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    Ilustração: Carvall

questões de saúde

A exaustão de quem levou a Covid no braço

Pesquisa da Fiocruz mostra desgaste de profissionais de nível técnico durante a pandemia; 80% relataram estresse psicológico

Evanildo da Silveira | 13 abr 2022_15h42
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A vida da motorista de ambulância Sandra de Gusmão Ferreira, da Unidade de Pronto Atendimentos da Cidade Industrial de Curitiba (UPA-CIC), mudou muito com a pandemia de Covid. No princípio, foi o medo. Era tudo novo, e os protocolos de segurança de sua atividade se alteraram completamente. Depois, vieram as jornadas de trabalho de até 18 horas, além da falta de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), como máscaras e uniformes adequados, de material de desinfecção, de oxigênio nas ambulâncias. Faltavam, principalmente, vagas nos hospitais. Ferreira era obrigada a aguardar horas na fila para desembarcar um paciente. Em janeiro deste ano, o número de integrantes da equipe de condutores de ambulância da UPA-CIC foi reduzido de cinco para três. Cada condutor tinha que cumprir seu próprio horário e cobrir as folgas dos outros dois. “Havia madrugadas, de sexta-feira para sábado, que eu dormia no meu carro, no estacionamento, porque não compensava ir para casa”, conta. “Eu terminava meu plantão à 1 hora e tinha que voltar ao trabalho às sete da manhã, para cobrir a folga de um colega. Aí só saía à 1 hora de domingo, o que dava uma jornada de 18 horas, às vezes direto, sem tempo para descansar.” Não à toa, a motorista passou a se sentir estressada e sem motivação para o trabalho.

Arquivo pessoal/Sandra de Gusmão Ferreira

Ferreira faz parte de um contingente de mais de 2 milhões de trabalhadores da saúde de nível técnico e básico que estão na linha de frente no combate à Covid, mas que pouco são notados e reconhecidos. São técnicos e auxiliares de enfermagem, saúde bucal, radiologia, laboratório, análises clínicas, farmácia, agentes comunitários, condutores de ambulância, sepultadores e pessoal da área de administração e gestão dos serviços. Esse foi o público-alvo de uma ampla pesquisa realizada pela Fundação Oswaldo Cruz para saber como esses profissionais enfrentaram a pandemia. O resultado do levantamento mostrou que, para essas pessoas, a Covid trouxe um problema a mais: o de trabalhar e não ser reconhecido. O estudo mostrou que 80% deles sofrem de desgaste relacionado ao estresse psicológico, à sensação de ansiedade e esgotamento mental. Além disso, 70% dos pesquisados disseram que sentem falta de apoio institucional e 35,5% que sofreram violência ou discriminação durante a pandemia. 

A pesquisa da Fiocruz, chamada Os Trabalhadores Invisíveis da Saúde: Condições de Trabalho e Saúde Mental no Contexto da Covid-19 no Brasil, entrevistou, entre janeiro e julho de 2021, 21.480 trabalhadores de cerca de sessenta ocupações e categorias profissionais. O trabalho abrangeu todas as capitais e regiões metropolitanas e outras cidades do país, num total de 2.395 municípios. Segundo a coordenadora do estudo, Maria Helena Machado, o principal objetivo era conhecer e analisar em profundidade as condições de vida, o cotidiano do trabalho e a sanidade mental desse grupo. De acordo com ela, a equipe esperava alcançar o maior número de “trabalhadores invisíveis” em sua diversidade e pluralidade, tornando possível assim conhecer e trazer à luz e à discussão esse contingente importante no processo de saúde, mas que passa despercebido. O levantamento foi feito online, utilizando a internet e redes sociais.

Entre os entrevistados, 72,5% são mulheres. “Por isso elas experimentam a dupla jornada de trabalho”, diz a pesquisadora. “Na esfera pública, elas desenvolvem suas atividades profissionais e na esfera doméstica, realizam o trabalho inerentes à vida familiar.” Entre os que responderam a pesquisa, a maioria absoluta (83,2%) tem até 50 anos – 32,9% até 35 anos e 50,3% de 36 a 50 anos.

Sobre as agressões, Machado relata que, segundo o estudo, a maioria delas, 36,2%, ocorreu no ambiente de trabalho, na vizinhança (32,4%) e no trajeto casa-trabalho-casa (31,5%). Segundo a pesquisadora, os trabalhadores invisíveis da saúde vivem em uma situação de precariedade, com vínculos empregatícios tênues, terceirização, salários insuficientes, exigindo complemento de renda com bicos, estrutura e infraestrutura de trabalho ruim, inadequada e imprópria, falta ou escassez de EPIs e desproteção no trabalho.

A presidente do Sindicato dos Condutores de Ambulância do Estado de Mato Grosso do Sul (Sindconam-MS), Poliana Ferro, que trabalha no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) da capital sul-mato-grossense, lembra outras dificuldades enfrentadas pela categoria. “Quando a pandemia chegou não tínhamos conhecimento nem mesmo de como faríamos para nos proteger com o novo protocolo”, conta. “Muito menos estávamos preparados com EPIs suficientes para as novas mudanças.” Segundo ela, houve muitos casos de Covid entre motoristas de ambulância. “No nosso serviço, em torno de 90% já tiveram a doença e perdemos dois companheiros de trabalho”, revela. A partir da eclosão da pandemia, a assepsia das ambulâncias passou a ser completamente diferente. Além disso, a categoria teve que mudar vários protocolos de atendimento, inclusive o de ressuscitação cardiopulmonar (RCP). 

Arquivo pessoal/Poliana Ferro

Além do desgaste e do estresse, Ferro e seus colegas de categoria também tiveram que enfrentar preconceito e discriminação. “Nós tínhamos que comprar nossa própria refeição e, por estarmos com as roupas de trabalho e sem poder trocá-las, não podíamos entrar nos estabelecimentos para adquirir uma marmita”, lembra. “A população tinha medo de chegar perto de nós, pois achava que estávamos todos infectados, mesmo que já tivéssemos feito a assepsia correta. Era uma situação complicada, que se repetia em mercados e até em farmácias.”

 

O coveiro Gilvan Oliveira Pereira Júnior, do município de São Cristóvão, em Sergipe, a 22 km de Aracaju, é outro trabalhador da saúde que teve – e ainda tem – de conviver com o preconceito. “Como lido com pessoas que tiveram algum parente que morreu de Covid, elas pensam que nós também estamos com a doença, só por causa do contato”, explica. “Em cada local que eu chego, se as pessoas sabem do tipo de serviço que eu faço, elas meio que se afastam, mantêm um certo distanciamento. Elas agem assim talvez por ignorância ou medo, por não saber o que pode acontecer ou não.”

Arquivo pessoal/Gilvan Oliveira Junior

Para muitos trabalhadores, o preconceito e a discriminação nem são, no entanto, os maiores problemas – embora não sejam desprezíveis. Que o diga Maria de Fátima da Fonseca Lopes, agente comunitária de saúde em Feira de Santana, na Bahia, a 116 km de Salvador. “As condições de trabalho são muito ruins, só cobranças e nada de EPIs nem de uniformes adequados”, queixa-se. “Além disso, não tivemos treinamento para lidar com a doença e faltou medicação nas unidades. Famílias pobres não tinham como comprar e eu tive que pedir para a comunidade.”

Arquivo pessoal/Maria de Fátima da Fonseca Lopes

Quem atua como motorista de ambulâncias tem ainda outros problemas. “Às vezes temos que trabalhar com veículos sucateados, com pneus ‘carecas’, tubulação de oxigênios em más condições e macas impróprios”, relata Ferreira, a motorista curitibana. “Como se não bastasse, os EPIs estavam sempre faltando. As máscaras, por exemplo, pegávamos uma apenas, que tínhamos que usar durante quinze dias. Um absurdo. Também falta material de desinfecção. Tínhamos que ficar pedindo para as moças da limpeza desde pano até surfic [desinfetante de superfícies] e água oxigenada para higienizar a ambulância.”

Para piorar a situação, a maior parte dos trabalhadores de nível técnico e auxiliar tem que enfrentar todos os obstáculos com pouco ou nenhum apoio das instituições nas quais atuam e das suas chefias. “Não recebemos apoio nenhum”, reclama Lopes. “Durante todo esse tempo de pandemia recebi duas máscaras especiais e quatro de pano. Para minha coordenadora na atenção primária à saúde, meu trabalho não faz nenhuma diferença. Os nossos governantes também não nos enxergam. Só querem saber de metas batidas.”

Sentimento de desproteção, insegurança e medo ganharam destaque entre esses trabalhadores da saúde. “Mais da metade (52,9%) não se sente protegido no ambiente de trabalho”, relata Machado. Os entrevistados também revelaram pessimismo e descrença em melhores condições de trabalho. Dos entrevistados, 18,5% se sentem menos valorizados e reconhecidos pela população usuária; 19,8%, menos respeitados e valorizados pela chefia e gestão; e 22,5% afirmam que nada mudou em sua vida. Em contrapartida, dos que têm uma visão positiva da situação, 17% se sentem mais valorizados e reconhecidos pela população usuária; 5,5%, mais respeitados pelos colegas; 10,6% dizem que têm melhor relacionamento na equipe; e 6,25% acreditam ser mais acolhidos pela chefia e gestão dos serviços.

A coordenadora do estudo disse esperar que os dados ajudem os profissionais da saúde e a população em geral a perceber a importância desses trabalhadores. “São colegas de trabalho”, defende. “A invisibilidade deve ser combatida com atos, palavras, gestos, políticas públicas, leis protetivas e mudanças na cultura organizacional de nossos estabelecimentos.”

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