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    Ilustração: Carvall

colunistas

Deus e o Diabo na terra da Constituição

Campanha de Bolsonaro joga para confundir ao abordar temas como intolerância religiosa e Estado laico

Rafael Mafei | 02 set 2022_09h44
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Pesquisas e acontecimentos específicos têm feito com que o debate corriqueiro sobre religiosidade nessas eleições volte-se a estratégias e personagens bem delimitados. Do lado estratégico, a questão tem sido como as candidaturas de esquerda devem abordar eleitores evangélicos, especialmente os neopentecostais, para fazer frente ao predomínio bolsonarista nesse segmento. E, do lado das personagens, todas as atenções voltam-se a Michelle Bolsonaro, figura importante da campanha pela reeleição de Jair Bolsonaro não apenas por suavizar os efeitos negativos da misoginia atávica do marido, como também para reforçar o compromisso do bolsonarismo com certas denominações evangélicas. 

A abordagem episódica e personalista talvez se explique pela premência de cálculos eleitorais por parte de quem concorre nas eleições, bem como pelas necessidades de prognóstico de quem está de fora. Mas como mostram os muitos estudos sobre conservadorismo, religiosidade e ascensão da extrema direita no Brasil e no mundo, esse fenômeno é mais profundo, duradouro e abrangente. Quanto maior for o sucesso político de grupos de pressão ligados a denominações específicas, mais os limites borrados da separação entre igrejas e o Estado, um pilar básico de democracias laicas, serão testados contra tentativas de expansão confessional da política. 

Essa tensão não começou com esta eleição, mas deve aumentar depois dela. Primeiro, porque desde 1988 não houve outro pleito em que pautas e grupos religiosos estiveram tão abertamente no centro da arena eleitoral. Segundo, porque Bolsonaro transformou a religião em insígnia de exclusão: “ser cristão”, em seu discurso, tem o mesmo papel de “ser um verdadeiro americano” no discurso trumpista, ou “ser europeu” na retórica xenofóbica daquele continente. No jargão bolsonarista, “cristão” é critério que define o verdadeiro cidadão – o “cidadão de bem” –, a quem o Estado deve consideração, e denuncia, por exclusão, quem não o é.

A má notícia é que, salvo raras exceções, a compreensão do chamado princípio do Estado laico é menos clara do que deveria ser entre nós. Essa incompreensão é um convite tanto para intromissões indevidas quanto para omissões imperdoáveis. Se não estiver claro para nós o que significa a exigência de laicidade, o Estado cederá quando tiver o dever de se impor, ficará neutro quando deveria agir, e tomará lado quando deveria guardar distância. Para piorar, o contorno fino desses limites tem sido desenhado em linhas nem sempre claras pelo STF, um tribunal que escolhe ostentar o símbolo de uma fé específica (um crucifixo) em seu salão principal de julgamentos, em posição mais elevada do que o brasão da República. Ter clareza quanto às exigências da laicidade é fundamental para enfrentarmos o número crescente de desafios que serão impostos por quem tenta misturar fé, política, dinheiro e a Constituição.

 

Um primeiro aspecto da laicidade deve estar no reconhecimento de diversas crenças diferentes sobre a fé, assumindo-as como elementos potencialmente centrais nos planos de vida de muitos de seus cidadãos. Esse reconhecimento pode ser demonstrado de várias maneiras diferentes. A visita de uma autoridade pública a uma liderança ou a um local de especial valor para alguma religião é uma forma de reconhecimento. Quando uma autoridade ou um candidato visita um templo, uma igreja, um terreiro ou uma sinagoga, ele está reconhecendo a existência daquela comunidade singular, bem como a importância que uma fé específica tem como elemento organizador da vida coletiva e individual de seus membros. Sua visita diz: sabemos que vocês existem e respeitamos o valor que suas crenças têm para vocês.

O mesmo vale quando a iniciativa vem de sentido contrário: se lideranças religiosas procuram uma autoridade e a presenteiam com um bem sagrado (uma imagem, um amuleto) ou lhe oferecem um canto ritualístico, uma oração, uma benção ou um passe, a laicidade não exige que essas oferendas sejam recusadas. A tentativa, um tanto sem jeito, de Alexandre de Moraes de participar da pajelança realizada em seu gabinete por indígenas da terra Raposa Serra do Sol, bem como a aceitação, já mais descontraída, por parte de Lula, do banho de pipocas (um ritual comum em religiões de matriz africana) que recebeu na Bahia, são ambas sinais de reconhecimento. A aceitação deferente não denota proximidade indevida de uma religião em desprestígio a outras, mas apenas respeito ao especial valor espiritual do gesto, e de sua importância para quem o oferece.

Há duas razões pelas quais esse reconhecimento não apenas protocolar, mas que atribui significado e valor a várias práticas religiosas, é exigido pela laicidade de nossa Constituição. A primeira é que essa forma valorativa e positiva de reconhecimento é exigência tanto do respeito à dignidade humana quanto da liberdade religiosa. Dignidade exige que seres humanos sejam tratados plenamente como tais, ao passo que a liberdade religiosa, prevista como direito fundamental, reconhece que a religiosidade, a livre expressão individual da fé e a organização social de cultos e rituais religiosos são formas de expressão de nossa humanidade (e portanto estão compreendidas no espaço da dignidade humana). A liberdade religiosa respalda não apenas a crença e a prática de rituais, mas também o direito de que possamos conduzir nossas vidas e nossas ações de acordo com essas crenças. O reconhecimento genuíno reforça que esse direito poderá ser exercido sem reprimendas injustificadas.

Muitos dos conflitos jurídicos reais, enfrentados por tribunais constitucionais de democracias seculares mundo afora, dizem respeito aos limites dessa liberdade de ação: como regimes de trabalho e deveres políticos devem lidar com as limitações de horários impostas pelas religiões que mandam guardar certos dias da semana? Quão invasivas são leis que restringem o uso de símbolos religiosos por agentes do Estado em relação às pessoas adeptas de religiões nas quais adornos mais visíveis, como kipás, turbantes e véus, às vezes são exigidos? Que dizer então de sacrifícios animais em rituais religiosos, praticados nas mesmas sociedades que abatem mamíferos sencientes para alimentação ou para servir à indústria da moda? Responder a essas questões já não é fácil em tempos de serena reflexão; que dirá então quando a religião é tragada para o centro de debates políticos marcados por polarização afetiva.

A segunda razão pela qual o reconhecimento se impõe é que ele é pressuposto ao diálogo que mesmo um Estado que aspira ser laico, como o Brasil, pode ter com igrejas. Dentro de certos limites e observados certos cuidados, o poder público pode atuar em parceria com entidades religiosas. O artigo 19, inciso I, da Constituição prevê explicitamente a “colaboração de interesse público” como forma legítima de atuação conjunta entre igrejas e Estado. Mas na religião como na política, o Diabo – para quem acredita nele – mora sempre nos detalhes: é preciso zelar para que essa possibilidade não seja utilizada para viabilizar transferências indevidas de dinheiro público para empreendimentos empresariais vultuosos, administrados por empreendedores da fé.

 

Não basta a um estado laico reconhecer e permitir a existência de crenças, cultos e organizações religiosas. Em determinadas situações, a proteção da dignidade, da qual a possibilidade de viver segundo a religião escolhida é parte, exige ações positivas para a proteção de certas comunidades de fé. Por isso a posição do Estado em face de religiões não é bem compreendida se vista como um simples dever de não intervenção: quando um grupo é alvo de intolerância religiosa, inclusive por razões de antagonismo religioso por parte de outro grupo, o compromisso com a liberdade religiosa exige ação, para que o grupo discriminado seja protegido em sua liberdade de crer e de viver segundo suas crenças. Quem vive sob ameaça de violência em razão de sua fé está obviamente sendo violado em sua liberdade religiosa, e o fato de o agente perpetrador estar ele próprio motivado por outra religião em nada diminui essa violação. 

A Constituição exige “​​proteção aos locais de culto e a suas liturgias”, promete que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa” e compromete-se em proteger as pessoas contra “quaisquer […] formas de discriminação”. No caso das religiões mais associadas a etnias e raças específicas, como é o caso das religiões afro-brasileiras, a proteção contra a discriminação religiosa é ainda uma das dimensões do combate ao racismo, outra promessa explícita da Constituição.

A diferença entre os deveres de reconhecimento e de proteção contra discriminação mostra por que não há nada de errado em Lula receber o banho de pipocas em Salvador, mas há sim problemas em associar religiões de matriz africana a “principados e potestades das trevas”, como fizeram a candidata bolsonarista Sonaira Fernandes (Republicanos-SP), diretamente, e a primeira-dama Michelle Bolsonaro, indiretamente, ao compartilhar a publicação da primeira. Lula reconheceu e foi reconhecido, sem discriminar nenhuma fé; já Sonaira e Michelle fizeram o exato oposto disso: propagaram discurso discriminatório para instigar o não reconhecimento da Umbanda. Trata-se de mais uma exploração de falsos paralelismos, nesse caso em prejuízo à integridade dos praticantes de religiões afro-brasileiras, que há tempos sofrem com o aumento da violência religiosa.

 

Um terceiro aspecto da laicidade está no dever de o Estado, nas relações que pode e deve ter com organizações e lideranças religiosas, guardar equidistância em relação a todas elas. Isso implica não usar a estrutura, os recursos, a simbologia e a legitimidade inerentes às instituições públicas para favorecer certas religiões e prejudicar outras. É o que chamamos de neutralidade axiológica (Gilmar Mendes) ou imparcialidade (Joana Zylbersztajn) – que, pelos deveres de reconhecimento e dever de proteção, não podem ser confundidos com um suposto dever de total absenteísmo do Estado em tudo aquilo que diga respeito a religião.

Não há problemas em um Estado reconhecer que manifestações de fundo religioso integram o patrimônio cultural e histórico do país, por exemplo. Há prédios de igrejas e conventos de inegável valor histórico e arquitetônico; e há eventos essencialmente religiosos, como a Lavagem de Nosso Senhor do Bonfim e o Círio de Nazaré, que são também eventos culturais de valor em qualquer acepção do termo.

O xis da questão está em observar se, na relação entre o poder público e as diversas denominações religiosas, não deve haver favorecimento simbólico e material excessivo de umas em detrimento das demais. O ônus histórico, nesse aspecto, vai contra o cristianismo, cujo reconhecimento simbólico domina a vida material brasileira, a começar pelos feriados religiosos oficiais. Assim, não necessariamente ferem a laicidade estatal as leis municipais, estaduais e federais que estendem o reconhecimento a outras religiões, como a lei fluminense que institui o dia da umbanda e do umbandista ou as leis federais que criam dias nacionais dedicados à celebração do espiritismo e da comunidade judaica. Vale destacar que a comunidade neopentecostal também tem um dia para chamar de seu, instituído, aliás, no segundo mandato de Lula, que sancionou a lei federal que oficializou o Dia Nacional da Marcha para Jesus.

A exigência de neutralidade, ou imparcialidade, sugere que há problemas em o governo Bolsonaro haver paulatinamente se transformado, do ponto de vista simbólico e material, em uma espécie de regime de fé única. Por isso, o fato de que sua campanha esteja flertando com a possibilidade de fazer publicidade negativa de Janja, a esposa de Lula, por sua associação a religiões de matriz africanas, e destas com “demônios” e “trevas”, abrirá espaço para intervenção da Justiça Eleitoral – quando não por processos criminais ordinários, por prática de racismo. 

Ninguém deve poder disputar eleições com uma plataforma política que acene com chancelas, explícitas ou veladas, à intolerância racial ou religiosa contra um grupo, e favorecimento explícito a outro. Isso equivaleria à promessa de sectarismo religioso como agenda de governo, algo obviamente não permitido pelas leis brasileiras. A interferência se justifica porque uma plataforma dessa natureza causa danos ainda que a candidatura que as veicula não vença a eleição: o simples reforço, na arena dos debates políticos, à ideia de que o combate a certas raças e fés é uma posição política legítima já serve para difundir a percepção de que a violência religiosa é uma ação esperada, quando não exigida, de seus apoiadores. É justamente para evitar a consolidação dessa visão que a Constituição promete combater todas as formas de discriminação e manda punir o racismo. 

Se há debates sobre o que pode ser dito por líderes religiosos em celebrações e liturgias, que explicam a ressalva feita pelo STF na decisão que reconheceu que homofobia e transfobia são crimes, essa polêmica não tem lugar em atos de campanha. E antes que alguém tenha a ideia, vale destacar que a simples transposição do discurso de campanha para o interior de igrejas e templos não elimina a ressalva: a lei eleitoral proíbe “propaganda de qualquer natureza”, positiva ou negativa, nos “bens de usos comum”, entre os quais se incluem os prédios religiosos.

Ainda no aspecto da neutralidade ou imparcialidade, a laicidade proíbe o favorecimento material excessivo de certas denominações em prejuízo de outras. Há que se cuidar, enfim, para que, a pretexto do reconhecimento à religião e da possibilidade de colaboração de interesse público, não se pratique a boa e velha corrupção, tanto no sentido amplo do termo, proposto por Conrado Hübner Mendes, quanto no mais estrito, como o toma-lá-da-cá que supostamente envolveu pastores evangélicos com status de autoridade no MEC de Jair Bolsonaro. 

Vendilhões do templo encontraram oportunidades únicas de trabalho nos últimos anos no Brasil. Nunca houve tanto dinheiro para comunidades terapêuticas administradas por denominações cristãs, tanto católicas quanto evangélicas. São o braço lucrativo das políticas de repressão criminal ao uso de drogas defendidas com afinco pela Bancada Evangélica e por aliados fiéis de Bolsonaro, como Osmar Terra, onde se pratica amplo proselitismo religioso bancado com dinheiro público. Mas essa pressão não nasceu com Bolsonaro, nem morrerá com o fim de seu governo. Aqui vale menos o Evangelho de Mateus (22:21), que narra o episódio em que Jesus ensinou a seus interlocutores o desapego às moedas estampada com o rosto de César, e mais o bom e velho conselho de outro imperador romano, Vespasiano: “dinheiro não tem cheiro” (pecunia non olet), vença a esquerda ou a direita.