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No gogó e na bala

Retórica bolsonarista e aumento da circulação de armas são ingredientes do caldo de medo eleitoral engrossado ano após ano

Pablo Nunes | 02 out 2022_20h29
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Em 2020, na primeira eleição sob a gestão Bolsonaro, os casos de violência contra políticos marcaram a disputa. Durante aquele ano, dezenas de candidatos e políticos cumprindo mandato foram assassinados ou sofreram atentados contra suas vidas. Naquele ano, reuni cada um desses casos em um banco de dados e cheguei ao total de 221 políticos vítimas de agressões e homicídios no Brasil. Publiquei na piauí algumas reflexões sobre os casos quase diários de violência. Passados dois anos, e em meio a muitas ameaças à democracia, aliadas a um aumento do número de armas em circulação, chegamos a 2022 estarrecidos com o clima de tensão e medo instalado na sociedade. E a violência que atingiu políticos transbordou: agora afeta militantes e eleitores.

A violência contra políticos não é algo novo no Brasil. Prudente de Moraes, o terceiro presidente do Brasil República, sofreu um atentado quando participava da cerimônia de recepção dos militares que massacraram o arraial de Canudos. Por imperícia, a facada destinada ao presidente acabou atingindo o ministro da Guerra, que faleceu. O candidato a vice-presidente na chapa de Getúlio Vargas, João Pessoa, foi assassinado por seu opositor político, João Duarte Dantas, que alegava sofrer perseguição de Pessoa, então presidente do estado da Paraíba. O caso, que apesar do pano de fundo político tinha motivação passional, acabou sendo usado pela campanha de Getúlio como um símbolo da violência dos opositores. O atentado a Carlos Lacerda em 1954, as bombas detonadas durante a ditadura civil-militar, todos esses episódios são retratos de uma história política marcada pela violência.

Apesar de as raízes da violência política serem mais antigas, 2018 pode ser entendido como um ponto de virada para explicar o que ocorreu em 2022. Não é por acaso que Mário Magalhães escreve uma biografia de 2018. Entre as lutas e as lágrimas que derramamos naquele ano, assistimos à morte de Marielle, a quinta vereadora mais votada do Rio de Janeiro em 2016, executada no Centro da segunda maior cidade brasileira. Foi também naquele ano que testemunhamos o atentado contra a caravana de Luiz Inácio Lula da Silva e a facada que atingiu o então candidato Jair Bolsonaro. A violência política não ficaria restrita aos candidatos e políticos no exercício de seus mandatos. Naquele ano também foi morto Moa do Katendê, mestre de capoeira atacado covardemente com golpes de faca apenas porque, em uma conversa de bar, expressou sua desaprovação ao então candidato Bolsonaro. Um ano depois do assassinato, o acusado de matar Moa foi condenado a mais de 22 anos de prisão.

No Brasil, casos de violência política costumam ser mais frequentes em eleições municipais. O número de candidaturas é bem maior – em 2020 foram mais de 500 mil pedidos de registro de candidaturas contra cerca de 29 mil neste ano, segundo o TSE. Além disso, muitas disputas eleitorais nos municípios se confundem com dinâmicas criminais por domínio e poder.

É sobre essa montanha de mortes e impunidade que chegamos ao primeiro turno das eleições de 2022, quando escolhemos presidente, governadores, senadores e deputados federais, estaduais e distritais. O ano já começou violento. No primeiro semestre deste ano, os casos de violência contra políticos aumentaram 26% em comparação com o mesmo período do ano anterior. E, da mesma forma que ocorreu em 2020, os atentados e homicídios de políticos têm crescido às vésperas do primeiro turno. No dia 12 de setembro, o vereador Adriano de Moraes (PSB) foi executado ao chegar em casa após o dia de trabalho na Câmara de Vereadores do município de Conchas, no interior de São Paulo. Uma câmera de vigilância registrou o ocorrido: ao sair de seu carro, o vereador foi surpreendido por um homem que se aproximou calmamente usando uma máscara que cobria seu rosto. Os tiros à queima-roupa não deram nenhuma chance de sobrevivência ao vereador. O chocante caso de Moraes não foi o único registrado em setembro. Em Bom Progresso, cidade do Rio Grande do Sul, uma disputa entre o vice-prefeito e o prefeito acabou em fatalidade. Maicon Leandro Vieira Leite foi preso por suspeita de envolvimento na morte do secretário municipal de Saúde, Jarbas David Heinle, filho do atual prefeito. Ao ser surpreendido por policiais dentro do seu gabinete na Prefeitura, Maicon foi flagrado com uma arma de fogo na cintura, o que também motivou sua prisão em flagrante.

Não há dúvidas de que, ao final deste ano, teremos centenas de casos de políticos que sofreram as mais diversas violências. Mas o que tem chamado a atenção é o transbordamento da violência política, que agora atinge frequentemente apoiadores, militantes e eleitores. Como mestre Moa do Katendê, essas pessoas estão sofrendo agressões e até sendo mortas por defenderem ou simplesmente expressarem suas convicções políticas e ideológicas.

O caso do guarda municipal e tesoureiro do PT assassinado por um bolsonarista em Foz do Iguaçu assombrou o país. Marcelo Aloizio de Arruda foi morto a tiros durante sua própria festa de aniversário, na frente de seus familiares e amigos. O assassino virou réu por homicídio duplamente qualificado e está preso aguardando sentença. O caso de Arruda, ocorrido em julho, foi o primeiro de muitos outros registrados ao longo dos últimos meses. Em setembro, em Mato Grosso, um apoiador de Lula foi morto a golpes de faca e machado após uma discussão política com  seu colega de trabalho, defensor do governo Bolsonaro.

Novamente em setembro, os casos de violência contra eleitores se avolumaram. Antônio Carlos foi morto em Cascavel, no Ceará, após responder ao agressor que votaria em Lula para presidente. Em Goiânia, um fiel foi baleado por um policial militar dentro de uma igreja por ter questionado se era adequado fazer política dentro do templo. Uma mulher foi agredida por um bolsonarista em Angra dos Reis, Rio de Janeiro, por ter criticado o atual presidente. Finalmente, em Montes Claros, Minas Gerais, um outro policial militar se revoltou contra manifestação política em prol de candidatos do PT e efetuou disparos

 

Assim como eu, você provavelmente conhece alguém que está com medo de falar sobre política ou vestir determinada camisa durante esses meses de eleições. Talvez a pessoa com medo seja você mesmo. O número de pessoas que relatam medo de expressar suas opiniões e preferências políticas em público está cada vez maior. Segundo pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública com a Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (Raps), 67,5% dos entrevistados temem ser agredidos em razão de sua escolha política ou partidária. O medo também está presente nas redes sociais: segundo pesquisa do Datafolha, 53% dos brasileiros mudaram seus comportamentos online por motivos políticos

A retórica violenta do presidente, mais o aumento exponencial da circulação de armas e munições no Brasil, são ingredientes básicos desse caldo de medo e insegurança que tem sido engrossado ano após ano. Segundo o Instituto Sou da Paz, desde que chegou ao poder em 2019 Bolsonaro editou mais de quarenta decretos para facilitar o acesso a armas. Em consequência, 1.300 armas são compradas por brasileiros todos os dias. Em agosto deste ano, o Brasil já tinha mais de 1 milhão de armas registradas em posse de CACs (Caçadores, Atiradores e Colecionadores). Armas essas que têm parado nas mãos de criminosos, alimentando o crime.

Excetuando o caso de dois policiais militares que foram baleados em São Paulo em frente a uma zona eleitoral e de um eleitor armado na cidade de Salvador que causou tumulto durante a votação, o primeiro turno das eleições transcorreu sem maiores casos de violência. Mas a tensão nas zonas eleitorais entre defensores de Lula e Bolsonaro foi sentida por muitos que foram votar neste domingo. O fato é que o medo de expressar e defender suas ideias continuará sendo um desafio para todos aqueles que querem construir projetos políticos alternativos neste país. Nada indica que a trajetória que percorremos nos últimos anos seja bruscamente desviada, mesmo que o atual presidente, defensor maior do uso da violência como ferramenta, seja derrotado nas urnas. O ano de 2022 parece ser um dos piores em termos de violência política desde a redemocratização. Mas, se nada for feito, 2024 poderá ser ainda pior.