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    Ilustração: Carvall

colunistas

Para além do Planalto, um futuro difícil

Senado mais bolsonarista é mau sinal para o STF; institutos de pesquisa e imprensa viverão momentos de grande tensão

Rafael Mafei | 03 out 2022_14h08
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O dia de ontem mostrou que é ilusória a esperança de que a eleição de Jair Bolsonaro (PL), com tudo que ele representa, tenha sido fruto de um dia ruim em outubro de 2018, quando brasileiras e brasileiros teriam ido às urnas de cabeça cheia e fizeram uma bobagem da qual se arrependeram quando vieram a pandemia e a fome. Depois de quatro anos de um governo com desempenho desastroso em tantas áreas, o país voltou às urnas para deixar claro que os desafios da democracia brasileira, longe de começarem a ser resolvidos, talvez se aprofundem daqui em diante. Quatro em cada dez brasileiros que saíram de casa e pegaram fila em um domingo mostraram ou que são ideologicamente extremistas ou que vivem em paz sob um extremismo que ajudaram a eleger (o que, para fins práticos, dá na mesma).

A primeira evidência vem, é claro, da eleição presidencial. Se é verdade que Lula (PT) ficou a menos de 2 pontos da vitória no primeiro turno e mais de 5 pontos à frente do incumbente, ainda assim a noite de ontem terminou com otimismo para os lados de Bolsonaro, que garantiu um segundo turno no qual chegará competitivo. Do eleitor de Simone Tebet (MDB), o atual presidente pode esperar maior proximidade ideológica; do eleitor de Ciro Gomes (PDT), pode esperar que o acompanhe o rancor visceral de seu guru, cuja campanha foi tão hostil ao PT quanto foi a de Bolsonaro. 

Jair não precisou fazer campanha por voto útil, pois Ciro fez isso por ele sem cobrar nada em troca. Considerados os levantamentos de véspera do Ipespe e da Quaest, que previam votação um tanto maior para o pedetista, o desempenho surpreendente de Bolsonaro no dia da eleição pode explicar-se em parte pelo movimento de ciristas que desde já trocaram seu candidato pelo “mito”. Incrível dizer isso de alguém que se vende como herdeiro de Leonel Brizola, mas o fato é que agora teremos de aguardar Ciro decidir se apoiará a esquerda ou a extrema direita – uma escolha que para ele parece “complexa” e “desafiadora” à primeira vista. Talvez a resposta esteja em qual campanha lhe prometerá maior protagonismo em um próximo governo, já que, a depender de suas próprias pernas, o quarto lugar o fará sair do pleito politicamente menor do que entrou. Simone Tebet, ao contrário, embora venha do MDB, partido menos ideologicamente próximo ao PT do que o PDT de Ciro Gomes, já deixou claro que não ficará omissa no segundo turno. Muitos esperam que ela tenha espaço e destaque em um eventual governo Lula. Esse apoio, mesmo crítico, poderá ajudar Lula a garimpar os votos que faltam para a vitória.

A segunda evidência vem de governos estaduais. Se é verdade que o PT assegurou importantes vitórias, inclusive no Ceará da família Gomes, diversos candidatos bolsonaristas pontuaram acima do que estimavam as pesquisas de véspera. O cenário paulista, onde Tarcísio Freitas (Republicanos) passou dos 42%, é o que mais deve preocupar a quem teme o avanço da extrema direita no Brasil. Quem conhece o interior paulista, eleitorado maior do que a zona metropolitana da capital, sabe o quão difícil será tirar dali votos para o PT, cujo candidato, Fernando Haddad (PT), não conseguiu bater a meta dos 40% de apoio no primeiro turno.

 

Após décadas de hegemonia do PSDB, a troca de comando do governo paulista dará a um provável governo bolsonarista o comando da maior máquina estadual brasileira. Ao contrário do Rio de Janeiro, onde outro aliado de Bolsonaro, Cláudio Castro (PL), foi reeleito, o caso paulista será de renovação total. Não haverá arranjos, costuras e apoios de mandato anterior a serem preservados. Tarcísio é um neófito da política eleitoral e um forasteiro da política paulista. No espaço de quatro anos, o bolsonarismo terá boas chances de ocupar muitas das secretarias de governo, os comandos de empresas públicas paulistas, os postos-chave de fundações, como a Padre Anchieta, que abriga a TV Cultura, e de autarquias, como as três universidades estaduais paulistas (USP, Unicamp e Unesp).

Quem confia que Tarcísio, se eleito, terá agenda própria e poderá se descolar de Bolsonaro, precisa confiar que ele não entendeu o recado das urnas, que mostraram a força resiliente de seu padrinho no Brasil, e especialmente em São Paulo. E que ele tampouco aprendeu com os exemplos dos detratores recentes do bolsonarismo que acabaram politicamente derrotados em 2022, como os paulistas Joice Hasselmann, Alexandre Frota, Janaína Paschoal, Abraham Weintraub e João Doria; o sul-matogrossense Luiz Henrique Mandetta; o fluminense Wilson Witzel; e o catarinense Carlos Moisés.

No Senado, Bolsonaro também foi o grande vencedor da noite de ontem. Com  catorze cadeiras asseguradas, o presidente obteve quase o dobro de assentos em comparação com os oito eleitos apoiados por Lula. O Senado era a casa do Legislativo menos alinhada ao Executivo bolsonarista, pois na Câmara as relações estavam bem lubrificadas pelo orçamento secreto, e a presidência de Rodrigo Pacheco (PSD-MG) não abraçou o bolsonarismo como fez a de Arthur Lira (PP-AL). O número maior de senadores bolsonaristas deverá influir diretamente na eleição para a presidência da casa, já em fevereiro de 2023. 

Nunca é demais lembrar que uma das importantes competências exclusivas do Senado é o processo e julgamento dos impeachments de ministros do Supremo Tribunal Federal. Nesse sentido, devemos nos perguntar se a demonstração de força do bolsonarismo no Senado não arrefecerá a disposição do Supremo Tribunal Federal em seguir tão exposto a ataques extremistas, na linha de frente da contenção a ameaças à democracia. Quais ministros toparão comprar uma enorme briga com a classe política, julgando, por exemplo, inconstitucional o orçamento secreto, diante dessa mudança para pior na casa que os poderia julgar? A mudança negativa aconteceu, a bem da verdade, no Legislativo como um todo, pois o bolsonarismo também ficou maior na Câmara. Estaria o Judiciário disposto a correr o risco do purgatório de uma nova CPI, dessa vez com foco não em magistrados corruptos de escalão inferior, como o ex-juiz Lalau, mas em ministros do STF que se expuseram mais na defesa da Justiça Eleitoral, como Moraes, Barroso e Fachin?

 

O crescimento de uma direita mais bolsonarista no Senado também alterará o ponto de equilíbrio ideológico para a aprovação de novas indicações ao Supremo. Isso significa que, mesmo com a vitória de Lula, sua liberdade para indicar nomes para os lugares de Rosa Weber e Ricardo Lewandowski, cujas aposentadorias virão em breve, será constrangida pelas expectativas de um Senado ainda mais conservador em 2023. Quem espera que um governo do PT banque indicações altamente progressistas para o tribunal nos próximos anos certamente se frustrará.

Finalmente, mas não em último lugar, o futuro imediato será de intenso desgaste para instituições civis de produção de informação e conhecimento tipicamente miradas pelo bolsonarismo. A começar pelos institutos de pesquisa, que não conseguiram prever, em sua quase totalidade, o desempenho do presidente, bem como de muitos candidatos bolsonaristas aos governos estaduais e ao Senado. Se as pesquisadoras e pesquisadores de campo já trabalhavam com medo de hostilidades e agressões antes, que dirá daqui em diante. A campanha de descrédito contra pesquisas que mostrem Lula à frente deverá se intensificar, tanto em quantidade quanto em virulência. Caso a sub-representação do bolsonarismo nas urnas tenha se dado também por características metodológicas das próprias pesquisas, como uma estimativa equivocada, para menor, do eleitorado evangélico, novos resultados que projetem votos a menos para Bolsonaro no segundo turno serão gasolina na fogueira para contestação do resultado eleitoral, ao lado da sempre denunciada parcialidade do TSE.

Semelhante contestação haverá contra jornalistas, pesquisadores e professores: não faltarão exemplos de textos e análises que hipotetizaram um desempenho pior para Bolsonaro e seus candidatos neste domingo, que poderão ser fartamente explorados para desacreditar jornais, relatórios de pesquisas e universidades. Ainda que Lula confirme seu favoritismo e bata Jair Bolsonaro daqui a quatro semanas, não será fácil governar um país cuja população esteja dividida ao meio na cognição dos fenômenos sociais mais básicos, e em que a parcela ligeiramente menor, provavelmente bolsonarista, oscilará entre a desconfiança e a certeza de que foi roubada por magistrados parciais, institutos de pesquisa maliciosos e jornalistas enviesados.