Crédito: Colagem de Thallys Braga com foto de Pedro Ladeira/Folhapress
Bolsonaro no multiverso da loucura
Plano de governo de Jair Bolsonaro fala de um Brasil que só existe nos sonhos do presidente – nos nossos, virou pesadelo
Nesta semana foi divulgado documento preliminar contendo a proposta de governo de Jair Bolsonaro para o período de 2023 a 2026. Com frases de efeito como “o governo Bolsonaro disponibilizou vacinas para todos os cidadãos que desejassem ser imunizados contra a Covid-19”, “o governo do Brasil tem primado por defender e promover o regime democrático” ou ainda “a eterna e responsável busca em assegurar os direitos humanos de todos”, o plano fala de um Brasil que aparentemente só existe no multiverso da loucura de Jair.
Bolsonaro ignora descaradamente que foi em sua gestão que choraram as famílias dos 681 mil mortos pela Covid, e que também em seu mandato um em cada três brasileiros não sabe se vai ter o que comer amanhã, levando o Brasil de volta ao Mapa da Fome da ONU. Também não menciona que a inflação, que já passa dos dois dígitos, corroeu o poder de compra dos que conseguiram manter seus empregos, e tampouco fala do retrocesso na cobertura de vacinação infantil, que ficou abaixo da média mundial e nos colocou no mesmo patamar de países como Haiti e Venezuela.
Mas, verdade seja dita, na área da segurança pública o programa do presidente perseguiu os objetivos traçados em 2018 – reiterados no programa para o próximo quadriênio. Dois elementos destacaram-se na proposta da campanha anterior e são confirmados na atual: a ampliação do acesso às armas de fogo, o que, segundo a campanha do presidente, tem por objetivo oferecer a legítima defesa; e a ampliação do excludente de ilicitude, o que seria um mecanismo de proteção aos policiais.
De fato, hoje somos uma sociedade mais armada do que em comparação a 2018. O crescimento de registros ativos de Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CAC) foi de 473,6% no período. A política de flexibilização do controle de armas, somada à ausência de mecanismos de controle, especialmente do Exército, garante que um terço das 4,4 milhões de armas em estoques particulares com registros no Sigma e no Sinarm estejam com o registro expirado. Isso mesmo, 1,5 milhão de armas por aí, sem que saibamos exatamente onde ou com quem.
A nova política de armas inaugurada por Jair também permite que o crime organizado adquira armas legalmente, o que torna a tarefa do criminoso mais acessível e barata. O jornal O Estado de S. Paulo revelou que a aquisição de fuzis, que custavam entre 35 mil e 59 mil reais no mercado paralelo, agora sai pela bagatela de 12 mil a 15 mil reais. Um enorme incentivo ao PCC, maior facção criminosa do país! O Exército, por sua vez, reconheceu não checar os antecedentes de um suspeito que acumulava dezesseis processos na justiça, dentre os quais homicídio qualificado e tráfico de drogas. Em sua defesa, o Exército afirmou se basear na autodeclaração de idoneidade, um instrumento muito efetivo no país que registra a atividade de ao menos 53 facções criminosas ligadas ao narcotráfico. De todo modo, para que não haja dúvidas, o programa de governo registrado no TSE reitera a proposta do governo de assegurar a ampliação do acesso à arma de fogo.
Entusiasta da violência policial, apesar das reiteradas tentativas, Jair não foi capaz de aprovar no Congresso a ampliação das situações previstas no excludente de ilicitude, impedindo a punição a policiais e integrantes das Forças Armadas que se envolvam em ocorrências que resultam em morte. Não que muitos policiais sejam punidos por ocorrências como essas. As pesquisas mais otimistas indicam que, em média, apenas 10% desses episódios resultam na denúncia do Ministério Público – e nem todas resultam em condenações no tribunal do Júri.
A limitação em relação à mudança na legislação não foi empecilho ao aparelhamento da Polícia Rodoviária Federal que, para agradar o chefe, passou a atuar em operações conjuntas com outras polícias. Os resultados logo apareceram. Em outubro de 2021, a corporação atuou em uma operação na cidade de Varginha (MG) que resultou na morte de 26 homens, fato amplamente comemorado pelos filhos do presidente. Em maio deste ano a PRF agiu conjuntamente com a Polícia Civil do Rio de Janeiro na segunda operação mais letal da história do estado, que resultou em 23 mortos.
O novo programa de governo também fala em “assegurar os direitos humanos de todos”, o que é curioso, dado que as disciplinas de direitos humanos desapareceram do projeto pedagógico do curso de formação profissional da PRF em sua gestão, como revelado pela piauí. Com um total de zero horas na grade curricular, a inovação se tornou pública na sequência do assassinato de Genivaldo Santos em Umbaúba, Sergipe, após ser abordado por agentes da PRF e acabar morto em uma câmera de gás improvisada na viatura pelos policiais. Sessão de tortura largamente documentada pela população local.
Um ponto novo, no entanto, que não constava do programa de Governo em 2018 e que assume centralidade no projeto de 2022 tem relação com o enfrentamento à violência contra as mulheres. Faz sentido, especialmente se considerarmos que os numerosos episódios de falas misóginas envolvendo o presidente – como as ofensas proferidas contra a jornalista Patrícia Campos Mello – o colocaram numa situação difícil com a população feminina. Apenas 1 em cada 4 brasileiras pretende votar no presidente em outubro, o que tem exigido de sua campanha esforço extra para falar com as mulheres.
Essa rejeição das eleitoras não guarda relação apenas com a retórica pouco respeitosa de Jair, mas especialmente porque a vida das mulheres ficou muito mais difícil do que a dos homens nos últimos anos: pesquisa divulgada pelo IBGE, por exemplo, mostrou que 72% dos postos de trabalho encerrados em 2020, primeiro ano da pandemia, eram ocupados por mulheres. No que diz respeito aos números da violência contra meninas e mulheres, os dados também não são animadores. A pandemia de Covid acentuou um quadro já grave de violência, que se traduz diariamente em agressões, estupros e ameaças.
Apesar das fortes evidências que indicavam o crescimento de diferentes formas de violência durante a pandemia – e que já vinha ocorrendo em outros países como China, Espanha e Portugal –, o governo federal pouco fez para frear o crescimento da violência doméstica e intrafamiliar. A pesquisa Visível e Invisível, produzida pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostrou que oito mulheres foram agredidas fisicamente a cada minuto nos primeiros doze meses da pandemia. Na maioria dos casos a violência foi provocada por um conhecido, companheiro, ex-companheiro ou familiar da vítima, e os episódios violentos ocorreram majoritariamente na residência dessas mulheres. Os dados são coerentes com os números de feminicídios do ano passado, que apontam que 81,7% das vítimas foram mortas por companheiros ou ex-companheiros, e em 65,6% dos episódios, assassinadas dentro de casa. Ainda assim, o programa de governo se gaba do lançamento do Plano Nacional de Enfrentamento ao Feminicídio, sem mencionar, no entanto, que isso só ocorreu no final de dezembro de 2021, ou seja, após a morte de 3.968 mulheres vítimas de feminicídio durante o atual mandato.
Os dados da violência sexual reforçam o cenário de que a família e o lar podem ser espaços de muita violência. Apenas no ano passado, 35.735 crianças e adolescentes entre 0 e 13 anos foram estupradas, e os casos chegaram a delegacias de polícia. As vítimas, em sua maioria meninas, sofreram violência sexual na própria casa em 76,5% dos casos. Os autores? Pais e padrastos (40,8%), primos, irmãos, tios (37,2%) e avós (8,7) foram relacionados como principais algozes. Assim, ao afirmar no programa de governo que “o ponto de partida e de chegada das políticas públicas e ações sociais do nosso Programa de Governo será a família”, Bolsonaro tira da mulher a possibilidade de ser sujeito de direitos da política pública, ignorando deliberadamente o fato de que é justamente no seio familiar em que meninas e mulheres mais frequentemente sofrem violência.
Agora, para falar em ausências no programa de governo, é digno de nota a inexistência de qualquer menção à questão racial. No multiverso de Jair o racismo não existe, ou pelo menos não merece ser enfrentado, embora 77% das vítimas de homicídio deste país sejam negras. Esse fato se torna especialmente grave no debate sobre segurança pública porque os dados indicam que a desigualdade racial se acentuou nos números da violência nos últimos anos. Se considerarmos os dados de assassinatos da última década, veremos que o número de pessoas não negras mortas caiu 33%, ao passo que os homicídios de negro cresceram 1,6%. Isso quer dizer que o tímido resultado obtido recentemente com a redução da violência letal é ainda um fenômeno concentrado nas parcelas brancas e amarelas da população. O mesmo ocorre se olharmos apenas para mulheres: enquanto o número de mulheres negras assassinadas cresceu 2% em uma década, o total de mulheres não negras assassinadas caiu 26,9%.
Em resumo, o Brasil segue convivendo com um cenário de violência extrema, em que assassinatos, violência doméstica e sexual, violência policial e contra policiais, racismo e LGBTfobia ocorrem cotidianamente. Para usar uma metáfora que ouvi de um coronel, dias atrás, comemorar os números da violência no Brasil de 2022 é como celebrar que a febre baixou de 41 para 40 graus. No multiverso da loucura de Jair, o Brasil é um país melhor após tudo o que aconteceu nos últimos três anos e meio. Em outubro saberemos se o eleitorado brasileiro pensa o mesmo, mas, no que diz respeito ao enfrentamento à violência, suas propostas de governo não oferecem respostas capazes de garantir a segurança e a cidadania da população.
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