É o eleitorado que define o voto na última hora. Nesse segmento se encontra o maior número de indecisos. São informações indispensáveis para quem concorre nestas eleições ILUSTRAÇÃO: JOÃO BRIZZI
Eleitora “nem nem” desdenha os candidatos
Quem não vota nem em Lula nem em Bolsonaro chega a 43% do eleitorado; e costuma decidir a eleição, mostra Ibope
A condenação unânime do líder das pesquisas de intenção de voto pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, o TRF-4, incentivou a especulação sobre para onde irá o terço de eleitores de Luiz Inácio Lula da Silva caso ele não chegue candidato a presidente da República em 7 de outubro. A pergunta é legítima pois as chances de Lula diminuíram muito, mas ofusca questão tão ou mais relevante: qual o destino de número ainda maior de eleitores, aqueles que não acompanham a novela judicial sobre o petista nem se envolvem nas altercações entre lulistas e antilulistas? Eles têm sexo, idade, cor e residência conhecidos, mas permanecem ignorados pela maioria das análises. Merecem alguma atenção. Afinal, são eles que costumam decidir eleições, aqui e alhures.
Ela tem mais de 35 anos, vive na cidade grande de algum estado do Sul ou do Sudeste e é branca. Não se distingue por ter renda maior ou menor do que a média, nem pelo número de anos que estudou. Tampouco se destaca pelo tempo que gasta na internet ou na igreja. Se não acompanha o noticiário sobre política, não é por falta de gosto, mas de tempo. Mora na periferia e trabalha no Centro da cidade. Gasta mais de doze horas por dia entre a ocupação como vendedora ou atendente de telemarketing e o vaivém cotidiano na condução. Van, ônibus, metrô. Quando chega em casa, ainda tem que cuidar dos filhos – muitas vezes sozinha.
O que faz essa eleitora ser tão cobiçada – seja por presidenciáveis do DEM e do PSDB, seja por outsiders picados pelo Aedes aegypti da política – é que ela não vota nem em Lula nem em Jair Bolsonaro, em nenhuma circunstância. É a eleitora “nem nem”. Quando somada a seu par masculino, chegam a 43% de todos os aptos a ir às urnas para escolher o futuro presidente. Nem o petista nem o militar reformado têm tantos eleitores.
A pergunta foi feita pela piauí ao Ibope: é possível identificar esse eleitorado “nem nem” e quantificá-lo? Aceito o desafio, o instituto usou uma metodologia original, descrita adiante. Ainda mais surpreendente, porém, foram os resultados. Ao analisar os 43%, o perfil que emergiu pareceu mais familiar do que Marcia Cavallari esperava. A CEO do Ibope Inteligência e veterana de mais de três décadas de eleições logo reconheceu de quem se trata. “É o eleitorado que define o voto na última hora. Nesse segmento que a gente encontra o maior número de indecisos.” São informações indispensáveis para quem concorre nas eleições.
“Esses são os eleitores que candidatos de centro buscam”, diz a diretora do Ibope. “Eles não querem saber de radicais (nem de um lado nem do outro), têm pouco interesse por política e, por conta disso, demoram muito – e, cada vez mais – para decidir seu voto.” Por essas razões, são quem as pesquisas de intenção de voto precisam monitorar mais de perto. Ao se descobrir seu destino, descobre-se para onde vai a eleição. Exemplos abundam.
Após ouvir o repórter descrever a eleitora “nem nem” revelada pelo Ibope, o estrategista de campanhas eleitorais Maurício Moura suspirou, resignado: “É uma velha conhecida minha. Faz dez anos que fico atrás dela em todas as campanhas de que participo no Brasil. É a mais difícil de convencer.” Dezenas de eleições, de prefeito a presidente da República, deixaram Moura escaldado com a “nem nem”. Uma das campanhas da qual ele participou em 2016 mostra como nem sempre é uma ideia, mas o imponderável que leva o candidato ou candidata aonde o voto dessa eleitora está.
A poucos dias da votação, a disputa pela Prefeitura de Caruaru, no Agreste pernambucano, seguia apertada. Três nomes chegavam com chances às vésperas de as urnas eletrônicas serem ligadas. Tony Gel, do PMDB, liderava com intenções de voto suficientes para ir ao segundo turno mas não para se eleger de cara. Dois neófitos disputavam a chance de enfrentar o ex-prefeito. Poucos votos para um ou outro decidiriam quem passaria ao turno final.
Contratado pela campanha da tucana Raquel Lyra, Moura gastava horas assistindo a grupos de pesquisa qualitativa formados por eleitoras “nem nem”. Testava propostas, projetos e – como os marqueteiros gostam de dizer – narrativas que sensibilizassem esse eleitorado fugaz e indispensável. Passava e repassava programas eleitorais na tevê, mostrava vídeos com debates e entrevistas da cliente. Nada funcionava, nenhuma conexão se estabelecia entre a candidata e a eleitora que ela buscava.
Alheia ao que Lyra dizia na tela, uma das mulheres de um dos grupos de pesquisa reparou algo na vestimenta da candidata:
– Aquele lacinho cor-de-rosa… É do Outubro Rosa, não é?
– É, da prevenção ao câncer de mama – respondeu outra.
Um “legal!” ecoou, quebrando o enfado que dominava a sala.
Raquel Lyra não tirou mais o lacinho do peito. Teve 3 674 votos a mais do que o terceiro colocado – dois pontos percentuais de vantagem. No segundo turno, bateu Tony Gel e ganhou a prefeitura. Impossível garantir que foi o símbolo do Outubro Rosa que laçou as eleitoras “nem nem”. Mas, sem elas, é improvável que a atual prefeita herdasse a cadeira que havia sido ocupada por seu pai, João Lyra Neto, nos anos 80 e 90.
O que torna a eleitora “nem nem” tão difícil de alcançar é que ela costuma escapar aos truques eleitorais destinados a seduzir outros tipos de eleitor. Quando querem influenciar, por exemplo, mulheres da parte inferior da pirâmide socioeconômica, os marqueteiros focam a campanha nos outros moradores da casa. Convencendo-os a votar no candidato para o qual trabalham, acabam influenciando, por tabela, seu alvo principal. Essa eleitora pobre, dona de casa e que pouco frequentou a escola tende a seguir o voto dos filhos e do companheiro. Faz isso para evitar que haja conflitos no ambiente familiar, diz Moura.
A manobra não funciona com a eleitora “nem nem” porque ela é mais independente – quando não é separada do pai dos filhos. Tem pouca exposição ao debate político por causa da falta de tempo. Daí lhe faltar carga informativa para formar opinião com antecedência sobre candidatos menos famosos. Deixa para escolher um nome quando é inevitável: na hora de ir ao local de votação. Por isso, costuma passar ilesa por quase toda propaganda eleitoral na tevê, e parece tão intangível para os marqueteiros.
Se é tão difícil assim de alcançar, como foi que o Ibope descobriu quem ela é e – mais importante – quantas elas são?
O cálculo dos 43% de eleitores “nem nem” não se baseia na soma das taxas de rejeição a Lula e a Bolsonaro nas pesquisas de intenção de voto. É mais sutil do que isso. O que estatísticos do Ibope fizeram foi tomar o levantamento feito em outubro e confrontar as respostas dos eleitores às várias perguntas sobre a disputa presidencial aplicadas pelo instituto. O método adotado quantificou o eleitorado “nem nem” não pelo que ele disse, mas pelo que deixou de dizer. Seu silêncio é eloquente.
Enquanto a paisagem eleitoral é nebulosa, os questionários aplicados pelos institutos de pesquisa apresentam diferentes combinações de candidatos para o entrevistado escolher o seu preferido. São os chamados “cenários eleitorais”. Em alguns, por exemplo, o candidato a presidente pelo PSDB é Geraldo Alckmin; em outros, João Doria. Às vezes, ambos – pressupondo-se a hipótese meio suicida de que, derrotado nas prévias tucanas, o prefeito de São Paulo deixaria o PSDB e se candidataria por outra sigla.
Os estatísticos selecionaram todos os cenários nos quais Lula e/ou Bolsonaro apareciam e separaram apenas os eleitores que nunca escolheram o ex-presidente nem seu maior rival. Ou seja: a eleitora e o eleitor “nem nem” tiveram múltiplas chances de optar por Lula ou Bolsonaro mas jamais citaram um dos dois. Não importa o cenário testado, os “nem nem” são coerentes em sua decisão de não aderir a nenhum dos líderes da corrida eleitoral.
Esse comportamento tácito tende a ser mais firme e consistente ao longo do tempo do que respostas explícitas sobre rejeição. Isso porque concordar com a frase “não votaria de jeito nenhum” em fulano ou sicrana está sempre sujeito às pressões sociais de cada época. É um tipo de viés que leva parte dos eleitores a responder o que acham socialmente mais aceitável no momento da pesquisa. Não fosse assim, a taxa de rejeição a Lula seria estável – e não tão oscilante quanto tem sido desde 2010.
Ao filtrar exclusivamente eleitores que nunca declaram voto em Lula nem em Bolsonaro, o Ibope deu cara e corpo ao grupo que alimenta a esperança de todos os candidatos que são nanicos estatisticamente: 59% dos “nem nem” são mulheres (sete pontos a mais do que no total do eleitorado); 66% têm 35 anos ou mais (seis pontos acima da média); 54% moram no Sudeste (dez pontos acima); 38% moram em cidades com mais de 500 mil habitantes (três pontos acima); 42% são brancos (oito pontos a mais). Em religião, renda e escolaridade, o “nem nem” é igual ao resto.
Quase todos os nanicos que esperam ter suas taxas de intenção de votos vitaminadas pelos “nem nem” são brancos, do Sul ou do Sudeste do Brasil, e vêm das metrópoles. São opositores a Lula e tentam se distanciar de Bolsonaro. Nem por isso a eventual fuga do nanismo eleitoral será mais fácil para essa turma. “Eles terão muita dificuldade para crescer nesta fase da campanha porque o eleitorado que buscam é o mais indeciso e o mais tardio na escolha do candidato”, avalia Marcia Cavallari, do Ibope.
Entram nessa lista o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, do Rio de Janeiro; o ministro da Fazenda e executivo global Henrique Meirelles; o prefeito paulistano Doria; o apresentador Luciano Huck e o senador paranaense Álvaro Dias. Até o ex-presidente Fernando Collor, um carioca eleito senador por Alagoas, acha que pode se reabilitar com o voto “nem nem”.
O sexteto acaba experimentando um paradoxo: todos dependem desse eleitorado fugaz para terem alguma chance na eleição presidencial, mas não conseguem se destacar dos concorrentes justamente porque os “nem nem” estão nem aí para eles tampouco.
Marcia Cavallari aposta que essa super oferta de candidatos de centro não vai durar até 15 de agosto, dia em que a campanha eleitoral para presidente começa para valer. Na sua opinião, quem não conseguir vencer o nanismo eleitoral nos próximos meses não terá lugar na urna eletrônica. Os partidos não vão deixar.
Por uma razão pragmática: sem doações empresariais, faltará dinheiro para dividir entre todos os candidatos a deputado estadual, federal, senador e governador. Só se justificará repartir esses recursos escassos também com uma candidatura presidencial se o cabeça de chapa se provar um puxador de votos. Os outros candidatos não vão pagar para ver se o presidenciável do partido decola, prevê Cavallari.
O desafio do sexteto que precisa encontrar logo um par para seu dígito solitário de intenção de voto é tão duro quanto um deles dar match no Tinder com alguma fã de Lula ou com uma seguidora de Bolsonaro. Os desinteressados ainda somam 61% dos eleitores: 39% não têm nenhum interesse na eleição presidencial, e 22%, muito pouco. Ou seja, antes de conquistar qualquer eleitor ou eleitora, será preciso chamar sua atenção. Não é fácil fazê-lo antes do começo da propaganda eleitoral na tevê, em 31 de agosto.
Mesmo que consigam despertar algum interesse no eleitor, convencer os “nem nem” será ainda mais difícil. De 38% a 44% deles disseram ao Ibope, em outubro, que anulariam ou votariam em branco. A taxa varia de acordo com o cenário testado. Mas nenhum candidato, nanico ou não, alcançou uma intenção de voto entre os “nem nem” que seja pelo menos a metade dos que dizem que não votariam em ninguém. Com uma única exceção: Marina Silva.
A candidata da Rede tinha, em outubro, entre 18% e 23% do eleitorado “nem nem”, dependendo de contra quem disputa suas atenções. Não chega a ser uma surpresa. Parte dos votos que Marina obteve nas eleições presidenciais de 2010 e 2014 veio justamente desse segmento do eleitorado. Vai melhor entre as mulheres que não são lulistas nem bolsonaristas do que a maioria dos candidatos que rivalizam com ela. Outra diferença é que a fundadora da Rede não depende apenas do perfil clássico do eleitorado “nem nem”. Marina continua com desempenho acima da média também entre os eleitores jovens, e entre os evangélicos.
O que falta a ela é um partido. Segundos os últimos dados divulgados pelo Tribunal Superior Eleitoral, a Rede não chega a 21 mil filiados. Está entre as cinco agremiações com menos militantes, abaixo do PPL. Rivais diretos na disputa da Presidência, o PSDB tem 70, e o PT, 77 vezes mais filiados. O tempo de tevê e os recursos que Marina receberá do Fundo Eleitoral serão proporcionais à bancada de apenas quatro deputados federais da Rede. É menos de 10% da bancada tucana e 7% da petista. Sem contar a falta de prefeitos, governadores e outros candidatos fortes para reforçar seu palanque nos estados.
A estrutura partidária diferencia o governador paulista Geraldo Alckmin de Marina – e a aceitação do tucano pelo eleitorado “nem nem” o distingue do sexteto de candidatos com apenas um dígito de intenção de voto. Ele é o homem que aparece melhor entre os eleitores e eleitoras que não votam nem em Lula nem em Bolsonaro. Alckmin tem entre 8% e 12% das intenções de voto desse segmento. Seu pior desempenho é quando Luciano Huck também aparece na lista de candidatos. Aí os dois praticamente empatam. Outro com alguma chance entre os “nem nem” é Ciro Gomes, do PDT. Tem de 6% a 10% nesse grupo, dependendo de quem são os rivais.
Com exceção de Marina, nenhuma dessas taxas de intenção de voto entre o eleitorado mais desinteressado da disputa presidencial é suficiente para deixar qualquer um dos rivais de Lula e Bolsonaro particularmente animados. É hora de lançar mão de ativações em redes sociais, grupos de pesquisa e toda a parafernália de campanha para tentar descobrir como agradar o eleitorado “nem nem” e se destacar dos concorrentes. Por via das dúvidas, poderiam colocar um laço do Outubro Rosa na lapela.
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