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    George Santos na saída do prédio da Corte Federal, em Central Islip (Nova York) - Crédito: Shannon Stapleton/ Reuters/Folhapress

questões de impostura

“Estava enaltecendo um currículo, mas aí me chamar de criminoso?”

Em entrevista inédita, George Santos, deputado de origem brasileira investigado por fraudes nos Estados Unidos, nega ser mentor em esquema de clonagem de cartões de crédito

João Batista Jr. | 11 maio 2023_15h33
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Gustavo Ribeiro Trelha trabalhava como comissário de bordo da Gol quando foi demitido em um corte na empresa, em 2013. Decidiu então se mudar para os Estados Unidos para fazer a vida. Ele entrou no país com visto de turista e por lá começou a trabalhar de forma ilegal no setor de construção civil. Começou ganhando 100 dólares por dia em sua jornada como pedreiro. Mas Trelha tinha outras ambições. Em 2016, o seu destino se cruzaria com o do deputado republicano e conservador George Santos, que nesta quarta (10/5), se apresentou à Justiça americana sob acusação de cometer treze crimes, entre eles lavagem de dinheiro e roubo de fundos públicos. Santos, filho de brasileiros, já foi flagrado em várias mentiras sobre sua vida e seu currículo. A piauí e a rádio Novelo o entrevistaram em dezembro passado, antes que as as mentiras e denúncias de fraudes viessem à tona. Trelha, por sua vez, esteve preso nos Estados Unidos por fraude bancária e foi deportado em 2017. No Brasil, responde a um processo sob acusação de torturar uma criança e é considerado foragido da Justiça. 

Em março deste ano, Trelha começou a contar à piauí como conheceu Santos. “Eu estava procurando uma casa maior para alugar”, lembra Trelha, que em 2016 vivia na cidade de Orlando, na Flórida. Disse que entrou no grupo de Facebook chamado “Brasileiros em Orlando”, quando viu uma postagem de um imóvel de quatro quartos disponível para locação no bairro de Winter Park. O anunciante era Anthony Devolder, como George Santos se apresentava, usando seus sobrenomes do meio – seu nome completo é George Anthony Devolder dos Santos. Trelha alugou um quarto com outros três amigos, todos brasileiros também vivendo de forma ilegal no país. O imóvel estava em nome de George Santos, que sublocava quartos aos brasileiros.

Cansado de trabalhar como pedreiro e ansioso para ter uma vida melhor, Trelha fez uma pergunta a Santos quando foi tratar da locação do imóvel. “O Anthony se apresentou como funcionário do departamento de Safety Security de um banco. Então perguntei se existia um jeito de ganhar dinheiro rápido e fácil. Ele me disse que sim.” Segundo Trelha, Santos falou que a opção de fazer dinheiro era entrar em um esquema de clonagem de cartão de crédito. “Eu perguntei dos riscos de fazer esse negócio, se eu poderia me f****. Ele me disse: ‘como tudo que é errado, você pode se dar mal. Mas se não der errado, você vai longe.’”

Trelha demonstrou interesse – e a conversa se tornou um tutorial. De acordo com Trelha, Santos ensinou o passo a passo para clonar cartão. Primeiro, com explicações técnicas. Era preciso colocar no caixa automático um “skimmer”, no Brasil conhecido como “chupa-cabra”, responsável por fazer a leitura dos dados dos cartões, e também uma câmera para registrar quando o usuário digita a senha. Tendo os dados do cartão e a senha do usuário, um software faz o cruzamento dessas informações para então mandar imprimir cartões com dados idênticos aos registrados pelo dispositivo. No mesmo dia em que se conheceram, segundo Trelha, os dois partiram para estruturar e dar início ao esquema de fraude financeira. “[George Santos] me levou até um depósito em Metrowest [bairro de Orlando], e me deu duas peças de cada [skimmer e câmera] e uma impressora para imprimir cartões de crédito. Ele tinha um arsenal muito grande por lá”, afirma Trelha. Para além de ensinar e dar o material, Santos forneceu outras instruções, conforme o relato de Trelha. “Ele explicou para não ficar mais de três dias em uma mesma cidade, para não chamar a atenção, e também para fazer saques em cidades diferentes daquelas onde os cartões foram clonados.” Antes de fazer o saque com os cartões clonados, Trelha e Santos faziam uma reunião online. Santos disse a Trelha: “Tu me chama no Teamviewer [aplicativo de conversa que permite acesso remoto a um computador], eu acesso o equipamento e descarrego as informações.”

O combinado era que cada um ficasse com 50% do lucro da trambicagem. “No primeiro mês, eu pessoalmente entreguei 100 mil dólares em dinheiro para o Anthony. Entreguei o dinheiro em sacolas de supermercado”, diz. Com esse montante de dólares logo no primeiro mês de operação do esquema, Trelha decidiu escantear Santos para não precisar rachar o dinheiro. Entre novembro de 2016 e maio de 2017, Trelha rodou diversos estados dos Estados Unidos alugando carros e se hospedando em hotéis com documentação falsa. Ele diz ter arrecadado um total de 1 milhão de dólares em menos de seis meses, tendo enviado boa parte do valor ao Brasil através de transações feitas pelo Western Union. Mesmo nas viagens feitas exclusivamente para clonar cartões, o brasileiro aproveitava para ter uma agenda pessoal. Em Seattle, tinha planos de visitar a casa onde morou Kurt Cobain, o túmulo de Jimi Hendrix e a fábrica da Boeing.

Não deu tempo. A sua casa caiu às 20 horas do dia 27 de abril de 2017. Ao se aproximar de um caixa eletrônico da ATM enquanto tentava remover o “chupa-cabra”, perto do mercado municipal da cidade, ele foi cercado por diversos policiais. Trelha usava uma CNH brasileira falsa com o nome de Matos Fontinele. Em seu bolso havia nove cartões de crédito falsos. A polícia foi ao hotel onde Trelha estava hospedado, onde encontrou mais documentos falsos e materiais para fazer a clonagem de cartão. Trelha deu entrada na delegacia às 23 horas daquela mesma noite. Achou que sairia rápido, mas não foi o que aconteceu. “Passou uma semana e falei: ‘Mano, preciso avisar alguém que eu tô aqui.’” Ligou então para seu pai, no Brasil, pedindo que entrasse em contato com os amigos de Orlando através do Facebook. Trelha não lembrava de cabeça o telefone de ninguém. O pai então ligou para Leide Santos, sua colega de casa e ex-namorada, pedindo que entrasse em contato com George Santos. “Como ele tinha cidadania americana e foi quem ensinou tudo [sobre o esquema de clonar cartão], deveria me ajudar.”

 

George Santos esteve na prisão de King County, em Seattle, no mês de maio. A conversa entre eles não se deu de forma agradável. “O Anthony me ameaçou. Disse que, se eu envolvesse o nome dele, ele iria denunciar os meus amigos brasileiros que estavam ilegais e todos seriam deportados. Como eles não tinham nada a ver com esse esquema do cartão, eu fiquei calado”, diz. Mas Santos se comprometeu a arrumar um bom advogado. “Ele falava que seria o mesmo advogado do [narcotraficante] El Chapo, só que ele nunca apareceu com o advogado”, diz Trelha.

Segundo Trelha, Santos voou até Orlando, recebeu das mãos de Leide Santos 20 mil dólares para contratar o advogado – mas desapareceu com a grana. “Eu tinha esse dinheiro no cofre de casa”, contou Trelha, que se gaba de, na época das fraudes, andar com pelo menos 10 mil dólares na carteira. “Eu era meio Robin Hood, era surreal: pagava gasolina de pessoas, dava dinheiro para mendigo. Daria um filme.”

George Santos esteve na audiência de fiança de Trelha no dia 15 de maio de 2017, em Seattle. Na ocasião, ele declarou em juízo trabalhar para o Goldman Sachs e ser amigo de Trelha de longa data. Santos nunca deu expediente nesse banco nem havia visto Trelha antes de sublocar para ele a casa de Orlando. O deputado republicano foi contatado pela polícia de Seattle porque, dentro do carro alugado por Trelha, havia uma caixa vazia da FedEx com o endereço de Orlando cujo registro de aluguel estava em seu nome. Disse Santos na audiência na corte de Seattle, conforme gravação de seu depoimento: “Nós somos amigos de família. Os nossos pais se conhecem do Brasil. Nos conhecemos há alguns anos, mas perdemos o contato. Retomamos o contato em setembro do ano passado, em Orlando, quando fui transferido de Nova York para trabalhar na região de Orlando.” O juiz então pergunta qual era o trabalho de Santos, que responde: “Tenho aspiração em ser político e trabalho para o Goldman Sachs, em Nova York.” Depois, Santos afirma que os pais de Trelha estão enviando dinheiro para arcar com suas despesas em Seattle, cidade para onde foi ajudar o “amigo” da família.

Em março deste ano, Santos foi procurado pela piauí para dar a sua versão a respeito da acusação de Trelha. Ligou de volta em menos de três segundos. Antes da conversa se desenvolver, ameaçou entrar com um processo. “Eu recomendo você dar uma olhada para não se meter no que vai ser uma das batalhas legais mais incríveis da história política americana, porque eu vou processar. Ele é fugitivo”, disse Santos sobre Trelha. O deputado se referia à reportagem da Folha de S.Paulo informando que Trelha é foragido da Justiça brasileira e responde a um processo por espancar uma criança de 3 anos, filho de uma antiga namorada, em 2019.

Santos confirmou conhecer Trelha. “Eu vi esse homem na minha vida quatro vezes, quatro únicas vezes. No dia no qual ele foi ver o apartamento que sublocou de mim; no dia em que mudei do apartamento e ele se mudou para dentro do apartamento; no dia em que visitei ele na cadeia; e no dia em que vi ele na Corte já como informante da polícia. Não tem história. Nunca participei de esquema [de clonagem de cartão]”, contou. “A palavra de um bandido de m** não serve de nada, você está dando palco para um cara que espancou uma criança?”, indagou.

O deputado se diz vítima de um complô. “Tem provas aqui nos Estados Unidos, concretas, de que ele [Trelha] está sendo pago para poder me incriminar. Tem repórter envolvido nesse esquema de enquadramento, tem advogado corrupto, Partido Republicano corrupto….” Sem apresentar provas, ele diz ser alvo de um conluio entre a imprensa e o seu próprio partido. “A minha estadia na Flórida é extremamente documentada e comprovável. Meu parecer de onde estava por causa do meu trabalho, e minha mãe com câncer, de eu estar constantemente dentro do hospital.” A mãe de Santos morreu de câncer em 2016. Então o deputado voltou a fazer ameaças: “É muito fácil provar que é mentira, e você não quer se enfiar nisso para você não se prejudicar. Se você quer ir para frente com a piauí com essa matéria, fica à vontade, você tem liberdade de expressão. Mas todo mundo que escrever coisas falsas e me caluniando na mídia, eu vou seguir os meus direitos.”

Quando contestado sobre ter afirmado ao juiz durante audiência que trabalhava no Goldman Sachs e conhecia Trelha de longa data, minimizou: “Tudo bem, não me graduei na faculdade. Mas fiz trabalhos para eles [Goldman Sachs] sim, trabalhando para subsidiárias”, diz, sem citar o nome de nenhuma delas. “Estava enaltecendo um currículo, mas aí me chamar de criminoso?”

Santos negou ter ido até Orlando para pegar 20 mil dólares de Trelha para contratar o mesmo advogado de El Chapo. “Se eu sou um cabeça de quadrilha, eu vou pedir para um pequenininho?” Santos afirma que as duas vezes em que esteve em Seattle não foi na condição de amigo de Trelha, mas de informante da polícia.

Pergunto se Santos poderia me fornecer alguma prova dessa sua colaboração com as autoridades. “Tenho prova, mas não vou dar para você. A revista piauí não representa nada nos Estados Unidos, correto? Eu já passei essa informação para a mídia daqui, que já tá correndo com essa história, já passei e-mail…” O deputado também falou sobre uma suposta interferência feita junto à Globo. “Você já percebeu que a Globo parou de fazer matéria sobre mim? Presta atenção que a Globo parou. Porque eles começaram a se tocar com a furada judicial que estão se metendo. A gente conversou com o jurídico da Globo, que estava pegando depoimento de pessoas sem provas. Eu tenho direitos.” Procurada pela piauí, a  assessoria de imprensa da Globo “nega veementemente” tal afirmação e informa que a emissora segue cobrindo os acontecimentos ligados ao deputado.  De fato, os programas jornalísticos da Globo continuam tratando do assunto como antes.  

 

Em janeiro deste ano, quando estava na Suíça na casa de um amigo e viu no Fantástico uma reportagem sobre a teia de mentiras de George Santos, Gustavo Ribeiro Trelha reconheceu o homem na tela da tevê – e decidiu delatar o esquema da clonagem de cartões de crédito. Por meio do advogado americano Mark Demetropoulos, enviou uma carta ao FBI para relatar a mentoria de Santos no esquema.

Em um primeiro momento, Trelha afirmou que Demetropoulos foi um dos defensores públicos que cuidou de seu processo em Seattle. Depois, mudou de versão. Disse ter chegado ao seu nome após pesquisas na internet. “Fui eu quem indiquei o advogado ao Trelha”, conta o empresário e advogado Grant Sally, dono do jornal North Shore Leader, de Long Island, primeiro veículo a publicar matéria sobre as mentiras de George Santos, antes mesmo de ele ter sido eleito deputado. “Então o Trelha fez pesquisa na internet, achou a cobertura e me contatou. Eu indiquei Demetropoulos, que além de advogado, também é colunista do meu jornal.” Sally é integrante do Partido Republicano e já tentou, sem sucesso, ser escolhido pela legenda para disputar uma vaga de congressista pelo 3º distrito de Nova York, o mesmo pelo qual Santos se elegeu. Procurado por e-mail e WhatsApp, Demetropoulos não retornou aos pedidos de entrevista.

Após o envio da carta com a denúncia, Trelha ainda não prestou depoimento para o FBI, pois não declarou às autoridades americanas em que país está vivendo atualmente. O FBI exige essa informação, com provas, como forma de dar continuidade ao caso. No Brasil, o status de Trelha é de foragido da Justiça por causa do processo de agressão ao filho da ex-namorada. No último dia 24 de abril, houve uma primeira audiência do caso, feita de forma híbrida. Trelha, que disse não se considerar foragido, compareceu remotamente, mas a audiência precisou ser remarcada por causa da ausência de testemunhas de acusação. “Fizemos uma investigação particular a partir do momento que essa criança chegou com traumatismo craniano em três partes, depois houve uma investigação pública complementar e o pedido de prisão. A Justiça mandou prender Trelha e a mãe da criança. Ela, no entanto, conseguiu um habeas corpus. Trelha, não”, conta Felipi Martins, advogado que representa o pai da criança.

Deportado dos Estados Unidos em 2017 e sem autorização de retornar ao país, Trelha tem um objetivo bastante específico com a denúncia: espera ter seu nome retirado da lista das pessoas impedidas de entrar em território americano.

George Santos também sofre restrição de movimentação. Após ser obrigado a se apresentar nesta quarta à Justiça americana, onde está sendo investigado por treze crimes que, em caso de condenação, podem resultar em 20 anos de prisão, o deputado fez um acordo para não permanecer preso durante a investigação. Três pessoas, cujos nomes não se tornaram públicos, pagaram uma fiança de 500 mil dólares no total, e Santos foi liberado, mas só pode transitar entre as cidades de Nova York e Washington. Ele segue ocupando o cargo de deputado no Congresso americano. Apesar da pressão de seu partido e da oposição, afirma que não irá renunciar.

Há uma outra dor de cabeça para Santos, agora em Niterói, cidade natal de sua família materna. Com a revelação da avalanche de lorotas de seu currículo, foi reaberto um caso de 2008 no qual ele é acusado de estelionato e de ter furtado duas folhas de um talão de cheques de um ex-patrão de sua mãe, já falecido, para fazer compras em uma loja multimarcas de grife. Uma audiência do caso foi realizada na tarde desta quinta, 11, na 2ª Vara Criminal de Niterói, para buscar um acordo de não persecução penal, algo previsto para casos de crimes sem violência e grave ameaça ou com pena inferior a quatro anos. Procurado pela piauí, o advogado de Santos no Brasil, Jonymar Vasconcelos, não retornou às ligações e mensagens. À época da compra com folhas de talão alheio, Santos chegou a escrever pelo Orkut ao vendedor da loja, que teve de arcar com a despesa: “Sei que pisei na bola e tall mas quero pagar”. Nunca pagou. Essa conversa consta no inquérito policial. 

Na audiência, Santos apareceu de forma remota. Seu advogado, de forma presencial. Para encerrar o processo, ele firmou um acordo para pagar 14 mil reais a Carlos Bruno Simões, vendedor que recebeu os cheques. Esse valor deve ser pago em até 30 dias. “Para o acordo ser feito, além de pagar essa multa, ele precisou confessar o crime de estelionato”, conta Simões, que se sente aliviado e frustrado ao mesmo tempo. “Finalmente a Justiça se fez presente, embora tenha sido muito branda a multa. O cara ontem pagou 500 mil dólares de fiança nos EUA para responder em liberdade a diversas investigações, então 14 mil reais é uma pechincha.” 

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