Ilustração: Carvall
Entre a urna e o tubo de ensaio
Bancada da ciência luta por verba, autonomia universitária e força política
Todo dia, a virologista Clarissa Damaso, de 58 anos, acorda às 6h15 e encara 30 km de carro – percurso que às vezes leva uma hora e meia – até o Laboratório de Biologia Molecular de Vírus da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), liderado por ela. Chegando lá, verifica os experimentos que serão realizados naquele dia pelos alunos e discute com eles qual é o melhor método para cada um. Também observa os resultados do dia anterior: confere as amostras de vírus coletadas em microtubos de até 1,5 ml e armazenadas em freezers sob a temperatura de -80ºC. Em junho deste ano, Clarissa soube que as mais de quinhentas amostras colhidas durante três décadas de laboratório podem ser perdidas a partir de setembro, quando a maior universidade federal do país está ameaçada de não ter mais como pagar as despesas básicas, inclusive contas de luz. Sem energia elétrica, tudo que está nos freezers terá de ser jogado fora. Resta à pesquisadora a apreensão de ver os tubos, a pesquisa, o trabalho todo do laboratório, sob ameaça de apagão. “Isso é precioso, não tem reposição”, diz.
Durante as exaustivas dez horas de trabalho diárias, Damaso precisa ficar sempre de olho no e-mail: é por ali que saem os resultados dos diagnósticos de varíola dos macacos produzidos pelo laboratório. Desde maio, o grupo presta serviço para o Ministério da Saúde na testagem de pacientes com suspeita da doença. Integrante do Comitê de Emergência da Organização Mundial da Saúde (OMS), Damaso trabalha com essa família de vírus há cerca de trinta anos. Mas a contínua falta de verbas precariza a infraestrutura do laboratório e inviabiliza as pesquisas sobre a varíola dos macacos. Para fazer o sequenciamento de apenas um genoma de monkeypox, por exemplo, é preciso desembolsar 2 mil reais. Uma placa de plástico para cultivo de células custa em torno de 11 reais. A cada dia, vinte são usadas – o que significa um investimento de 4,4 mil reais por mês, considerando vinte dias de trabalho. Na situação financeira atual, o laboratório não terá como fazer o sequenciamento do genoma do vírus da varíola de macaco. “Podemos virar meros envasadores de vacina”, alerta a chefe do laboratório.
No mês de junho, o Ministério da Educação anunciou um corte de 1,6 bilhão de reais no orçamento de universidades e institutos federais para este ano, encolhendo em 7,2% a verba da UFRJ e de todas as outras. Em torno de 12 milhões da UFRJ ficaram nas mãos do Executivo. O que antes era comprometedor agora é caótico: sem esse bloqueio, a universidade terminaria o ano de 2022 com dívidas na casa dos 60 milhões de reais; com ele, o mês de setembro já inicia no vermelho. A UFRJ adiou alguns pagamentos para o ano que vem, mas um dia a conta chega. “Estamos correndo risco de longo prazo. Se o orçamento não mudar, vamos fechar no próximo mandato”, alerta o vice-reitor da universidade, Carlos Frederico Leão.
Nos últimos dez anos, a UFRJ sofreu uma redução de aproximadamente metade do seu orçamento, em valores corrigidos. Em 2012, as verbas totalizavam 725 milhões de reais; neste ano, chegam a apenas 317 mi – uma realidade que é sentida por todas as universidades federais brasileiras. O desmonte das áreas da ciência e da educação foi intensificado com a aprovação da Emenda Constitucional do Teto de Gastos Públicos no final de 2016, mas o cenário piora a cada ano que passa. De 2018 a 2021, as verbas do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações diminuíram dois terços, passando de 9 bilhões para menos de 3 bilhões de reais, segundo levantamento da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
Em ano eleitoral, ex-reitores, pesquisadores, professores e lideranças da comunidade científica se juntaram e se apresentaram à sociedade como pré-candidatos ao Congresso Nacional, governos estaduais e às Assembleias Legislativas. O manifesto “Educação e Ciência para Reconstruir o País” é suprapartidário e, ao todo, há pelo menos cem candidatos nessa situação. A tentativa de formar a tal bancada da ciência e da educação parte, além da pindaíba generalizada, de propostas para garantir a sobrevivência de projetos e pesquisas. Entre essas propostas está o maior respeito do governo pela autonomia universitária, garantindo que a gestão das universidades públicas não sofra tanta interferência do Executivo como vem acontecendo – ao arrepio da lei. Até julho de 2021, Bolsonaro, em 40% das nomeações para reitor das federais, desconsiderou o primeiro indicado da lista tríplice, resultante da votação entre professores, estudantes e técnicos.
Outra reivindicação dos candidatos da “bancada da ciência” é a urgente atualização na oferta e nos valores das bolsas de pós-graduação, que tiveram o último reajuste em março de 2013. Hoje a bolsa de mestrado é 1,5 mil reais, e a de doutorado 2,2 mil. Se tivessem sido atualizadas pela inflação dos últimos anos, chegariam a 2,6 mil e 3,8 mil, respectivamente. A péssima remuneração dos pesquisadores é uma das principais causas para algo que preocupa cientistas brasileiros: a evasão de cérebros, com talentos jovens e outros nem tanto indo morar no exterior, onde recebem apoio para integrar grupos de pesquisa em universidades e centros de pesquisa. Mais de 90% da ciência produzida no país é feita dentro de universidades públicas. Com o salário congelado e a falta de infraestrutura, pesquisadores extremamente qualificados estão deixando o país para tentar garantir uma carreira mais estável em países desenvolvidos.
Outra proposta que unifica os candidatos é a revogação da Emenda Constitucional 95, que, na prática, inseriu os setores da ciência e da educação numa camisa de força. A Lei do Teto de Gastos Públicos limita o crescimento das despesas com base na inflação registrada em doze meses. Para não ultrapassar o teto, o corte geralmente acaba sobrando para as duas áreas. O manifesto também vai contra a Medida Provisória 1.112 (MP da Sucata), aprovada neste mês pelo Congresso, que desobriga as empresas do setor de óleo e gás, como a Petrobras, a investir parte dos lucros em pesquisas científicas e tecnológicas, destinando-os ao desmanche de caminhões velhos. Por fim, o documento alerta sobre o desbloqueio de mais da metade das verbas destinadas ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) – na casa dos 2,5 bilhões de reais. O valor já foi liberado pelo governo federal, mas as verbas ainda correm o risco de serem repassadas para outras áreas.
A ideia de criar uma bancada da ciência não é nova, mas este ano agregou cientistas que estavam longe das disputas partidárias. A ideia teve início numa conversa entre dois ex-reitores de universidades federais do estado de Goiás em janeiro deste ano. Ambos comentaram o desejo de entrar na política, principalmente pelo fato de a ciência estar subrepresentada no Congresso e, com isso, não ter força para defender suas pautas. O papo foi se expandindo e os dois perceberam que muitos reitores estavam dispostos a enfrentar uma eleição. Autoridades do setor também se somaram ao grupo, como o presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação no segundo governo Dilma Rousseff, e o ex-presidente do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Ricardo Galvão, candidato a deputado federal pela Rede Sustentabilidade, no estado de São Paulo.
No final de janeiro deste ano, a iniciativa foi oficializada num – primeiro – encontro online. A corrente ganhou ainda mais força quando um coletivo que tentou eleger profissionais da ciência na última eleição presidencial, em 2018, chamado Cientistas Engajados, se juntou ao movimento. “De lá para cá, a gente tem participado de várias batalhas públicas nas redes sociais e demonstrações dentro do mundo político para tentar convencer o poder público sobre a importância do investimento em pesquisa”, diz a coordenadora do grupo, Mariana Moura, candidata a deputada estadual pelo PCdoB, em São Paulo. Segundo ela, o Brasil atual impede o livre exercício da curiosidade do cientista. Entre a terceira e a quarta live, já em março, foi criado o manifesto. Mais de quarenta pessoas assinaram o documento.
“Ações contrárias ao avanço da ciência fragilizam a democracia. Precisamos de políticas públicas que levem em conta evidências científicas”, comenta Renato Janine Ribeiro sobre o atual momento do país. Segundo a presidente da Academia Brasileira de Ciências, Helena Nader, as entidades terão “um papel importante de constante acompanhamento, sugestão e cobrança” aos participantes que forem eleitos. Quatro meses depois do primeiro encontro virtual da “Educação e Ciência para Reconstruir o País”, no início da noite do dia 26 de julho aconteceu o primeiro ato público em defesa da formação de uma bancada de educação, ciência e tecnologia no Brasil. Diretores de entidades científicas, apoiadores e mais de vinte candidatos estavam presentes. O evento ocorreu durante o maior encontro científico da América Latina, a 74ª edição da Reunião Anual da SBPC, realizada na Universidade de Brasília (UnB), com um público de aproximadamente 40 mil pessoas ao longo dos dias.
Quem está na ponta da pesquisa científica sabe, porém, que mudar o Congresso é só o começo. “As pessoas acham que, se o governo mudar, tudo voltará às maravilhas no dia seguinte. Mas a gente vai precisar recuperar a casa toda bagunçada”, diz Clarissa Damaso. Em dezembro do ano passado, a virologista foi um dos alvos do negacionismo científico que tomou conta do país. “Tem que levar uma coça”, “Alguém precisa mandar prender essa louca varrida”, “No mínimo essa mulher feia pra car…. Deve ser uma solteirona que nem filhos tem!!!”, escreveram alguns negacionistas no Twitter após a pesquisadora defender a vacinação de crianças contra a Covid, pois, sem ela, poderiam agir como “depósito do vírus”. Ela precisou encerrar a conta em algumas redes sociais, mas sofre ofensas até hoje. “Apaguei várias mensagens porque me faziam mal”, diz. Na ciência, o legado de desmonte deixado pelo governo Bolsonaro produziu feridas que vão demorar a cicatrizar.
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