Escola alagada pela enchente em Jaboatão dos Guararapes, município da Região Metropolitana do Recife Foto: Acervo pessoal
Fechada pela Covid, alagada pela enchente
O relato de uma professora que viu primeiro o vírus e agora o rio fechar a escola onde trabalha
Apedagoga pernambucana Jacqueline da Silva trabalha nas escolas Poeta Mauro Mota (estadual) e Benjamin Constant (municipal), ambas no bairro do Socorro, em Jaboatão dos Guararapes, município da Região Metropolitana do Recife muito atingido pelas chuvas dos últimos dias. A capital pernambucana e as cidades vizinhas já acumulam pelo menos 122 mortos e 7,3 mil desabrigados. Durante a pandemia, as duas escolas ficaram fechadas. Depois da reabertura, em outubro do ano passado, a pedagoga e seus alunos tiveram pouco tempo para aproveitar a alegria do reencontro. De novo veio a separação. Agora o problema são as águas e a falta de infraestrutura para lidar com as enchentes. Sua casa não foi atingida, mas ela perdeu alunos e conhecidos. Uma das escolas está alagada. A outra tem servido de abrigo para famílias desalojadas. Silva e muitos outros funcionários das escolas vêm auxiliando as pessoas que ficaram sem nada. Arregaçaram as mangas e transformaram as lágrimas em força para acolher quem perdeu tudo ou quase tudo.
Em depoimento a Maria Júlia Moura
Sou pedagoga concursada e trabalho em dois colégios, a Escola Municipal Benjamin Constant e o Erem (Escola de Referência em Ensino Médio) Poeta Mauro Mota, ambos em Jaboatão dos Guararapes. É um município muito carente de tudo. Cuido da parte administrativa. Muitos dos nossos alunos não têm acesso à internet ou a meios tecnológicos para estudar. Durante a pandemia, ficamos quase dois anos sem aula, utilizando um caderno de atividades que os pais iam pegar uma vez por mês, junto às cestas básicas oferecidas pelo município na tentativa de garantir a segurança alimentar dos estudantes. Tivemos o retorno presencial em outubro de 2021. Precisamos dividir as turmas e trabalhar em sistema de rodízio. Continuamos com a entrega das cestas básicas porque tinham alunos que só iam duas vezes por semana à escola. Até hoje estamos sofrendo com esse déficit de aprendizagem.
Agora veio a chuva.
Na sexta-feira (27), eu estava no Mauro Mota à tarde, e à noite iria para a Benjamin Constant, porque lá tem EJA (Educação de Jovens e Adultos). Foi quando recebi a ligação de um colega perguntando: “Jaqueline, vai funcionar hoje? Porque vai ter o Distúrbio Ondulatório do Leste.” Ele, como professor de geografia, explicou o fenômeno, que provoca fortes chuvas por causa das correntes que vêm do continente africano. Em 2005, peguei uma cheia que atingiu o Centro de Jaboatão e fiquei presa na escola onde trabalhava. Quando se fala em chuva, tempestade, alagamento, fico logo em desespero. Entrei em contato com a equipe da escola e falei da necessidade de suspender o turno da noite. Já estava chovendo muito. Pedi um Uber, desesperada para chegar em casa.
No caminho, muita chuva. Quando cheguei em casa, chovia muito.
No sábado, liguei a televisão e vi as notícias. Quando vi o bairro do Socorro sendo atingido, fiquei tentando falar com as colaboradoras que trabalham na escola e moram lá. Elas estavam sem energia, sem sinal de telefone ou internet. E eu vendo o noticiário, fotos e vídeos nos grupos [de WhatsApp] da escola. Fiquei muito tensa, pensando nos meus estudantes que moram na comunidade.
Primeiro, eu soube de duas professoras da escola do estado. Dulce Maria mora num bairro chamado Santo Aleixo. Por trás da casa dela passa o Rio Jaboatão. Lá, a água quase chegou no teto. A outra, Liane, mora numa rua próxima à escola do estado. Entrou água na casa dela, que tem duas crianças. Disse que foi uma coisa muito rápida. Eu soube no grupo da escola e depois foram falando, mostrando as tragédias. Quando eu não conseguia contato com o pessoal, já imaginava que eles estavam em situação complicada. Depois soube de muitos alunos que perderam tudo.
No domingo, recebi a informação que um aluno da Escola Alice Vilar, também do município, vizinha a escola em que eu trabalho, tinha morrido soterrado. E, mais tarde, recebi a informação de que um aluno nosso, Robert, junto com a irmãzinha, também tinha sido soterrado. Eu não conseguia me concentrar em mais nada, pensando nos meninos, na minha comunidade, na minha família. Passei o final de semana preocupada, chorava de desespero. Eu não podia ficar sem fazer nada vendo o pessoal passando por toda aquela situação. Eu estava na minha casa, na minha cama, no quentinho, e as pessoas estavam no frio, molhadas, com o pé na lama.
Fiquei agoniada e disse para o meu marido e meu filho que eu tinha que fazer alguma coisa. Só que, apesar da minha rua não alagar, ao meu redor tudo estava alagado. Sair do bairro estava complicado. Ficamos tentando encontrar as ruas que davam para passar com carro porque estávamos ilhados. O que estava ao meu alcance era fazer algo pelo pessoal do bairro em que moro.
Na mídia não passou muito o bairro do Socorro, onde eu trabalho. A escola fica no Centro, mas os alunos moram em locais mais para dentro, muitas localidades são Zonas Rurais, com muitas barreiras. Por isso houve deslizamentos, por isso essas mortes. No Erem Poeta Mauro Mota nós perdemos tudo. Perdemos os computadores, 60% do acervo da biblioteca, cadeiras, birôs, documentos. Perda total. A Benjamin Constant não foi muito atingida, mas outra escola que fica mais próxima ao rio também foi totalmente perdida.
No grupo do WhatsApp, fomos compartilhando a angústia de ver o que estava acontecendo e de imaginar que os nossos estudantes estariam envolvidos. E, entre a equipe técnico-pedagógica, resolvemos mobilizar o grupo todo. Temos muitos professores, muitos profissionais de apoio na escola e aí começamos. Fomos às comunidades atingidas dar uma olhada e ver as principais necessidades deles. Não podíamos ficar esperando pelo poder público. O poder público está sabendo de tudo isso. A gente não pode ficar esperando, mas continuamos cobrando o que é de obrigação deles.
Nas comunidades, todo ano é assim. As pessoas moram em áreas de risco. Todo ano acontecem alagamentos, mas, nessa proporção, nesse nível de destruição, o último foi em 2005. As pessoas moram à beira de barreiras, em palafitas, na margem do rio… São lugares impróprios para moradia, mas, por necessidade, as pessoas moram lá. Elas não têm condições de adquirir casa em um lugar seguro, não estão ali porque querem. Estão por necessidade e falta de boa vontade política.
É triste ver lama, destruição, ver a força da água derrubar tanta coisa assim. Isso é muito causado pela desigualdade, pela falta de moradia digna. O rio só quer o lugar dele, a água é que tem que correr. A fúria da água, quando procura um lugar para correr, é muito grande.
Nas duas escolas onde trabalho, a leitura feita por mim e pela equipe técnico-pedagógica é que teve um dano psicológico causado pela pandemia, pelo isolamento social, mas essas chuvas, pela destruição nas comunidades e no município, vão ser bem mais danosas do que o próprio período pandêmico. Vamos ter que fazer um trabalho de acolhida. Vamos ter que, mais uma vez, deixar a parte conteudista de lado para tratar das questões humanas.
Reestruturar a escola para que volte à normalidade é muito importante, porque é um ambiente acolhedor. As escolas que não foram atingidas, que estão com água e energia, têm servido de abrigo também. Professores, funcionários e diretores dos colégios do município e do estado estão trabalhando no acolhimento das famílias… As salas de aula viraram quartos para abrigar essas pessoas. A gente não está sendo omisso com a nossa responsabilidade, nosso compromisso social. Mas é um cenário de guerra, de destruição, é desolador demais.
Leia Mais
Assine nossa newsletter
Email inválido!
Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí