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Eu canto samba

Eliete Negreiros | 07 dez 2012_16h15
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O samba nasceu no início do século XX, criado pelos negros escravos que vieram, viveram e nasceram no Brasil e que mesmo depois de finda a escravidão ainda vivem em condições de pobreza e marginalidade, apesar de todos os esforços dos atuais governos – principalmente de Lula e Dilma – para curar esta ferida da nossa história, com suas políticas de inclusão social. Bom, são os negros os criadores de grande parte de nossa exuberante cultura popular, principalmente da dança e da música. Sérgio Cabral em “As Escolas de Samba do Rio de Janeiro”, chama a atenção para o fato de “que a comunidade negra, instalada no centro da cidade do Rio de Janeiro, criava, mais do que um gênero musical, uma cultura musical.” Isso quer dizer que o samba é uma expressão complexa, que o seu sentido não se resume nem à sua estrutura musical, nem a um determinado estilo de letra de música, mas que é uma expressão ancorada dentro de um universo sócio-cultural, onde música, dança, religião, vida, valores se entrelaçam e se iluminam, criando uma teia de significações; onde  cada expressão singular é constituída pelos elementos que compõem este tecido cultural, a cultura afro-brasileira. Falo disso em meu livro Ensaiando a canção: Paulinho da Viola e outros escritos, onde também há uma entrevista com Paulinho, em que ele diz: “O samba, como o choro, é a expressão de grande força do povo negro, expressão da vida das pessoas que viveram durante grande parte do tempo e, ainda vivem, marginalizadas. É a expressão mais verdadeira, expressão mais forte (desta forma, deste ritmo e) desse povo marginalizado. É uma coisa muito ampla e como toda obra é direta, mas, como toda expressão artística, encerra nela algum segredo. Se fosse explícito demais, não seria obra. Há coisas que não são bem apreendidas por nós. O samba, e também o choro, não é só fraseado, nem ritmo, nem melodia sincopada. É uma coisa multifacetada. O samba mais primitivo vem influenciando e servindo de suporte a várias manifestações não só do povo negro, mas de outras camadas da sociedade.”


Apoteose do Samba – Silas de Oliveira, Mano Décio da Viola com Jamelão

O samba na sua origem foi muito perseguido. O compositor Donga, em 1963, num depoimento prestado a Hermínio Bello de Carvalho, conta o seguinte: “O fulano da polícia pegava o outro tocando violão, este sujeito estava perdido. Perdido! Pior que comunista, muito pior. Isso que estou lhe contando é verdade. Não era brincadeira, não. O castigo era seríssimo. O delegado botava lá umas 24 horas.” Samba era sinônimo de vagabundagem, de malandragem. Passado tanto tempo, há gente que ainda tem preconceito. Numa entrevista mais recente ao jornal Folha de São Paulo, em 1994, Chico Buarque disse: “Outro dia, num jornal, um sujeito para falar mal de mim me chamou de sambista, como se fosse um insulto. E eu sou um sambista. Quando eu morrer, quero que digam: morreu um sambista que escrevia livros.”


Festa Imodesta – Chico Buarque. Cantam Caetano e Chico

Para muitos, o início oficial do samba foi a gravação de Pelo telefone feita pelo cantor Baiano em 1917. Foi aí que apareceu pela primeira vez a designação “samba carnavalesco”. Registrado como sendo de autoria de Donga. Seria de Donga ou de Sinhô? Ou de nenhum dos dois? Houve muita discussão. Donga registrou em seu nome, Sinhô brigou por ela, outros fizeram outros versos, reivindicando a autoria. Uma confusão. Pelo telefone nasceu nas rodas de samba da casa da Tia Ciata, baiana que vivia no centro da cidade do Rio de Janeiro. Sua casa era um reduto de sambistas e chorões. Este samba já era muito conhecido pelos frequentadores de lá, Pixinguinha, Donga, João da Baiana, Sinhô, Caninha, Heitor dos Prazeres, habituados a improvisar versos, a partir do seu refrão. É por este motivo que muitos atribuem sua criação a estas noitadas. Seria uma criação coletiva. O próprio Donga confessa não ser autor da canção: “Recolhi um tema melódico que não pertencia a ninguém e o desenvolvi.” Isto tudo reflete um momento de transição em que a música vai deixando de ser criação anônima e coletiva e passando a ter autoria. Inclusive se revela um bom negócio, um jeito de ganhar algum dinheirinho para sobreviver. Edigar de Alencar, no livro Nosso Sinhô do Samba diz o seguinte: “geralmente se fazia dono da composição musical o mais esperto, que andasse mais ligeiro. Era corrente o conceito atribuído a Sinhô: ‘Samba é como passarinho, é de quem pegar’.”


Pelo telefone, com Donga e Chico Buarque, Pixinguinha


Patrão prenda seu gado, com Donga, João da Baiana e Pixinguinha


Donga, Depoimento dado ao Museu da Imagem e do Som, entrevistado por Almirante


Que quere que que, com João da Baiana, Baden Powell no violão, – documentário francês


curta: João da Baiana

Na crônica Sambistas, Manuel Bandeira conta uma estória engraçada. Certa noite, Sinhô (foto ao lado) apareceu numa reunião de amigos. Muito falante e também tossindo muito, mal de saúde, contou que tinha passado a noite em claro, numa farra e que quando chegou em casa sua mulher não o recebeu bem. Então, foi para o piano e compôs um samba. Sinhô cantou a toada “com as hesitações das coisas inacabadas” e todos gostaram muitíssimo e pediram para ele cantar mais e mais. Passado algum tempo, Bandeira lendo uma antologia de liras encontrou os mesmos versos, que haviam sido feitos algum tempo antes de Sinhô cantá-los. Abaixo do título da canção vinha escrito “Letra e música de seu Candu”. Diz Bandeira: “Ainda não pude descobrir quem conhecesse a toada do choro de seu Candu. Em todo caso está claro que Sinhô avançou no refrão de seu Candu”. E continua: “Isso tudo me fez refletir como é difícil apurar afinal de contas a autoria desses sambas cariocas que brotam não se sabe donde. Muitas vezes a gente está certo que vem de um Sinhô, que é majestade, mas a verdade é que o autor é seu Candu, que ninguém conhece. E afinal quem sabe lá se é mesmo de seu Candu? Possivelmente atrás de seu Candu estará o que não deixou vestígio de nome no samba que toda a cidade vai cantar. E o mais acertado é dizer que quem fez estes choros tão gostosos não é A nem B, nem Sinhô nem Donga: é o carioca, isto é, um sujeito nascido no Espírito Santo ou em Belém do Pará”.

Em Crônicas da província do Brasil há três textos em que Manuel Bandeira fala do “popular Sinhô dos mais deliciosos sambas cariocas”: Na câmara-ardente de José do Patrocínio Filho, O enterro de Sinhô e Sambistas.  Em O enterro de Sinhô, Bandeira descreve Sinhô como um sujeito franzino, “descarnado”, com aparência doentia, mas sempre pronto pra uma farra; vaidoso, com uma língua ferina que “espinafrava tudo quanto era músico e poeta”, mas não era possível não gostar dele: “O que há de mais povo e de mais carioca tinha em Sinhô a sua personificação mais típica, mais genuína e mais profunda. De quando em quando, no meio de uma porção de toadas que todas eram camaradas e frescas como as manhãs nos nossos suburbiozinhos humildes, vinha de Sinhô um samba definitivo, um Claudionor, um Jura, com um ‘beijo puro na catedral do amor’, enfim uma dessas coisas incríveis que parecem descer dos morros lendários da cidade, Favela, Salgueiro, Mangueira, São Carlos, fina flor extrema da malandragem carioca mais inteligente e mais heroica… Sinhô!”


Jura com Aracy Cortes


O Pé de Anjo, de Sinhô com Blecaute

Nosso Sinhô do samba é esta figura mítica, lendária e real que juntamente com Donga, João da Baiana, Ismael Silva e outros criou o samba, “madeleine nacional”, no feliz dizer de Nuno Ramos, sem a qual  nós, brasileiros, desde então, não poderíamos  viver e nem sequer saber quem somos.


Eu canto samba – Paulinho da Viola

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