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    O ex-caçador Antônio Wendel trabalhando como guia de campo no Pantanal Foto: Fagner Roque de Almeida

depoimento

O caçador redimido

A história de um peão que ganhava a vida caçando onças-pintadas e, arrependido, trabalha hoje na preservação da espécie

Antônio Wendel Leite Ribeiro | 07 set 2023_11h20
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Em depoimento a Lia Hama.

 

Aos 9 anos, fui convidado a participar da minha primeira caçada. Na noite anterior, nem consegui dormir direito, tamanha a ansiedade. Fiquei encarregado de conduzir um dos cachorros utilizados para farejar a onça, que foi morta no final. Eram meados dos anos 1980. Meu pai trabalhava como operador de máquinas em uma fazenda no Pantanal Sul, como é conhecida a porção desse bioma que fica no Mato Grosso do Sul. Cresci entre os peões da fazenda e foram eles que me ensinaram a seguir o rastro e a abater onça-pintada. Essa atividade dava status no meio onde eu vivia. Passei a infância sonhando em um dia me tornar um caçador.

As onças-pintadas eram vistas como uma ameaça ao gado dos fazendeiros. Quando uma onça abatia um boi, o que acontecia de tempos em tempos, o dono do rebanho contratava alguém para matá-la. O pagamento por onça morta era uma novilha ou um valor que ia até um salário mínimo.

Nessas empreitadas pela mata, o caçador vai armado, acompanhado por uma matilha de cachorros. O número de cães varia, mas em geral são entre dez e quinze animais. Eles são treinados para encontrar o rastro do felino, que nós chamamos de “batida da onça”.

Um desses cachorros é o “mestre”: anda solto, à frente do grupo, enquanto os outros vão atrás, presos em coleiras. Quando o mestre late, é porque achou a batida. Se isso acontece, o caçador solta o resto dos cachorros. Todos saem em busca da onça e vão encontrá-la onde estiver, mesmo que isso demore alguns dias. Quando a encontram, latem alto, rosnam e o caçador aparece para dar o tiro final. É o momento de maior adrenalina da caçada.

Com 10 anos de idade, eu já sabia usar arma de fogo. Com 13, era dono da minha própria matilha e saía pelos quatro cantos do Pantanal em busca das onças. O auge da minha atividade de caçador foi dos 13 aos 20 anos. Alguns curiosos às vezes apareciam para assistir ao abate. Em geral, o corpo era deixado ali mesmo. Vez ou outra,  a carne da onça virava churrasco. Eu nunca comi, mas vi fazendeiros e peões comendo.

Aos 16 anos, conheci a minha esposa, Quercilene. Foi amor à primeira vista, estamos juntos até hoje. Logo a chamei para morar comigo no Pantanal. Nessa época, eu já tinha me tornado um caçador de onças conhecido na região. Os fazendeiros sabiam onde me encontrar quando queriam encomendar um abate. Minha esposa, ao saber da minha profissão, reprovou. “Isso não é certo”, ela disse. Mas aquele era o meu ganha-pão.

Num belo dia, depois de terminar mais uma caçada, olhei para o bicho de um jeito que eu nunca tinha olhado antes. Comecei a acariciar a onça morta, observei suas pintas, seus dentes e parecia escutar minha mulher dizendo no meu ouvido: “Por que você faz isso com um bicho tão lindo, tão maravilhoso como esse? Ele não faz mal nenhum a você.” Naquele momento, comecei a perceber que a onça realmente é um bicho especial, a rainha da floresta. E eu estava freando seu ciclo de vida.

 

Pouco tempo depois, minha mãe morreu e fomos ao enterro dela em Miranda, cidade onde nasci. Foi quando disse para minha esposa que não voltaria mais ao Pantanal. Eu sabia que ela não estava contente com a nossa vida naquele lugar, e eu não sentia vontade de continuar caçando. Resolvemos nos mudar para Campo Grande.

Morei cerca de nove anos na capital. Foi uma das piores fases da minha vida. Tive problema de pressão alta, quase caí em depressão. Minha esposa trabalhava como doméstica, e eu, como segurança. Quando ela chegava em casa depois de trabalhar, no fim do dia, eu estava saindo para o serviço. Quando eu chegava no outro dia de manhã, ela estava saindo para trabalhar. Nos víamos só uma vez por semana, quando os dois estavam de folga.

Minha mulher percebeu que eu estava ficando nervoso, não sorria mais e vivia calado no meu canto. Um dia ela me perguntou o que estava acontecendo e eu respondi: “Não estou te culpando, mas larguei o meu mundo e o que eu sabia fazer. A minha vida parou. Não vejo sentido no que eu faço aqui, me sinto numa selva de pedra.” Ela procurou me acalmar: “Vai dar tudo certo.”

Uns dias depois, num domingo de folga, minha esposa pediu para eu comprar um frango assado. Quando voltei para casa, ela me disse: “Você não vai acreditar, mas acabaram de te ligar de uma fazenda em Miranda. Perguntaram se você quer trabalhar num centro de conservação de onças. Vão te ligar de novo.” O telefone tocou e um biólogo chamado Henrique Villas Boas, sobrinho-neto dos irmãos [sertanistas Orlando, Cláudio e Leonardo] Villas Boas, disse que tinham indicado o meu nome por causa do meu conhecimento sobre as onças-pintadas e o trabalho de campo no Pantanal. Ele me contou que estava criando um centro de pesquisa desses animais e queria que eu fosse trabalhar lá. Aceitei na hora.

Foi uma guinada na minha vida: de bicho papão das onças, me transformei em protetor delas. Esse biólogo, Henrique, me ensinou muita coisa. Ele falava da importância da conservação das espécies, dizia que cada uma tem seu papel na natureza. Me explicou que as onças são predadoras do topo da cadeia alimentar e têm um papel importante no controle da fauna. Disse que futuramente os filhos dos nossos filhos poderiam não conhecer esse bicho porque ele corre risco de extinção. Trabalhei nesse centro de conservação por cerca de um ano, entre 2006 e 2007, mas acabou a verba de pesquisa e tive que voltar para Campo Grande.

De volta à cidade grande, eu ainda não tinha desfeito minhas malas quando tocou o telefone. Dessa vez, era um convite para trabalhar no refúgio ecológico Caiman, criado pelo empresário e ambientalista Roberto Klabin [da família Klabin, dona da maior produtora e exportadora de papéis do Brasil]. Ele havia herdado a fazenda onde eu aprendi a caçar onças, na infância, e proibiu a atividade. O foco dele era trabalhar com turismo e conservação das espécies. Topei o convite. Passei a morar numa casa à beira do Rio Aquidauana e minha função era passear de barco com os hóspedes. Minha esposa limpava os quartos e preparava as refeições da pousada.

Hoje trabalho como guia de campo na Caiman. Faço trilhas e passeios com os hóspedes. Conto a minha história, mostro as paisagens, os bichos, e busco passar um pouco da cultura pantaneira. Na fazenda, ocorre o inverso do que acontece no zoológico: nós, humanos, vivemos dentro de cercas em torno da pousada e da vila de funcionários. As onças vivem soltas e se alimentam principalmente de jacarés, capivaras e veados em seus habitats naturais.

A pousada tem uma parceria com a ONG Onçafari, que leva os turistas em veículos para avistar onças. Hoje estima-se que vivam até setenta indivíduos dessa espécie na região. Eu sou capaz de reconhecer boa parte deles. As manchas são como se fossem as digitais dos bichos. Não existem duas onças com o mesmo desenho. Mas eu nem preciso ver as manchas: tenho facilidade em reconhecer só por seu comportamento. Bato o olho por um instante e digo: “Essa aí é a fulana.”

Tenho uma filha de 26 anos e duas netas, uma com 8 e outra com 6. Elas sentem orgulho do meu trabalho. A minha libertação aconteceu nessa região onde tudo começou. Foi nesse lugar, há quase quatro décadas, que aprendi a caçar onças-pintadas. Durante muito tempo, acordava no meio da noite sonhando com as caçadas, me sentia preso àquele desejo por adrenalina. Hoje, aos 46 anos, não sonho mais. Estou liberto.

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