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    Ilustração: Carvall

colunistas

Violência política também é artimanha para aumentar abstenção

Ao incitar ações violentas de sua base, Bolsonaro tenta deixar eleitor adversário em casa; mulheres, pretos e mais pobres são os que mais temem agressões

Samira Bueno | 23 set 2022_09h36
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Na tarde do dia 20, terça-feira, um pesquisador do Datafolha entrevistava transeuntes para uma pesquisa na cidade de Ariranha, interior de São Paulo, quando foi abordado pelo bolsonarista Rafael Bianchini aos gritos de “só pega Lula” e “vagabundo”. Os xingamentos foram substituídos por agressão física pouco depois, interrompida apenas após a intervenção dos vizinhos que viram a cena. Fosse um episódio isolado a situação já seria grave, mas este é apenas mais um capítulo da escalada de violência política que já resultou na morte de Marcelo Arruda, no Paraná, no dia de seu aniversário, e do trabalhador rural Benedito Cardoso dos Santos em Confresa, Mato Grosso. Em ambos os casos as vítimas eram lulistas e foram mortas por bolsonaristas.

O clima de tensão e medo cresce com a proximidade da votação, passando a exigir um esquema de segurança especial inclusive para quem trabalha nas zonas eleitorais. Uma pesquisa encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pela Raps ao Datafolha mostrou que 67,5% dos eleitores têm medo de serem agredidos fisicamente por sua escolha política ou partidária. E como no Brasil a violência tem CEP, cor e gênero, são os mais vulneráveis aqueles que têm mais medo. O percentual é mais elevado entre mulheres (71,8%) do que entre homens (62,7%), entre eleitores das classes D/E (71,5%) do que entre aqueles da classe A (54,5%), e entre pretos (73%) do que entre brancos (61,6%). 

As diferentes pesquisas de intenção de voto divulgadas têm mostrado o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) muito à frente do atual presidente e candidato Jair Bolsonaro, revelando inclusive a possibilidade de vitória do petista no primeiro turno. Apesar de os resultados das pesquisas de diferentes institutos e com diferentes metodologias apontarem a mesma tendência, Bolsonaro trucou e declarou, em viagem ao funeral da rainha Elizabeth II esta semana, que se não vencer no primeiro turno com mais de 60% dos votos “algo de anormal” terá ocorrido no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Diante do histórico de declarações falsas e violentas do atual mandatário, parece claro que o resultado das urnas será contestado pelo presidente e seus apoiadores, gerando ainda mais violência e caos em uma estratégia similar à adotada pelo ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump, que incitou o ataque ao Capitólio após perder a eleição.

 

À medida em que a chance de um golpe clássico, com apoio de parcelas do Congresso e das Forças Armadas, se torna mais remota, Bolsonaro radicaliza o discurso para fidelizar sua base. Mas o ponto central aqui é: o que ganha o presidente ao colocar em xeque a lisura do processo eleitoral e estimular o caos nas ruas, algo que já foi tentado nos dois últimos Sete de Setembro, em episódios que levaram grande parte dos analistas a cogitarem situações de violência e um eventual apoio de parcela das forças policiais aos grupos mais radicais? Essa estratégia parece ter um duplo objetivo. Em primeiro lugar, ao criar o clima de medo e violência, Bolsonaro e outros membros do governo contam com a possibilidade de maior abstenção nas urnas, o que o beneficiaria diretamente.

Pesquisa Datafolha divulgada nesta semana mostrou que 40% dos eleitores acreditam ser grande a possibilidade de episódios de violência política no dia do pleito, e que 9% admitem deixar de votar em razão disso. A possibilidade de deixar de votar por receio de ser vítima de violência foi aventada por 10% dos eleitores do ex-presidente Lula e por 5% dos eleitores do presidente Jair Bolsonaro. Com resultado similar, a pesquisa A cara da Democracia, do Instituto da Democracia, mostrou que 54% da população acredita ser possível uma onda de violência política caso Lula vença já no primeiro turno. Bolsonaro sabe que se a eleição for decidida em 2 de outubro será mais difícil conseguir apoio de sua base política para questionar a lisura do processo eleitoral, especialmente porque muitos são candidatos. Assim, ao criar o clima de medo ele maximiza a abstenção e as chances de deixar a decisão para o segundo turno, fortalecendo o seu discurso de que a eleição teria sido uma fraude. 

Mas essa retórica da violência tem efeitos práticos e o presidente sabe disso. Quando o filho Zero Três conclama os seguidores armados do pai a serem voluntários da campanha, ou o próprio Bolsonaro afirma que o “povo armado jamais será escravizado”, a ameaça nada velada está feita. Ele mobiliza seus asseclas e aumenta seu capital político para uma negociação que lhe seja benéfica caso perca as eleições e, consequentemente, o foro privilegiado. Bolsonaro sabe que as chances de acabar preso crescem a cada dia, em especial com a possibilidade de virem a público as informações postas em sigilo de cem anos envolvendo ele próprio, membros de seus governo e o filho Flávio Bolsonaro . Exílio ou anistia parecem ser a única solução possível para salvar Bolsonaro de processos na Justiça, me disse essa semana o professor da FGV José Henrique Bortoluci, o que eventualmente seria viabilizado com sua minoria violenta e armada nas ruas promovendo o caos e a instabilidade. 

Nesta semana, durante o evento “E agora, Brasil?”, promovido pelos jornais O Globo e Valor Econômico, o ex-presidente Temer sugeriu que, para pacificar o país neste contexto de acirramento dos ânimos “o ideal seria fazer um grande pacto nacional, como aconteceu na Espanha”, ao que complementou: “Quando falo nesse pacto de pacificação, estou imaginando que seria verificado, se houver anistia, o que é anistiável e o que não é. Mas seria um gesto de harmonia no país.” Seria o ex-presidente Michel Temer o fiador desse acordão que Bolsonaro tenta viabilizar para si? Vamos lembrar do ex-presidente se colocando como figura de mediação entre Bolsonaro e seu arqui-inimigo, o ministro do STF Alexandre Moraes, indicado à Corte por Temer após um período como ministro da Justiça de sua gestão.

Na abertura do livro O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, Karl Marx (demonizado pela extrema direita por ser um dos principais teóricos do comunismo) argumentou que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem duas vezes, “a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. Embora o autor fizesse referência ao contexto político francês, a reflexão remete à sugestão vocalizada pelo ex-presidente Temer de um acordo que viabilizasse a “anistia do passado”. Lembremos que o mesmo instituto foi utilizado há mais de quarenta anos, quando o então presidente, general Figueiredo, assinou a Lei da Anistia – o que viabilizou a impunidade de torturadores do regime militar. O esquecimento como instrumento central da política não é novo no Brasil.

E como a história é cíclica, o desafio para 2022 parece ser o de ressignificar o 2 de outubro deste ano. Há trinta anos, em 2 de outubro de 1992, o país vivia uma véspera de eleições quando foi palco de uma tragédia que resultou na morte de 111 presos dentro da Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru, após ação de policiais militares que invadiram o presídio para interromper uma rebelião e promoveram um massacre. A tragédia de 2 de outubro de 2022 pode não se traduzir em sangue nas calçadas, mas em milhões de eleitores presos dentro de suas casas por medo de manifestarem aquele que é o direito mais básico e fundamental da nossa democracia, o direito ao voto. Caberá às instituições garantir que liberdades e garantias individuais previstas em nossa constituição não sejam solapadas na base da chantagem e da violência. Dia 2 eu vou votar, e você?