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questões literárias

Ernaux em dois atos

Em Paixão simples e A outra filha, a escritora francesa mergulha no próprio passado com a objetividade e a precisão de uma repórter

Ana Clara Costa | 01 jan 2024_18h59
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Paixão simples, escrito pela ganhadora do Prêmio Nobel Annie Ernaux, foi lançado na França em 1991, mas, exceto por alguns elementos que delatam o anacronismo da época – como a falta de um telefone celular –, poderia ser uma obra recente. Ao contrário da maior parte de seus romances, em que ela evoca acontecimentos do passado usando um estilo quase jornalístico para falar de si, Paixão simples é um mergulho atemporal e psicanalítico na obsessão vivida durante um caso amoroso. Não há passado, presente ou futuro. Apenas a objetividade sociológica e o rigor descritivo para narrar todas as fases da obsessão e do desejo, até eles se esvanecerem, em razão da separação, dois anos depois de seu início.

A história é autobiográfica. Uma escritora de cinquenta e poucos anos, divorciada, com dois filhos crescidos, se envolve com um homem casado. Ele é descrito apenas por uma inicial (A.) e poucas características (certa semelhança com o ator Alain Delon e ser originário do Leste europeu). À parte disso, tudo é sobre ela, sua obsessão e sua espera. Os encontros sempre se dão em sua casa, no subúrbio de Paris, de acordo com a disponibilidade de A., que telefona avisando quando poderá ir. A autora parece confortável em sua passividade. Não há questionamentos nem cobranças, tampouco saídas em público, jantares ou cinema. A espera pela ligação se torna a vida da escritora. Sua rotina enquanto aguarda o próximo encontro (programas familiares, amigos, vida acadêmica) ganha um tom opaco, enquanto a ansiedade pela chegada do grande dia torna-se quase tão prazerosa quanto o ato sexual. 

A autora não se justifica ou dá explicações. Nem julga a si mesma quando, num rompante de desespero, promete dar 200 francos à Unicef caso o destino fizesse com que A. fosse vê-la antes do previsto. Com a precisão de uma repórter, ela se limita a descrever a obsessão. Não fala de amor ou de um futuro com A. Um dos romances mais lidos da França na ocasião de seu lançamento, Paixão simples foi publicado no Brasil primeiro pela editora Objetiva, na década de 1990. Em 2023, foi relançado pela Fósforo, que passou a representar a escritora pouco antes de ela ganhar o Nobel, em 2022. 

Também em 2023, a Fósforo traduziu A outra filha, romance em que Ernaux usa o recurso narrativo mais frequente em sua obra: o relato descritivo de seu próprio passado, embora, desta vez, a autora recorra ainda mais à psicanálise do que em Paixão simples e seus outros escritos traduzidos no Brasil. 

Ela conta sua relação com sua irmã Ginette, que não chegou a conhecer porque morreu aos seis anos, vítima de difteria, antes do nascimento da autora. Aos dez anos, Ernaux descobriu por acaso a existência da irmã durante um diálogo descuidado de sua mãe com uma cliente do café administrado pela família, num pequeno vilarejo da Normandia. A partir da descoberta, ela passa a viver tal como um duplo da irmã morta, como se ambas fossem indissociáveis, embora completamente estranhas uma à outra. Numa carta à irmã, ela tece hipóteses para justificar o ocorrido. Uma delas é o sacrifício: Ginette ter morrido para que ela pudesse nascer, já que os pais estavam decididos a ter apenas um filho. Ou ainda: para que ela pudesse escrever (“Eu não escrevo porque você está morta. Você morreu para que eu escreva, isso faz uma grande diferença”). 

Como a autora jamais ousou tocar no assunto com os pais, nem mesmo adulta, depois de ter se tornado mãe, toda história se constrói com base em observações e análises de sua infância. Por um comentário feito pela mãe à cliente, “ela era mais boazinha que essa aí”, a autora traça o perfil da irmã como um mito que ela jamais alcançaria, uma santa, estabelecendo frequentemente uma competição da qual ela sairia invariavelmente perdedora. Em outros momentos, constata sentir-se mais forte e viva por saber que ela, sim, sobreviveu, enquanto Ginette, não.

A ausência de Ginette dita a relação da autora com os pais, e a própria relação do casal, que ela acredita só existir em razão da dor em comum que partilham. Em A vergonha, lançado em 2022, ela descreve o episódio de violência em que o pai quase matara a mãe, depois de uma discussão. Em A outra filha, ela vai além: só não a matou por causa da irmã morta.

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