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    Ubu rei, o grotesco, em terra brasilis - Ilustração de Carvall a partir do personagem da peça de Alfred Jarry

colunistas

O bolsonarismo em três atos

Encenação do Sete de Setembro apelou para famílias, militarismo e discurso de ódio

Ana Carolina Evangelista | 12 set 2022_10h16
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Os personagens e os elementos de cena

 

A chegada à orla, no último Sete de Setembro, parecia o típico cenário de feriado da Zona Sul do Rio de Janeiro. Praia cheia, uma das vias interditada para veículos, muita gente caminhando entre Leblon e Copacabana. Mas naquele início de tarde se avizinhava o que parecia uma espécie de preparativo para um jogo de Copa do Mundo: pessoas de verde e amarelo, jovens, mulheres, famílias inteiras com camisa da seleção e enfeites no cabelo. 

Nos edifícios – de onde raramente surgem pessoas nas varandas – senhoras e senhores também vestidos de verde e amarelo apareciam como uma novidade da paisagem habitual dos feriados. Não é força de expressão. Em sua maioria eram pessoas de mais idade a integrar a paisagem e contemplar, do alto de suas varandas e janelas, o tapete de pessoas, ainda diversas, caminhando pela orla. No mar, dois navios imponentes – certamente da Marinha brasileira – pareciam saídos de uma pintura: um surgia com uma grande bandeira do Brasil, e o outro exibia a bandeira de Portugal. Ambos eram intercalados por um submarino, chamando a atenção de crianças que gritavam para os pais como se assistissem a um filme de ação. Pudera. Um submarino estava ali onde antes faziam castelo de areia aos domingos.

No céu, os voos com propagandas habituais foram substituídos por um helicóptero da Aeronáutica carregando uma grande bandeira do Brasil. Poucos quilômetros à frente o verde e amarelo se sobressairia e os primeiros contornos do calçadão mais famoso já estavam cobertos por bandeiras e camisetas com o rosto e o slogan de campanha do candidato-presidente. 

A maioria das pessoas com camisa da seleção lotava os bares espalhados por muitas quadras no entorno da orla de Copacabana. Difícil não pausar o olhar sobre uma senhora de regata de lantejoulas com a bandeira do Brasil e o brasão do clube do Botafogo bordado. Ensaiava-se ali o que se repetiria ao longo de toda a tarde: a sobreposição de símbolos e identidades. Num passo adiante, um senhor tomando uma cerveja, também com a camisa do Brasil, bandana na cabeça, bronzeado de verão, corrente reluzente com a estrela de Davi prateada e o adesivo da campanha de Daniel Silveira estampado no peito. Mais camadas e símbolos sobrepostos. 

Muitos grupos de homens, em geral brancos e na casa dos 50 ou 60 anos de idade, se amalgamavam sorridentes. Alguns vestiam roupas militares. Outros apenas remetiam a algum vínculo ou orgulho pela corporação. Todos, de uma forma ou de outra, faziam o “selfie da vitória”. Nas ruas paralelas à Avenida Atlântica, idosas com dificuldade para andar – pela idade ou pela disputa do espaço – recobravam o ânimo e, vestidas também de verde e amarelo, seguiam em frente amparadas por algum familiar e pelo desejo de celebrar a data com o presidente que chegaria dali a pouco. Era a “parada do Setede Setembro” ou a “parada do orgulho do nosso presidente”, como disse uma mais eufórica. 

Com muito samba e muita cerveja ao redor, alguns trios elétricos se espalhavam pela orla. De um pequeno carro de som já se ouviam os bordões contra a esquerda e o PT que seriam repetidos como um mantra ao longo do dia. “Nossa bandeira nunca será vermelha”, entoava um, entre um guindaste e outro que ostentavam grandes bandeiras do Brasil. “Aqui tem fome? Onde? O Brasil exporta comida para o mundo”, seguia um homem ao microfone. 

Numa ponta do trajeto, no carro de som do Centro Dom Bosco – um símbolo da nova direita católica – se rezava um pai-nosso em looping, com uma grande imagem de Nossa Senhora no alto. Em outra, “Deus, pátria, família e liberdade sempre é a nossa bandeira”, afirmava o deputado Sóstenes Cavalcante (PL), presidente da Frente Parlamentar Evangélica. O ataque ao STF e ao jornalismo seguiam em cartazes intercalados pelos quarteirões. Um guindaste levantava um banner reeditando os ataques de Bolsonaro à Vera Magalhães com a foto da jornalista, como se indicasse um alvo para insultos e perseguições.

O cenário e os argumentos centrais do ato eleitoral de um único candidato à presidência coberto pela imprensa nos mínimos detalhes, e televisionado por quase 24 horas, já estavam definidos. Uma festa verde e amarela com adoração ao ódio e elementos de crime eleitoral. 

 

As Forças Armadas cuidam de cenário e figurino

 

O trio elétrico pago pelo pastor Silas Malafaia foi o escolhido pelo presidente para discursar e receber seus aliados, incluindo o candidato à vice-presidência e general da reserva do Exército, Braga Netto, e o atual governador do estado do Rio, Cláudio Castro. O carro estava ao lado do palanque oficial. Segundo a legislação eleitoral, um presidente não poderia usar o palco oficial do governo para fazer campanha política. Uma preocupação retórica que se converteu em apêndice de todo o cenário armado para aquele que deveria ser um evento de Estado. Como sublinharam Allan de Abreu, Thallys Braga e Thais Bilenky, o espaço mais alto do caminhão de som parecia pequeno para os personagens entusiasmados que ocupavam o trio do pastor. 

Como o presidente demorava a chegar, os animadores do carro de som que preparavam o terreno para o apresentador da Festa do Peão de Barretos que faria as honras da casa ecoavam: “Ô Fachin, o povo é supremo”, “Ô Cármen Lúcia, o povo é supremo”. Ao mesmo tempo que apontava para a fragata da Marinha brasileira e gritava para todos seguirem: “Olhem, que orgulho de ser brasileiro.” Tudo isso intercalado por tiros de canhão, da mesma Marinha, como uma espécie de exaltação do astro que estaria por vir. 

“A Record tem moral. Cadê o câmera da Record?”, perguntava o mestre de cerimônias entre os chamados pelo “mito” algumas vezes chamado de presidente. “A ola pra Record tem que ser melhor, gente. Se fosse pra Globo tava bom, mas pra Record tem que ser melhor”, animava o público que se apertava cada vez mais pela orla. E a “ola da Record” era então cortada visualmente por mais uma pirotecnia do exército, dessa vez os paraquedistas deixando um rastro azul no céu. Fabio Wajngarten, ex-secretário especial de Comunicação Social do governo Bolsonaro, com colete militar e uma camiseta verde e amarela destacando “liberdade” nas mangas, apareceu escoltando jornalistas da Record e do SBT, pouco antes da chegada do presidente.

Interrompido pelo som dos rasantes da esquadrilha da fumaça, a trilha sonora que animava os presentes dançando efusivamente variava entre o funk do MC Reaça que ataca agressivamente políticos e entidades de esquerda e movimentos sociais, o jingle da campanha e outras paródias no estilo de forró e brega pop, ora de promoção do candidato-presidente, ora de ataque a seus opositores. O clima de pessoas efusivas dançando forró ou funk contrastava com as frases de ódio contra políticos de esquerda, a esquerdalha em geral e o STF. Ecoando forte, em todas as bocas, enquanto as pessoas dançavam, como uma desconexão entre o conteúdo que era dito e um clima de confraternização e celebração.

“O presidente Bolsonaro já está no palco ao lado para uma cerimônia cívica e daqui a pouco ele tá aqui. Hoje é o dia da Independência e estamos aqui pelo mitooooooo”, e toda estrutura do exército brasileiro mobilizada para o evento de celebração do bicentenário da Independência do Brasil ornavam o comício eleitoral pela reeleição do presidente.

Não bastou a mera formalidade de não usar o palanque oficial ao lado do carro de som financiado por Silas Malafaia. O fato concreto, em meio àquela festa cívica capturada pelos militares e pelo bolsonarismo, é a união entre Estado e campanha, entre o Sete de Setembro do bicentenário da Independência e o Sete de Setembro pré-eleição. Utilizou-se para tanto toda a estrutura das Forças Armadas brasileiras. Na parada de Brasília ou nos movimentos aeronavais do Rio, militares converteram-se também em peças de campanha.

 

Uma festa entre iguais

 

Em meio aos gritos de “seguuuura, capitão!”, o mesmo apresentador sertanejo comandou a execução do Hino Nacional e em seguida em volume máximo começa a tocar: “É o capitão do povo que vai vencer de novo. Ele é de Deus, cê pode confiar. Defende a família e não vai te enganar. É o capitão do povo”, e o presidente que estava ao lado em cerimônia enquanto chefe de Estado chega no carro de som.

Assim como na convenção partidária de conformação de sua candidatura à reeleição, se reafirmava o apelo ao agro, à ordem, ao controle e à identidade cristã.

Silas Malafaia, o anfitrião, ao receber a atração esperada do dia falou mais sobre escândalos de corrupção da esquerda do que de Deus, exaltou o lucro das estatais durante o governo Bolsonaro e citou muitas cifras de prejuízos de governos anteriores e de propinas que estariam relacionadas a Lula e sua família. 

O clima era de um ato pacífico, mas algo pacífico entre iguais, porque, no fundo, qualquer elemento de diferença ou discordância ali teria força para acender uma faísca incontrolável. Uma festa cívica regada a muito entusiasmo por bordões de ódio ao resto do Brasil que não estava ali.

O apresentador do Rodeio de Barretos puxa um “pai-nosso” entoado por todos os presentes em coro, mais rasantes da esquadrilha da fumaça e em seguida o candidato-presidente inicia seu discurso. E assim o chefe de governo se confundiu mais uma vez com o candidato à reeleição. Entre famílias, com Deus, afeto entre iguais, celebração e muita, muita agressividade.