Lula (PT), Simone Tebet (MDB) e Jair Bolsonaro (PL) no debate presidencial no último domingo (28) Foto: Bruno Santos/Folhapress
Candidatos estão despreparados para discutir raça e gênero
Primeiro debate presidencial mostrou que concorrentes ao Planalto precisam fazer a lição de casa sobre esses dois temas
O primeiro debate eleitoral teve como destaque a discussão de gênero sobre o viés das barreiras que as mulheres enfrentam na vida social, em particular na política institucional. O próprio debate em si funcionou como um microcosmo de como a estrutura, as práticas, os discursos e as dinâmicas de gênero e raça funcionam para hierarquizar as desigualdades entre homens e mulheres no país. O laboratório televisivo nos deixa muitas pistas de como tais desigualdades se manifestam na vida cotidiana, reproduzindo os lugares sociais das mulheres.
Da estrutura política, é preciso destacar a situação que vivemos hoje. Em pesquisa sobre direitos políticos das mulheres na América Latina, o Brasil fica entre as piores condições, ocupando a nona posição numa amostra de 11 países da região, segundo a pesquisa realizada pelos órgãos das Nações Unidas (ONU), o Programa das Nações Unidas para o desenvolvimento, o PNUD, e a ONU Mulheres.
As mulheres são a maioria da população brasileira, somando 52,2% dos habitantes, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2019) . Elas também representam a maior parte do eleitorado nacional (52,6%). Quando se observa sua participação nos partidos políticos, as mulheres são quase metade das filiadas. Todavia, a foto das casas legislativas tem face desoladora: elas são apenas 15% do Congresso e são penas 15 mulheres num universo de 81 senadores, ou seja, 18,5% das cadeiras do Senado. Quando são observadas as desigualdades raciais e de gênero, mulheres negras são apenas 2,5% das eleitas na Câmara dos deputados, enquanto no Senado apenas 2 das 54 cadeiras foram ocupadas por mulheres negras na última legislatura. Realidade bem diferente da vida brasileira em que as mulheres negras são o maior grupo demográfico, aproximando-se de 28% da população do país.
A filósofa brasileira Lélia Gonzalez, desde o contexto da democratização, atenta às profundas desigualdades de gênero e raça no país, recusava-se a nomear a sub-representação de mulheres e negros como sendo um dilema de minorias na democracia brasileira. Para a autora, a política nacional buscava silenciar as maiorias. Por isso cunhou a expressão maioria silenciada ao se referir aos grupos subrepresentados, como negros, mulheres e mulheres negras.
Sendo sub-representadas na política institucional, as mulheres brancas eram minoria entre candidatas no debate presidencial de 2022, o que foi contrastado com a farta presença de jornalistas, que alavancaram o debate sobre gênero e feminismos. À bancada faltou a diversidade racial. Foi ensurdecedor o silenciamento das mulheres pretas e indígenas, o que também gerou a ausência do debate sobre racismo, seja por parte das questões das jornalistas, seja por parte das respostas dos presidenciáveis. A fotografia do primeiro debate eleitoral pode dar a falsa impressão de que negros e mulheres negras não são candidatos à presidência da República. Isso não é verdade. Segundo os dados do TSE, há doze candidaturas presidenciais no pleito de 2022. Dessas, negros e indígenas estão em partidos nanicos ou sem expressividade eleitoral. Isto é, a representatividade dos descendentes de populações que passaram pela escravidão e que vivem racismo estrutural no país não tem viabilidade nas eleições majoritárias para o executivo federal.
O gênero ganhou destaque no debate presidencial por duas razões. Primeiro porque Jair Bolsonaro (PL) ofendeu a jornalista em resposta ao seu comentários sobre a política vacinal sob seu governo. O ataque a Vera Magalhães levou à solidariedade de Simone Tebet (MDB), que trouxe para a cena do debate as reivindicações do feminismo. Tebet fez dobradinha com a candidata Soraya Thronicke (União Brasil), antiga aliada de Bolsonaro. Apesar da sua notável contradição de ser defensora de primeira hora do golpe parlamentar contra Dilma Rousseff, primeira presidenta do Brasil, Tebet saiu bem sucedida em sua estratégia política de chamar a atenção para a relevância das mulheres e suas demandas na esfera política.
Despreparado para o debate de gênero, Ciro Gomes perdeu a oportunidade de apresentar aos eleitores sua vice, Ana Paula Matos, que se autodeclarou preta nos registros do TSE. Ele perdeu a oportunidade ainda de buscar nas raízes de seu partido, o PDT, seja em seu estatuto original, seja na famosa carta de Lisboa, o compromisso partidário com o antirracismo e os direitos das mulheres. Na sua falta de iniciativa, acabou tendo que explicar suas declarações machistas sobre a sua ex-esposa, incitado por Bolsonaro. O despreparo de Ciro para pensar a realidade das mulheres – seja em termos de suas concepções e formas de fazer política – ficou notável quando questionado pelo concorrente por suas práticas do passado, retrucou dizendo que era um ataque pessoal vindo de Bolsonaro, esquecendo (ou desconhecendo) que uma das filosofias mais ricas do feminismo é a de que o pessoal é político.
Lula também, em despreparo notável, esqueceu-se até da história do seu partido. No contexto de debate sobre gênero e em resposta às ofensas de Bolsonaro à jornalista, poderia ter chamado a atenção para o fato de que o PT foi o primeiro na história nacional a implementar cotas para garantir a representação de mulheres. Poderia ter assumido o compromisso de paridade de gênero nos ministérios, como fez Gabriel Boric no Chile. Poderia ter mencionado abertamente a relevância que seu partido teve na formulação das PEC das Domésticas, por meio da deputada federal Benedita da Silva, e como isso afetou o segmento feminino negro da população. Poderia ter falado da criação do Ministério das Mulheres e todas as legislações relevantes das gestões petistas para combater a violência de gênero, como a Lei Maria da Penha e a legislação contra o feminicídio. Poderia ter sido o primeiro a se solidarizar com a jornalista Vera Magalhães. Só não foi pior sua manifestação sobre o assunto porque fez uma defesa visceral de Dilma ao lembrar que foi a primeira presidente mulher e que passou por um golpe parlamentar (e diga-se de passagem misógino na forma e no conteúdo) e se solidarizou em rodadas finais do debate à candidata Tebet, também agredida por Bolsonaro.
A já conhecida violência de Bolsonaro com as mulheres não ofuscou o despreparo do presidenciável Luiz Felipe d’Avila (Novo), candidato mais rico do pleito eleitoral, segundo sua declaração de patrimônio ao TSE. Ao errar o nome da principal lei de prevenção e combate à violência de gênero no país, d’Avila não acrescentou nada ao debate sobre o assunto de alta centralidade, conseguiu ser apenas piada na Internet, confundindo Lei Maria da Penha com “Lei Maria da Paz”. Ou seja, só gerou desinformação para o público.
Por que o gênero foi tão importante para esse primeiro debate presidencial? Simples: as mulheres são o fiel da balança nas eleições de 2022. De olho no eleitorado feminino, várias estratégias políticas foram lançadas pelas candidatas e pelos candidatos presidenciáveis na primeira vez que houve confrontação pública, face a face, entre os políticos que se apresentam de forma mais expressiva nas pesquisas de intenções de voto. O humor do primeiro debate somado ao peso que o eleitorado feminino tem ganhado nas eleições de 2022 mostram que candidatos precisarão se qualificar mais para debater feminismos, racismo e direitos das mulheres. Não serão suficientes as velhas estratégias de uso de primeiras damas como cabos-eleitorais, tão reificadas pelos políticos e pela mídia nacional.
Em contraste com o despreparo dos candidatos pegos de calças curtas no debate presidencial, mulheres acadêmicas, de organizações da sociedade civil e dos movimentos sociais têm construído iniciativas de monitoramento, qualificação de candidatas e de politização da sociedade no que toca à importância de projetos antirracistas e de direitos das mulheres, de povos originários, bem como de comunidades periféricas nas suas plataformas políticas.
Frutos desses esforços será lançada nesta semana a campanha “ A Conta não Fecha” pelo movimento A Tenda das candidatas, que também produziu o Guia “ Desculpas não pagam campanhas”, jogando o refletor de luz para o problema do financiamento de candituras femininas e negras. Somadas a elas, há varias outras com alcance nacional, a exemplo do Instituto Vamos Juntas, Vote Nelas, Lidera, Estamos Prontas, além do Fórum Nacional Marielles.
Seus projetos visam empoderar (empoderamento aqui entendido no sentido antiliberal formulado por Ângela Davis) candidaturas femininas e impulsionar o debate sobre os direitos das mulheres, assegurando aos grupos subrepresentados a distribuição do fundo eleitoral, determinante para o fortalecimento de candidaturas eleitoralmente viáveis. Isso significa acompanhar de perto as burlas partidárias, que tendem a favorecer candidaturas masculinas e brancas, em detrimento das maiorias silenciadas. Em outras palavras, para os próximos debates candidatos precisarão fazer a lição de casa: as mulheres brasileiras, em sua diversidade, querem ter voz, presença e seus direitos assegurados e querem também garantir a qualidade da sua representação durante e após as eleições.
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