Intervenção de Paula Cardoso sobre foto de Ricardo Ceppi/Getty Images
Epidemia tira “madres” da Praça de Maio
Memórias, chocolate e esperanças: a quarentena de uma mãe que, por causa da covid-19 na Argentina, saiu das ruas mas não da luta
Nora Cortiñas comemorou os 90 anos no domingo, 22 de março, sozinha e em casa – cumprindo a quarentena compulsória imposta na Argentina dois dias antes. “Nunca imaginei que um inimigo tão pequeno, a ponto de ser invisível, seria capaz de fazer o que os militares, no auge da ditadura, não puderam: nos manter trancafiadas e afastadas da Praça de Maio”, comenta. Enquanto fala comigo por um telefone, o outro toca insistentemente. Ela pede licença para atender. De longe ouço a voz meiga se desculpando por estar “bastante ocupada”, antes de se despedir com “um abraço virtual bem, bem forte” e a promessa de retomar os encontros de quinta-feira na Praça de Maio “quando tudo isso passar”.
As quintas são sagradas para Nora. Todas as semanas, neste mesmo dia, ela marca presença em frente à Casa Rosada, o palácio presidencial argentino. Veste um lenço branco, com o nome de Gustavo Cortiñas bordado em azul, e pendura no pescoço uma fita, com uma foto do rapaz de bigode e um sorriso parecido com o seu. Quando os ponteiros do relógio da praça marcam 15h30, ela começa a caminhar em círculos, e o faz durante meia hora, acompanhada por outras mulheres que, como ela, perderam os filhos nos porões da ditadura argentina (1976-1983). É um ritual para manter viva a memória dos 30 mil desaparecidos, que as Mães da Praça de Maio vinham cumprindo religiosamente durante os últimos 43 anos e até a chegada do coronavírus.
“Somos cada vez menos. Fomos morrendo no caminho, ou envelhecendo”, diz Nora, que se orgulha de ser uma das mais perseverantes. De estatura pequena e pele clara, ela parece mais jovem do que é. Mas sente a idade nos joelhos – uma dor que ela diz ter conseguido aliviar com maconha medicinal. Chegou a cultivar uma muda em casa. “Só faltei a alguma das mais de 2 mil marchas das quintas quando estava viajando ou tinha outro compromisso inadiável. Mas até agora, sempre tinha alguma de nós por lá.”
Agora a praça está deserta, como o resto do país. Só sai de casa quem precisa do essencial, como comida e remédios. Pelos dados oficiais, a polícia argentina já apreendeu mais de 2 mil veículos e parou mais de 27 mil pessoas que estavam violando a quarentena. A pena por colocar em risco a saúde pública é multa e cadeia. As medidas do governo para evitar o contágio têm o apoio de governadores e prefeitos, do Congresso e da sociedade em geral.
Em março, as Mães da Praça de Maio anunciaram o cancelamento das rondas emblemáticas e do ato previsto para o dia 24 – o aniversário do último golpe militar, que a democracia transformou em Dia Nacional da Memória pela Verdade e a Justiça. “Entendemos que o cuidado da população requer respostas solidárias para contribuir com a prevenção e a saúde do nosso povo”, disse o comunicado, assinado pelas demais organizações de Direitos Humanos que anualmente convocam milhares de argentinos às ruas nesta data. “Não podemos ir à praça para evitar o contágio, mas queremos que se contagie a esperança firme no nunca mais.”
O novo coronavírus desembarcou oficialmente na Argentina no dia 1º de março, trazido por um homem que voltava de uma viagem à Itália. Naquele dia, o presidente Alberto Fernández discursou na reabertura das sessões ordinárias do Congresso sobre os desafios do novo governo num país endividado, com 40% da população vivendo na pobreza e uma inflação anual superior a 50%, que enfrenta o terceiro ano consecutivo de recessão. Paralisar ainda mais a economia para combater uma pandemia não estava nos planos – até uma semana depois, quando a Argentina registrou a primeira morte por covid-19 na América Latina.
O governo primeiro fechou as escolas, depois as fronteiras, e finalmente impôs o “isolamento social, preventivo e obrigatório” a partir de 20 de março. A quarentena, prevista para durar onze dias, foi estendida até o final da Semana Santa, podendo ser prolongada por mais tempo. O presidente foi à televisão explicar que a decisão teria impacto econômico negativo, mas que dos males este seria o menor: “Uma economia que cai sempre se levanta, mas uma vida perdida não pode ser recuperada.”
Foi justamente na Semana Santa de 1977, há 43 anos, que Nora viu Gustavo pela última vez. A família tinha saído para almoçar num domingo de Páscoa. O filho mais velho, estudante de economia, era militante da Juventude Peronista e do grupo guerrilheiro Montoneros. “Meu marido e eu não seguíamos de perto o que estava acontecendo, levávamos nossa vidinha – mas tentamos convencer Gustavo a deixar a Argentina”, lembra Nora. Ele não quis. No dia 15 de abril, Gustavo saiu para o trabalho e não voltou. Tinha 24 anos. A mulher, Ana, soube que ele tinha sido levado pelos militares quando bateram na porta da casa onde o casal vivia com o filho Damián – hoje um quarentão.
Nora, dona de casa, saiu em busca de Gustavo nas cadeias e nos postos policiais. Nunca mais soube dele, e o rapaz se tornou um dos desaparecidos da ditadura argentina. Naquele mesmo ano, soube que algumas mães se encontravam na Praça de Maio para pedir pelos filhos desaparecidos e somou-se a elas. Como havia toque de queda e não podia haver aglomeração, a polícia mandava as mulheres circularem. E assim nasceram as rondas das quintas. No começo, as mães cobriam as cabeças com fraldas de pano. “Simbolizavam os filhos e netos que buscávamos e continuamos buscando. Agora, em vez de fraldas, usamos os lenços brancos”, diz Nora. Entre os desaparecidos estão cerca de 500 crianças – a maioria nascida em cativeiro. As prisioneiras grávidas eram mantidas com vida até darem à luz bebês que seriam apropriados. Suas identidades eram mudadas, para serem entregues ilegalmente em adoção – muitas vezes a pessoas ligadas ao regime.
Foi o caso de Ana Maria, filha de uma grande amiga de Nora, Mirta de Baraballe. Quando foi sequestrada junto ao marido, em agosto de 1976, ela estava grávida de cinco meses. O casal já tinha decidido que o bebê se chamaria Camila ou Ernesto. O parto foi no dia 12 de janeiro de 1977, num centro clandestino de detenção. “Foi a última pista que tive deles”, diz Mirta. “Não consegui saber o sexo da criança que nasceu, mas continuo buscando pela minha neta ou meu neto”. A organização Avós da Praça de Maio, que ela ajudou a fundar, já encontrou 130 filhos de desaparecidos – o último no ano passado. “Ando preocupada com Mirta, que sempre me acompanhava as rondas”, conta Nora. Mirta é bem mais alta que Nora, e cinco anos mais velha. Usa óculos com lentes meio escuras e tem um olhar triste. “Ela andou doente, não queria comer. Estou tentando animá-la para fazer uma exposição de fotos – quando a quarentena acabar”, diz Nora. É nas ruas que ela diz ter encontrado as forças para lidar com a perda do filho. “Os homens, como meu marido, que morreu de câncer há 25 anos, não aguentaram a dor e tiveram mortes prematuras. Nós, mães, colocamos tudo para fora: choramos, gritamos, esperneamos e obrigamos o mundo a nos ouvir. E não vamos parar”.
Ao longo das últimas quatro décadas, Nora adotou novas causas e virou “Norita”– aquela mulher de cabelos brancos e espírito jovial que os argentinos se acostumaram a ver caminhando com passinhos rápidos em muitas outras marchas. Ela já protestou contra o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o feminicídio, em defesa da legalização da maconha e do aborto. “Meu pai e meu marido eram machistas”, diz. Pausa para dar uma risadinha e continua: “Já eu, com os anos, virei feminista.” Viajou para a Turquia para dar apoio às mulheres curdas. E estava em São Paulo quando a vereadora Marielle Franco foi assassinada. “Vivi esse episódio terrível de perto. Estava na casa de uma amiga quando recebemos a notícia”, conta.
Em fevereiro, no relançamento da campanha pela legalização do aborto, ela foi chamada ao palco do evento como convidada de honra. Além do lenço branco na cabeça, levava outro verde amarrado no pulso – símbolo que as feministas adotaram, em homenagem às Mães da Praça de Maio, na luta delas pelo direito ao aborto livre, seguro e gratuito na Argentina. Ao vê-la, as manifestantes gritaram: “Chegou Norita, chegou Norita…” Em seguida entoaram o canto: “Las Madres de la Plaza, el Pueblo las abraza.” (As Mães da Praça, o povo as abraça.)
Sem poder sair de casa, Norita diz sentir saudades “daqueles abraços” que recebia nas marchas e dos “beijos de batom na cabeça, que deixavam meu lenço branco manchado de carinho” – mas que se sente “muito acompanhada”. No aniversário, a família e amigos de várias partes do mundo ligaram para ela. “Me mostraram por videochamada todos os bolos cheios de velinhas que fizeram para mim… e que eles mesmos comeram, né?”, diz rindo. “Eu mesma não pude provar um só pedaço e duvido que sobre algum para depois da quarentena. Ainda bem, porque sou diabética e devo me cuidar.”
Norita é viúva há 25 anos. O filho caçula, Marcelo, que vive perto, faz as compras para ela. Deixa tudo na porta da casa, sem entrar, mantendo a distância social. Quando a mãe fez 90 anos, levou uma baguette e presunto cru. “Fiz um sanduíche com tomatinho e azeite de oliva, ao estilo espanhol, e brindei com meu copinho de vinho Malbec.” Compensou a viagem que ela tinha planejado fazer no dia 26 à Espanha, terra de seus pais, e que também foi obrigada a cancelar pelo coronavírus.
No dia 24, Nora pendurou uns lenços brancos em volta da casa dela. Quando foi ver, os vizinhos tinham feito o mesmo, assim como milhares de outros argentinos que postaram fotos nas redes sociais. Naquele dia, milhares de argentinos participaram do “Pañuelazo” (manifestação com pañuelos, ou lenços) em homenagem às vítimas da ditadura, decoraram janelas e balcões com panos brancos, o símbolo das Mães.
A quarentena trouxe de volta memórias de outros tempos. “Não estava mais acostumada a ficar tanto tempo em casa”, explica. Todos os dias ela pegava três conduções do município de Castelar, na grande Buenos Aires, até o centro da capital, onde funciona a organização Mães da Praça de Maio Linha Fundadora, que ela ajudou a criar. Agora se distrai passando roupa e olhando pela janela, como o despertar da natureza em meio à pandemia.
Há uma semana, uma borboleta passeou pelas flores de seu quintal. A vizinha disse que no jardim dela apareceram duas. “Tem mais insetos e com eles reapareceram os pardais, que há anos não pousavam mais aqui”, comenta. “Deve ser porque as pessoas e os carros deixaram de circular, e o ar ficou mais limpo.” Durante o dia, Nora ouve apenas o rádio – só liga a televisão à noite, para se informar sobre as medidas do governo para evitar a propagação do novo coronavírus e também sobre o agravamento da crise econômica.
Quando Fernández assumiu o poder, há quatro meses, a Argentina estava novamente à beira do default. A prioridade do novo governo era renegociar a dívida de US$ 100 bilhões, primeiro com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e depois com os demais credores. O presidente viajou a Israel e à Europa, para explicar que o país estava quebrado e que só poderia começar a pagar o que devia depois de reativar a economia, “colocando dinheiro no bolso dos argentinos”. Faria isso congelando as tarifas dos serviços públicos e aumentando a ajuda social, para incentivar o consumo – o contrário do que tinha feito seu antecessor, Mauricio Macri. A meta do governo era apresentar um projeto de renegociação ao Fundo até o dia 31 de março – mas foi atropelado pelo “inimigo invisível” que vem aterrorizando o mundo.
“Com os mercados em alvoroço, a bolsa despencando e notícias de uma recessão mundial, é impossível fazer promessas ou previsões – ninguém tem ideia do que está acontecendo ou vai acontecer”, diz o economista e professor da Universidade Nacional de Buenos Aires (UBA), Raul Ochoa. “A única opção, por enquanto, é emitir moeda para evitar uma explosão social num país onde 40% da economia é informal.”
De casa, Nora acompanhou o anúncio do pacote de ajuda de Fernández aos mais vulneráveis e afetados pela crise. O governo aumentou a assistência às famílias carentes, proibiu reajustes de aluguel e determinou que as empresas não poderiam cortar os serviços básicos daqueles que estavam sem condições de pagá-los. As medidas também incluem isenções impositivas a pequenas e médias empresas, para que sobrevivam e evitem demissões. Da dívida, que era manchete um mês atrás, quase não se fala – pelo menos em público.
Mas Nora mantém encontros virtuais, com um grupo que costumava se reunir para discutir a dívida externa e do qual faz parte o Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel. Ela continua acordando cedo, para dar e receber telefonemas. De manhã, costuma conversar com o jornalista australiano Jayson McNamara, diretor e produtor de um documentário sobre o jornal de língua inglesa Buenos Aires Herald e seu papel em acolher e publicar denúncias de violações de Direitos Humanos durante a ditadura argentina. O Mensageiro num Cavalo Branco estreou em 2017. Mas agora ele está fazendo outro, sobre Norita. Deveria ter chegado aos cinemas em março – mas esse projeto também foi atrasado pela pandemia.
Há uma semana, Nora percebeu que em casa só tinha sobrado um pedacinho do chocolate. “Comi com uma sensação de culpa – e continuei com o desejo de mais”, confessa. A médica que trata da diabetes diz que ela tem direito a um bombom por dia, mas Nora não sabe quando vai poder repor o estoque. “Se alguém me perguntar neste minuto o que mais quero, responderia como uma criança: me traga um chocolatinho para adoçar a quarentena.” Pergunto a Nora se tem medo. Ela conta que já viu de tudo na vida e recebeu, há pouco, notícias da morte de um amigo na Espanha, pela covid-19. Trabalhavam juntos na investigação dos crimes cometidos na ditadura de Francisco Franco, que nunca foram julgados. “São dias terríveis para todos, especialmente os que menos tem – mas confio na solidariedade do povo argentino, que entendeu a necessidade das medidas drásticas tomadas para evitar o contágio”, diz.
Nesta quinta-feira (9), as mães realizariam a marcha número 2.191. O governo argentino prorrogou a quarentena por tempo indeterminado. Nora tem certeza de que, um dia, voltará à Praça de Maio para comemorar novamente os 90 anos e retomar a luta. “Meu filho está desaparecido e não vou baixar os braços até saber o que aconteceu com ele. A palavra morte não existe no meu vocabulário ”, assegura.
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