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    Essas são as marcas em processos eleitorais que a extrema direita tenta perenizar: política do assédio religioso, do uso do dinheiro público para a compra de votos, da desorientação constante entre notícias verdadeiras e falsas Ilustração: Carvall

colunistas

A extrema direita aposta na exaustão

Assédio religioso, compra de votos em escala industrial e tsunami de notícias falsas integram o novo modus operandi

Ana Carolina Evangelista | 24 out 2022_13h15
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Além dos impactos sobre políticas públicas e sobre um projeto de país pautado por nacionalismo, conservadorismo cristão e masculinismo branco, a extrema direita já deixou marcas no processo eleitoral brasileiro. Com a fadiga e a tensão de uma das disputas à Presidência da República mais violentas desde a redemocratização, apenas aparentemente a religião, o dinheiro público e a verdade perderam feio em 2022. Mas no fim das contas, se permitirmos que essas marcas se enraízem e se sustentem no tempo, perderemos todos, inclusive quem busca o fortalecimento de uma direita democrática no Brasil.

A derrota é também da política. Já estávamos diante de uma nova política, com a qual muitos ainda não sabemos lidar. Em 2018 já havia ganhado força o discurso da não política, arremedo retórico para justificar voto em quem não respeita a democracia. Seguimos com supostos políticos anti-establishment defendendo lutar contra todo e qualquer obstáculo institucional “à liberdade” (de quem?) e, este ano, avançamos um pouco mais nesse desvio de rota na forma de se fazer política e campanhas eleitorais. É uma crise de modelo que vai além do abalo da chamada democracia liberal, ou de “recessão democrática”, conceito utilizado por muitos para descrever o nosso presente e prever o nosso futuro.

Seguimos, seguiremos, numa eleição da disputa política digital. Como escreveu Rosana Pinheiro-Machado, “há uma sofisticação e diversificação nos modos de recrutamento político online com o crescimento dos reels do Instagram e do TikTok”. Ela mostra que, no universo do empreendedorismo digital, influenciadores digitais, pastores, investidores e coachs motivacionais passaram a formar um ecossistema de influência política. Como tais, não são apenas disseminadores de notícias falsas como também vendedores de ilusões: a promessa de uma vida boa que caminha lado a lado com o alinhamento ideológico baseado em crenças econômicas e morais. O binômio do Bispo e do Banqueiro, como já tratamos aqui.

Assédio religioso, com louvor e mentiras

Falsas notícias também se amalgamaram com o assédio religioso. Portais e redes sociais evangélicos, com seus milhões de seguidores, fizeram campanha aberta para o presidente Jair Bolsonaro. Até aí, legítimo. O problema surge e se intensifica na medida da desfaçatez da disseminação de mentiras. Numa delas, o influenciador Vicky Vanilla, que se autodenomina satanista, previa a vitória do PT no primeiro turno e associava o satanismo ao partido de Lula. O conteúdo foi fartamente reproduzido pelo portal Gospelmente, até o TSE determinar a remoção do conteúdo por considerar notícia falsa, ou no português claro: mentira.

Para além da cruzada política em defesa de Bolsonaro, muitos sites – como mostrou João Batista Jr.– apelaram para conteúdos de desinformação e anti-PT. Se até 2013 veículos, sites e redes sociais religiosos abordavam prioritariamente temas ligados à vida interna das igrejas, passou a ser comum a publicação de conteúdos com fins políticos e ideológicos: da perseguição contra cristãos a supostas ameaças da esquerda a determinados mercadores da fé.

O assédio religioso vai além. Chamou a atenção, por exemplo, o encontro do candidato a vice-presidente na chapa de Bolsonaro, general Braga Netto, com lideranças religiosas na Igreja Batista Getsêmani, em Belo Horizonte. Nele, materiais de campanha foram fartamente distribuídos a evangélicos. Com presença de bolsonaristas de peso como os deputados eleitos Nikolas Ferreira (PL) e Bruno Engler (PL-MG), o senador eleito Cleitinho Azevedo (PSC) e o governador reeleito Romeu Zema (Novo), os materiais de campanha falavam em “terrorismo moral”, citando Lula como “destruidor da família tradicional” que vai “legalizar práticas imorais com crianças e animais”. Bolsonaro, por outro lado, era apresentado como defensor da “vida sagrada, direitos do cidadão e da liberdade de expressão”.

No jogo pesado das pressões religiosas, pastores dissidentes se viram ameaçados por seus posicionamentos políticos. Muitos deles relataram sofrer represálias por declararem voto no ex-presidente Lula.

 

Votos comprados a rodo em plena luz do dia

O cenário desolador de um processo eleitoral que pareceria distópico se não retratasse a pura realidade completa-se com o resultado colhido pelo orçamento secreto, acertadamente descrito por muitos como um dos maiores esquemas de corrupção do planeta. Um orçamento paralelo bilionário em emendas, montado com intenção de aumentar a base de apoio governista no Congresso. Como descreveu o jornal Estadão, o orçamento é secreto, mas a aberração é às claras, uma vez que parlamentares e governo convertem o orçamento público em instrumentos de jogadas eleitoreiras. A verba, afinal, é distribuída de forma desigual conforme a conveniência política do governo e do presidente da Câmara dos Deputados, que determinam a quanto cada parlamentar terá direito.

Como demonstrou o repórter Breno Pires, aqui na piauí, pelo menos 140 deputados federais foram reeleitos com o apoio das verbas do orçamento secreto. Essa turma pertence especialmente ao Centrão (PL, Republicanos, PTB, União Brasil, PSC, PP e Patriota), mas também há parlamentares do MDB, PSD, PSDB e Podemos. Só no PL de Bolsonaro foram sessenta deputados reeleitos com a mão invisível do orçamento secreto, pois puderam destinar às suas bases 1,6 bilhão de reais das chamadas emendas de relator. O valor total, porém, chega a incríveis 6 bilhões de reais nas emendas de relator – valor superior aos 4,9 bilhões de recursos do fundo eleitoral distribuído entre todos os partidos.

Essas são as marcas em processos eleitorais que a extrema direita tenta perenizar. A política do assédio religioso, a política do uso do dinheiro público para a compra de votos em formatos e patamares impossíveis de se fiscalizar, a política da desorientação constante entre notícias verdadeiras e falsas, favorecida pelos algoritmos das redes sociais e pela não regulação de ferramentas como WhatsApp e Telegram. Tudo isso regado ao incentivo do uso da violência de diferentes formas e ao velho método de candidaturas que, na ausência do que dizer, resgatam medos olhando para o retrovisor, enquanto aquelas que têm o que dizer precisam passar toda a campanha esclarecendo teorias da conspiração de toda ordem. Eleições emblemáticas nesse sentido e, por isso mesmo, exaustivas e sombrias.

A exaustão se justifica. Ninguém quer ter todos os seus espaços de socialização, de atividade profissional ou de acolhimento espiritual tomados ininterruptamente por perseguição política. Ninguém quer se sentir desinformado ou enganado por notícias falsas o tempo inteiro. 

A extrema direita aposta justamente na exaustão para que ela leve ao apoio de suas promessas salvadoras ou, pelo menos, à indiferença com relação a qualquer espécie de participação política. E é por isso que o processo eleitoral que termina esta semana é tão crucial. Precisamos dar uma mensagem clara de que não deixaremos esses contornos definirem nossos processos eleitorais daqui em diante. Seja para elegermos forças de esquerda ou da direita democrática no futuro próximo.