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    O candidato Lula no primeiro debate presidencial - Crédito: Renato Pizzutto/Band

colunistas

Lulalá, voto intransitivo

Riscos à democracia são muito sérios para que o fundamental seja adiado uma só gota de segundo

Marcelo Paixão | 27 set 2022_10h57
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Chegamos na semana do primeiro turno das eleições gerais do país em 2022. Ufa. Parecia que o pesadelo não tinha hora para acabar. Todavia, talvez as coisas não sejam assim tão simples. O que exatamente está para acabar? O que precisamente precisa acabar?

Nos artigos que escrevi aqui na piauí ao longo das últimas semanas, já comentei a sombria convergência atual entre o totalitarismo digital pós-moderno no plano global e a nossa memória histórica do “Brasil profundo”, que finca suas raízes no longo legado da colonização, da escravidão, dos pactos oligárquicos, das ditaduras e dos ciclos de modernização conservadora do século XX. Por outro lado, é sempre necessário colocar em questão os motivos de aquela convergência reacionária ter agregado tanta força neste exato momento. Na história brasileira nunca deixou de haver candidatos a Mussolini ou que tais, aqui de relance me vindo à cabeça Plínio Salgado, em 1955, e o “meu nome é” Enéas, em 1989, 1994 e 1998. De qualquer sorte, até o começo da década passada, as elites econômicas e políticas brasileiras, se não os rejeitaram de todo, souberam manter certa distância desses políticos mais histriônicos. Mesmo com toda fanfarronice, Jânio Quadros não parece se encaixar nesse modelo de político de extrema direita, isso fora não ter recebido o apoio dos donos do poder no momento derradeiro de sua renúncia em 1961. Por que será que no corrente tempo expressivos segmentos daquele campo mudaram de ideia?

As razões certamente são mais complexas do que poderei tratar neste espaço. Mas não considero simplista a hipótese de que, se assim o fizeram, foi porque nunca viram motivos para apoiarem candidatos de fora do sistema. Os arranjos conservadores “pelo alto”, centralizados por um Estado sempre dominado por seus interesses e animados pelo modelo dependente e periférico em relação ao sistema produtivo e financeiro internacional, permitiram que o jogo pudesse ser jogado dentro da lógica da “conciliação” inter-oligárquica, tal como contado pelo historiador José Honório Rodrigues. 

Segundo dados organizados por Nelson Barbosa, ex-ministro da Fazenda e professor da Fundação Getulio Vargas (além de meu ex-colega no meu querido Instituto de Economia da UFRJ), entre a Revolução de 1920 e até o final dos anos 1970, o Brasil cresceu a um robusto patamar de 4% ao ano, fazendo com que no mesmo período o PIB per capita crescesse quase quatro vezes. Desde então, o PIB per capita brasileiro decresceu em duas décadas (1980 e 2010) ou cresceu abaixo da média global em outras duas (1990 e 2000). Por outro lado, certamente seria um economicismo imperdoável supor que a forma da hegemonia burguesa seja produto exclusivo do ritmo das taxas de crescimento econômico, sem levar em consideração outros fatores reportados ao plano cultural e simbólico e à forma pela qual o resultado da atividade econômica é distribuído entre os cidadãos que formam a unidade nacional. 

Começando pelo lado imaterial, o positivismo e as ideologias nacionais de formação do povo brasileiro, especialmente a democracia racial (tal como destacado pelo sociólogo Antonio S. Guimarães e pela historiadora argentino-americana Paulina Alberto) e o homem cordial, se combinaram harmônica e instrumentalmente com o modelo desenvolvimentista brasileiro. Por sua vez, o cientista político americano Michael Hanchard emprega um conceito de Antonio Gramsci, o de bloco histórico, para a análise das relações raciais brasileiras. Da soma dessas contribuições, isso implica que aquelas ideologias de democracia racial e cordialidade foram capazes de forjar uma imagem de integração nacional que colocavam trabalhadores e afro-brasileiros (nesse terreno, os povos originários e a regular violência contra eles cometida passam por uma outra discussão) no seu devido lugar, transformando-os em confiáveis parceiros menores do arranjo nacional-desenvolvimentista. 

No plano material, o modelo econômico desenvolvimentista, especialmente após o golpe de 1964, se caracterizou pelo seu aspecto retrógrado do ponto de vista da concentração de renda. Após a década (perdida) do milagre, o Brasil chegou a 1980 carregando consigo um coeficiente de Gini de 0.584 — relembrando que o índice varia entre 0 e 1, sendo tanto maior quanto o nível da desigualdade. O país foi se consolidando como um dos de maior desigualdade em todo o mundo. A hiperinflação e o baixo nível de crescimento dos anos 1980 e começo dos 1990 só fizeram piorar essa situação, especialmente para os mais pobres. Em 1989 aquele coeficiente já alcançava 0.636. Ora, portando níveis de assimetria tão elevados, como essa “tralha imensa chamada Brasil” – agora recorrendo a Chico Buarque – fazia para seguir em frente? O que lhe garantia uma coesão mínima para que o caos não tomasse conta do país?

Se os mitos de democracia racial e cordialidade ajudaram a criar um ambiente sócio-político de colaboração com o Estado desenvolvimentista, pensando em termos de “feijão com arroz na mesa”, o que contribuía para amenizar os conflitos sociais era a própria solução brasileira do “salto para a frente”. Cada nova onda de modernização conservadora (Plano Quinquenal dos anos 1940, Plano de Metas, Milagre Econômico, II Programa Nacional de Desenvolvimento do general Geisel) propiciava o crescimento do emprego formal, da massa salarial, das migrações interregionais, garantindo algum nível de mobilidade social, ainda que em geral de passo curto, para as camadas mais baixas. Ademais, mesmo que uma boa parte da população brasileira subsistisse na informalidade, os trabalhadores dos ramos de atividade mais dinâmicos (dentro do modelo da “cidadania regulada”, tal como no conceito do cientista político Wanderley G. dos Santos) e as classes médias de colarinho — e cor de pele — brancos eram numericamente expressivos, permitindo que o mercado interno fosse dinâmico mesmo diante de tantas assimetrias. Em suma, no plano sociológico, o modelo desenvolvimentista nacional administrava suas elevadas doses de injustiça social, racial e de gênero através da acomodação dos interesses dos múltiplos segmentos da sociedade em termos simbólicos e materiais mesmo que exíguos, insuficientes ou meramente ilusórios. Contudo, com a crise da dívida nos anos 1980 e a subsequente crise hiper-inflacionária, tal como nas brincadeiras infantis, acabou-se o que era doce.

A experiência histórica nos conta que modelos de desenvolvimento são produto das condições econômicas e financeiras, mas também das correlações de forças entre os setores da sociedade e os consensos que podem emergir desses conflitos distributivos, convergências estas que englobam a disposição dos segmentos mais bem posicionados na pirâmide social de aceitarem novos pactos redistributivos. Nos países escandinavos, as elites locais foram paulatinamente aceitando a ideia de que entre elas e o seu povo a diferença era de condição socioeconômica, mas que eles faziam parte do mesmo todo para finalidades da construção da identidade nacional. Aqui não estou idealizando aqueles países. Por exemplo, em nome da eugenia, até nem tanto tempo atrás, todos eles imitaram os nazistas nas técnicas de esterilização em massa dos “indesejáveis”. Mas daquelas experiências podemos depreender que não há políticas de crescimento econômico com equidade sem um mínimo de empatia dos setores dominantes perante seu povo. Isso permite a construção e consolidação das políticas de bem-estar social através da distribuição de renda. Na sua ausência, lasca-se na cabeça dos de baixo as leis do mercado, corte de gastos, redução do escopo da legislação trabalhista e do sistema de proteção social, rottweilers, caveirão e chumbo de cima de helicóptero.

A empatia da elite pelo próprio povo raramente se fez presente no Brasil e no conjunto da América Latina, especialmente quando envolvia os povos originários e os descendentes dos escravizados de peles escuras. Não estou falando de folguedos e folclores, mas de políticas públicas de bem-estar eficientes e amplas, fundadas nos parâmetros da justiça distributiva. Dentro desse cenário, qualquer tentativa de mudança do perfil da distribuição da renda costuma enfrentar caninas resistências, materiais e simbólicas, por parte do conjunto dos segmentos dominantes. O atual mandatário e seus asseclas e capangas mais próximos portam consigo valores éticos e uma visão de mundo absolutamente desprezível e repugnante. Mas por que eles não estão sozinhos nessa aventura? E o que isso tem a ver com o nosso curtíssimo prazo?

No dia 8 de dezembro de 2019 publiquei na Folha de S.Paulo o artigo intitulado “Brasil 2019: prelúdio em dó maior”. Procurando refletir sobre o que estava acontecendo após um ano de desgoverno, fui premonitório ao dizer que entravam em cena o totalitarismo e o cortejo de desgraças que costuma segui-lo. Teria sido melhor se tivesse apostado na loteria. Dali em mais dois meses veríamos toda a estupidez do negacionismo oficial transformado no saldo de quase 690 mil brasileiros mortos pela Covid e levando à absurda desproporcionalidade entre o peso relativo da população brasileira na população mundial, 2,7%, e no total de mortos na pandemia, 10,5%. 

Agora o pesadelo já está para completar quatro anos. Foi o tempo necessário para que perdêssemos 31 mil km2 da Floresta Amazônica (dados da WWF, 2022), tivéssemos 3,3 mil hectares ocupados pelo garimpo ilegal apenas na área Yanomami (Relatório Yanomami sob ataque, 2022), e 18.908 pessoas fossem assassinadas pela bestialidade policial, sendo cerca de 84% pretos e pardos (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2022). Em um país onde o agro seria supostamente pop, conseguimos atingir o aterrador cenário de 33,1 milhões de brasileiros passando fome e mais da metade (58,7%) da população brasileira convivendo com alguma insegurança alimentar em algum grau (II Vigisan, 2022). Tivemos de assistir à concessão de mais de um milhão de registros de armas para caçadores, atiradores e colecionadores espalhados em 123 clubes de tiro e caça por todo o país, listados no site da Confederação do Clube de Tiro e Caça do Brasil. Isso fora uma inflação acumulada em quatro anos de mais de 25%, em um país fundamentalmente estagnado economicamente, e o criminoso sequestro das contas públicas pelos neo-Anões do bizarro, incompreensível e inaceitável orçamento secreto em plena vigência da Lei do Teto de Gastos (!). 

Subordinadas à doutrina do novo Comandante-Chefe, mesmo as Forças Armadas brasileiras, que desde o começo dos anos 1990 até 2018 haviam conseguido manter uma postura respeitável no que tange ao funcionamento do sistema institucional do país (e com isso colhendo os frutos de uma admiração geral pelo seu profissionalismo e seriedade), indicam aceitar o desvirtuamento de sua missão constitucional, passando a tentar interferir em assuntos para os quais não têm nenhuma atribuição — como a tentativa de fiscalização do processo eleitoral e o questionamento das urnas eletrônicas. Sim, lá estamos nós, de novo, com a tarefa de exorcizar fantasmas que insistem em assombrar as Republiquetas de Banana latino-americanas. 

É neste cenário que Bolsonaro chega ao dia 2 de outubro de 2022: com um terço das intenções de voto (pesquisa DataFolha de 22/09/22), em primeiro lugar em sete unidades da federação (pesquisa Ipec de 25/09/22). Seu programa de governo pode ser mensurado pelos danos que causou ao Brasil nestes últimos quatro anos. Trata-se de destruir a democracia e o patrimônio natural, cultural e científico do país, massacrar os povos indígenas, acabar com as políticas de proteção à mulher e de igualdade racial, reduzir o escopo das políticas de proteção social, entregar aos neo-Anões do Orçamento amplos poderes para destinarem os fundos públicos como quiserem e armar os seus jagunços e pistoleiros para impor sua vontade ao povo brasileiro pela força. É a burrice do negacionismo, do terraplanismo e da transformação do Brasil em pária internacional. É a covardia da humilhação, da violência e da estupidez contra os mais fracos. Ambas, essa dupla, a burrice e a covardia, elevadas à condição de política de Estado. 

Basta! Chega!!

Parece que o saudoso Dr. Ulysses Guimarães usava muito a expressão “Sua Excelência, o fato”, para indicar os irrefutáveis aspectos da realidade imediata que não poderiam ser ignorados pelos que participavam do jogo político. Respeito todos os candidatos e candidatas de oposição. Cada contribuição para mudar a tragédia atual é certamente muito bem-vinda. Aliás, anseio para que um dia cada um dos 215 milhões de brasileiros, ao invés de almejarem treinar a seleção nacional de futebol, queiram se candidatar à Presidência da República com ideias originais e inovadoras sobre o futuro do país. Mas é aquela distinta excelência, o fato, que agora nos convoca. Os riscos que a democracia brasileira corre são muito sérios para que o que tem de ser feito seja adiado uma só gota de segundo, quanto mais um mês. Não se dá mole com o fascismo, com o nazismo ou com qualquer geleca assemelhada. Essa cambada foi capaz de desrespeitar o sepultamento da Rainha Elizabeth II em Londres em meio a um estado de comoção nacional naquele país. Imagina do que seriam capazes no dia em que tivessem absolutos poderes no Brasil.

Nesta semana, é tarefa de todo brasileiro e brasileira lúcido e do bem ajudar a mandar o candidato à reeleição para a lata de lixo da história! Não desperdicemos esta chance. Há uma chapa de oposição com chances de vitória no primeiro turno nas eleições presidenciais e é por isso que neste domingo votarei nela. Para falar a verdade, votaria em qualquer candidato ou candidata que tivesse as mesmas chances, fosse essa pessoa de esquerda, de centro e mesmo de direita. Ademais, para além de pesquisas eleitorais, o histórico de conciliação e diálogo que Lula e Alckmin portam os tornam os nomes ideais para o momento institucional traumático que atravessamos. Aprendamos a ler a história brasileira e mundial e vermos os riscos que o totalitarismo carrega. 

Chego ao final expressamente citando Mário de Andrade, que me inspira um artigo cujo título se baseia no de seu romance Amar verbo intransitivo. E pedindo permissão para uma certa licença com as regras gramaticais mais elementares da língua portuguesa. Democracia, liberdade, justiça social, direitos humanos, imprensa livre, igualdade de gênero e respeito aos não binários, demarcação de terras indígenas, preservação dos nossos ecossistemas, combate às discriminações e ao racismo, ação afirmativa, proteção à juventude como um todo e à juventude  negra em particular, defesa dos mais idosos, vergonha na cara. Agora é transformar estas palavras e expressões em “intransitivas”. Tal como o verbo, eles não demandam complementos para constituir o predicado. São valores e verdades autodefinidos e que devem ser defendidos enquanto um ente em si. Ontem, hoje e sempre.

Quem vota, vota em alguém. É por isso que meu voto no dia 2 de outubro também será intransitivo. É Lulalá. É Lulajá!

 

*

Para deputado federal e estadual recomendo aos meus distintos leitores que votem em uma mulher negra, cis ou trans, candidata por algum partido de esquerda, especialmente ao Psol ou à Rede, conjunto de agremiações partidárias às quais não sou filiado e com os quais não possuo quaisquer vínculos ou interesses profissionais ou pessoais. Tal como diz a belíssima composição de Adilson Barbado, Jair e Jorge Portela, além de seu sorriso e abraço trazer felicidade, “negro é a raiz da liberdade”.