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Espectros do Shoah – missionário e justiceiro

Eduardo Escorel comenta "Claude Lanzmann: Espectros do Shoah", média-metragem de 40’ escrito, produzido e dirigido pelo jornalista Adam Benzine

Eduardo Escorel | 26 maio 2016_16h16
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Dentre os filmes exibidos no recente Festival É Tudo Verdade, um dos mais interessantes e possivelmente menos comentados é, sem dúvida, Claude Lanzmann: Espectros do Shoah, média-metragem de 40’ escrito, produzido e dirigido pelo jornalista Adam Benzine.

Sem experiência prática anterior em cinema, ao tomar conhecimento de Shoah e de Claude Lanzmann, em 2009, Benzine supôs que existiria um filme sobre ele. Ao constatar que nenhum havia sido feito, sentiu que precisava colocar uma câmera diante de Lanzmann. Desse impulso, resultou Claude Lanzmann: Espectros do Shoah, primeiro filme de Benzine, exibido no ano passado em 9 festivais mundo afora, distribuído pela HBO Documentary Films e indicado este ano ao Oscar.

Adam Benzine
Adam Benzine

Com apenas duas sessões, em abril, na Mostra Programas Especiais do É Tudo Verdade, uma no Espaço Cultural BNDES, sala de acesso penoso no centro do Rio, e outra no Cinearte, principal sala do Festival, em São Paulo, é compreensível que Claude Lanzmann: Espectros do Shoah tenha sido pouco visto. Menos aceitável, porém, considerando o ineditismo de um filme dedicado a Lanzmann, além da importância de Shoah e dele, é a falta de repercussão do documentário entre nós.

Claude Lanzmann: Espectros do Shoah começa mal, com uma frase de Jean-Paul Sartre em forma de epígrafe – “Compromisso é um ato, não uma palavra.” Citações solenes como essa, inseridas no início de filmes, servem apenas para revelar a pretensão do diretor em se fazer passar por culto. A transposição de recurso literário desgastado, e meio fora de moda, tem efeito nulo até sobre o espectador ingênuo que poderá ficar impressionado ao ler a citação, mas dificilmente lembrará dela no instantes seguinte à leitura.

Depois da epígrafe, a primeira sequência de Claude Lanzmann: Espectros do Shoah, apresenta seu personagem principal através de um tríptico de vozes revestidas de autoridade, que combinam hagiografia e algumas estocadas suaves. A justificativa de Benzine para contrariar seu principal objetivo – “falar com Lanzmann sobre a vida dele” – é ter considerado que “Shoah é um filme que precisava ser explicado” para permitir que seu documentário pudesse agradar a “um público maior” – ambições que o próprio Lanzmann jamais teve. Em 40 anos de carreira, ele construiu uma obra única, composta de apenas seis documentários, sem levar em conta considerações dessa ordem. Nem por isso deixou de ocupar a partir da estreia de Shoah, em 1985, posto cativo entre os mais importantes realizadores da história do cinema. Hoje, tendo feito o que fez, Lanzmann não deveria precisar ser apresentado através de frases de efeito como as do cineasta Marcel Ophuls, do professor Stuart Liebman e do crítico da New Yorker Richard Brody.

O que há de mais interessante em Claude Lanzmann: Espectros do Shoah são duas sequências interligadas. Uma, resulta da inclusão de imagens inéditas, filmadas durante a realização de Shoah, mas não aproveitadas na montagem final, depositadas por Lanzmann no Museu do Holocausto dos Estados Unidos e no Arquivo Yad Vashem – Memorial do Holocausto, em Jerusalém. Na outra sequência marcante, Lanzmann comenta essas imagens, vencendo sua relutância diante da insistência de Benzine que, dessa maneira, volta contra o próprio Lanzmann o método de extrair depoimentos a força, usado por ele em Shoah.

Vemos, pela primeira vez em Claude Lanzmann: Espectros do Shoah, imagens de Lanzmann se preparando para filmar conversas com criminosos de guerra – ex-integrantes da SS alemã que atuaram em campos de extermínio durante a Segunda Guerra Mundial – sem que eles soubessem que uma gravação estava sendo feita. Lanzmann entrara em contato com eles em nome de um instituto de pesquisa histórica inexistente, com nome suposto e documentos de identidade falsos. E pagou para que concordassem em recebê-lo e serem entrevistados.

Vemos Lanzmann tirando a camisa e um gravador sendo preso ao seu torso nu, debaixo da axila esquerda. Além do gravador, ele e sua assistente Corinna Coulmas levaram uma pequena câmera de video, escondida em uma bolsa, capaz de transmitir as imagens das conversas para uma unidade móvel de gravação instalada em um carro Volkswagen Kombi estacionado em frente à casa do entrevistado.

Só dessa maneira foi possível registrar e incluir em Shoah as conversas de Lanzmann com Franz Suchomel e Franz Shalling, o primeiro, oficial da SS no campo de extermínio de Treblinka, e o segundo, guarda do campo de extermínio de Chelmo, ambos na Polônia. Esse procedimento clandestino para conseguir gravar o que de outra forma não teria sido possível nunca parece ter sido posto em questão, nem por Lanzmann, nem por historiadores ou críticos que escreveram sobre Shoah.

No livro de memórias que publicou na França em 2009, A lebre da Patagônia, editado no Brasil em 2011, Lanzmann admite que após “repetidos fracassos” optou pela “enganação, pelo subterfúgio, pela clandestinidade, pelo risco máximo. […] O preço da franqueza e da honestidade vinha sendo uma estrondosa falência, precisava aprender a enganar os enganadores, era esta uma obrigação imperiosa.”

Além da preparação para as gravações, Claude Lanzmann: Espectros do Shoah inclui trechos, também inéditos, do desastroso encontro de Lanzmann com o ex-oficial da SS Heinz Schubert. A sequência começa com ele e Corinna Coulmas chegando à casa de Schubert e tocando a campainha. Mostra ainda o momento em que o estratagema camulfado é descoberto e a gravação interrompida à força.

No depoimento gravado por Benzine, Lanzmann acaba contando o que ocorreu – a surra que levou e como conseguiu escapar vivo com Corinna, tendo ficado hospitalizado por um mês.

A insistência de Benzine em que Lanzamann conte esse episódio não se compara à dele na famosa cena de Shoah em que ele constrange Abraham Bomba, membro do Sonderkommando de Treblinka, a falar diante da câmera sobre o corte de cabelo de mulheres e crianças que ele fazia dentro da câmara de gás. Lanzmann pergunta o que ele “sentiu a primeira vez que viu todas essas mulheres vindo”. Bomba tergiversa, inicialmente. Minutos depois, Lanzmann insiste: “Mas eu perguntei e você não respondeu: qual foi sua impressão a primeira vez que viu essas mulheres nuas chegando com crianças? O que você sentiu?”. Mais uma vez, Bomba tergiversa: “Eu lhe conto uma coisa. Sentir algo sobre isso…era muito difícil sentir alguma coisa, por que trabalhando lá dia e noite entre pessoas mortas, entre corpos, seu sentimento desaparece, você estava morto.” Lanzmann, porém, não se dá por vencido. Continua insistindo e, estranhamente, passa a falar na primeira pessoa do plural, como se Bomba e ele estivessem na mesma posição: “Continue, Abe. Você tem que continuar. Você tem que.” Bomba: “Não posso. É horrível demais. Por favor.” Lanzmann: “Nós temos que fazê-lo. Você sabe. […] Eu sei que é muito duro. Eu sei e peço desculpas.”

A. Bomba e Lanzmann
A. Bomba e Lanzmann

A insistência de Lanzmann, em Shoah, nem de longe pode ser comparada à de Benzine – são insistências de grau e natureza diversos. Do mesmo modo, a dificuldade de Bomba para falar tampouco é comparável à relutância de Lanzmann em contar o que aconteceu quando tentou gravar sua conversa com Heinz Schubert – não há equivalência entre seus traumas que os induzem à dificuldade de romper o silêncio.

Aos 90 anos, Lanzmann parece estar bem acima do peso e muito cansado. Talvez tivesse sido melhor preservar-se mais, evitando filmes como Claude Lanzmann: Espectros do Shoah que o obrigam ao triste papel de mimetizar a si mesmo, repetindo o que já contou melhor em A lebre da Patagônia. É nas suas memórias, mais do que no filme de Benzine, que Lanzmann pode ser encontrado: “[…] as lágrimas de Abraham [Bomba] eram para mim preciosas como sangue, o selo da verdade, a própria encarnação. Houve quem visse nessa cena aventurosa a manifestação de algum sadismo de minha parte, ao passo que vejo nela, pelo contrário, o paradigma da compaixão, a qual não consiste em recuar pé ante pé perante a dor, mas em obedecer, antes de mais nada, ao categórico imperativo da busca e da transmissão da verdade.”

Os filmes de Lanzmann, mais ainda do que obras de um documentarista, resultam da tenacidade de um justiceiro e missionário.

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