, o fato é que desde a estabilização monetária, a partir de 1994, e as políticas de transferência de renda aos mais pobres, a partir de 2003, as desigualdades sociais caíram. Segundo artigo publicado por Rogério Barbosa, Pedro F. de Souza e Sergei Soares, no ano de 2015, às vésperas do golpe contra Dilma, o coeficiente de Gini da população brasileira (0,525) chegaria ao seu menor nível. Tem determinadas políticas que geram descontentamento por funcionarem mal demais. Mas o exemplo brasileiro mostra que às vezes elas podem dar errado justamente por terem dado certo demais.

Até meados da década passada a renda dos mais pobres crescia, as políticas distributivas eram exemplos para o mundo e as desigualdades raciais seguiam o mesmo rumo. Foi nesse contexto que tivemos a emergência não de uma oposição de centro-direita ou liberal-conservadora. Mas da extrema direita. De qualquer forma, se os descaminhos da economia brasileira formam parte das contradições que nos levaram ao drama atual, como já sabido, o economicismo puro e simples não ajudará a entender seus motivos. A experiência recente da sociedade brasileira nos ensina que as políticas distributivas sempre enfrentarão séria resistência dos segmentos historicamente beneficiários da tradicional injustiça social vigente no país. A perspectiva da igualdade racial assumida por essas políticas, porém, transcende o aspecto econômico.

Em agosto a Folha de S.Paulo publicou uma entrevista que concedi ao jornalista Felipe Nunes. Muito perspicaz, meu entrevistador deu destaque a um comentário que fiz apontando que “ser atendido por um médico negro vai muito além da distribuição de renda”. Este trecho foi estimulado por uma pergunta que me havia sido feita sobre as possibilidades de mensuração das políticas de ações afirmativas nas universidades públicas sobre a distribuição de renda. De fato, na medida que aquelas intervenções favorecem o ingresso de estudantes provenientes de camadas sociais mais pobres nas instituições de ensino superior mais prestigiadas é de se esperar que cedo ou tarde haja um efeito sobre os índices que medem as desigualdades. Porém, será que o problema fundamental reside exatamente nesse ponto?

Somos herdeiros de um tempo no qual falar em temas como raça e racismo em casa ou em praça pública era um tabu. Era um ato que tangenciava a falta de tato, comprometendo uma delicada regra de etiqueta que devia ser cuidadosamente preservada. A regra do silêncio adornava um persistente processo de classificação social que, com magnífica coerência, coloria e naturalizava os diferentes tons de pele nossa pirâmide de renda: do mais escuro ao mais claro seguindo da base para o topo das camadas sociais. O consenso eugênico indicava que o país do futuro seria branco e, como negros e indígenas pertenceriam ao passado, nada mais natural que fossem confinados aos papéis sociais mais mal remunerados, mais degradados e de baixo prestígio social. Na medida em que os afro-brasileiros apresentavam crônicas dificuldades para se organizarem e expressarem suas queixas em público, enfim, oficialmente seríamos uma democracia racial.

Tal como as políticas de redistribuição de renda combinadas, as iniciativas em prol da igualdade racial, especialmente as ações afirmativas nos processos seletivos nas universidades, tocaram em um ponto sensível da cultura e sociedade brasileiras ainda marcadas pelos longos séculos de vigência do trabalho servil e dos longos decênios do racismo silencioso. Para além dos serviços que tinham ficado mais caros, já desde o começo da década o coro dos descontentes foi crescendo à medida que os portadores das peles pretas e pardas começavam a ocupar espaços sociais outrora inacessíveis. O componente racial e as mudanças que ocorreram no plano simbólico acabariam sendo mais inaceitáveis do que o simples encarecimento do valor da força de trabalho dos serviços de tradicional baixa remuneração. Pobre agora anda de avião. Agora meu filho terá como coleguinha uma mulher negra periférica. Que absurdo, né? Por isso que em um país onde a cor da pele é um índice de origem e condição social, as elites e classes médias brancas se mostraram tão contrariadas com as ações em prol da equidade racial. Adendando a lei de Delfim Netto, o bolo precisaria crescer. Mas para jamais ser distribuído. De qualquer sorte, isso ajuda a entender porque aqueles setores projetaram suas frustrações e ressentimentos através do discurso intolerante e irracionalista. Mimimi, coitadismo, ideologia de gênero. Em suma, a língua portuguesa foi se empobrecendo na medida em que enriquecia de forma tão triste seu vocabulário.

Por outro lado, se é bem verdade que a chegada dos grupos historicamente discriminados no espaço público se faz acompanhar por tamanha intolerância, não se pode dizer que o Brasil não tenha iniciado um profundo processo de reconfiguração civilizatória que veio para ficar. Não obstante tantas dificuldades, começamos a vislumbrar um aumento substancial de profissionais negros de ambos os gêneros e não binários atuando como, por exemplo, médicos, engenheiros e economistas. Quem sabe já não estejam prontas as condições para a superação do “circuito fechado”? Não seria isso que explicaria o crescimento da direita radical? Uma vez mais, os efeitos são mais profundos que os captáveis pelas estatísticas de distribuição de renda. Quem sabe no seu aniversário de 250 anos não tenhamos condições de propor à velha senhora uma festa à altura das melhores aspirações de seus filhos?

No livro “O Príncipe”, Maquiavel diria que não havia empresa de mais difícil realização do que tentar mudar a ordem das coisas. Todavia, a Florença renascentista já vai no tempo, isso além de muito distante do Brasil. Fiquemos com exemplos mais próximos. Se “mesmo na deprê, chama-se o Gilberto Gil”, como diz seu camarada de Portobello Road, louvemos as dialéticas de seu Jeca Total. Entre a “era de Aquarius ou mera ilusão”, melhor acreditar que o que hoje sentimos como um imenso pesadelo coletivo talvez possa ser traduzido tão apenas como os necessários sintomas das “dores da emancipação”.