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    Lula e o ministro da Educação, Camilo Santana, durante reunião com reitores de universidades e institutos federais no Palácio do Planalto, em junho Foto: Gabriela Biló/Folhapress

questões educacionais

Bilhões em dívidas e nenhum plano

Uma auditoria do Tribunal de Contas da União mostra que o Ministério da Educação nunca criou metas nem critérios para orientar os investimentos no Fies e no Prouni

Camille Lichotti, do Rio de Janeiro | 02 jul 2024_09h21
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Keisse Batista, de 25 anos, estudou a vida toda em colégios públicos de Manaus. Na hora de prestar vestibular, contudo, não conseguiu uma nota alta o suficiente para que pudesse ingressar em universidades do governo. Decidida a cursar ciência da computação, conformou-se em estudar numa faculdade particular, o Centro Universitário de Ensino Superior do Amazonas (Ciesa). Não tinha dinheiro para custear a mensalidade, que na época era de 450 reais, e por isso se cadastrou no Fundo de Financiamento Estudantil (Fies). O programa, criado pelo governo federal em 1999 e expandido durante as gestões do PT, custeia a mensalidade de alunos que, por conta própria, não conseguiriam arcar com os boletos de uma universidade privada. O financiamento pode ser parcial ou integral. O governo dá, mas cobra: depois de se formar, o estudante que contraiu empréstimo deve quitá-lo integralmente, com o benefício de pagar uma taxa de juros inferior à praticada no mercado de crédito.

O cadastro deu certo, e Keisse entrou para a faculdade. O Fies arcava com 350 reais por mês; ela completava os 100 restantes com a ajuda do pai, um marceneiro autônomo que sustentava a casa. A jovem manauara seria a primeira da família a obter um diploma universitário. Em 2019, porém, sofreu uma crise de lúpus e precisou trancar o semestre. Estava no terceiro ano de faculdade. Depois vieram a pandemia e outras complicações – Keisse perdeu amigos para a Covid, o que a deixou muito abalada, e passou a ajudar o pai no trabalho, para complementar a renda da família. Nunca voltou à sala de aula. Sem diploma, não conseguiu emprego na área de ciência da computação; hoje, está desempregada. De sua passagem pela universidade, restou somente a dívida com o Fies, que este ano chegou a 14 mil reais.

“Entrei no curso porque diziam que tinha muito emprego nessa área”, diz Keisse. “Agora só quero tirar meu nome do Serasa.” Até o início deste ano, ao menos 1,2 milhão de pessoas estavam na mesma situação, o que fez com que o governo federal lançasse um programa para socorrer os inadimplentes do Fies. Já foram renegociados 13 bilhões de reais em dívidas.

O endividamento em massa, que por vezes acarreta piora na qualidade de vida dos estudantes, é uma das principais críticas que especialistas em educação fazem ao Fies. Eles argumentam que o programa é uma alternativa insustentável para garantir o acesso dos brasileiros mais pobres ao ensino superior. Os defensores do Fies, por outro lado, afirmam que as dívidas são um efeito colateral pequeno se comparado à transformação social possibilitada pelo programa, que nas últimas décadas ajudou a diversificar o perfil de quem vai à universidade. Os dois lados dessa disputa costumam concordar num ponto: o Fies é uma política paliativa, que pode no máximo dirimir, a médio prazo, as desigualdades estruturais da educação.

Uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) concluiu, contudo, que o Ministério da Educação nunca elaborou um plano claro para o Fies e o Prouni – programa que tem o mesmo propósito, mas que, em vez de financiar mensalidades, isenta as universidades de impostos em troca da concessão de bolsas a estudantes de baixa renda. O governo, segundo o TCU, não estabeleceu objetivos gerais nem metas específicas para medir se os dois programas garantem, de fato, acesso pleno à graduação, permanência no curso e empregabilidade. Sem que haja parâmetros claros, não é possível dizer se o Fies e o Prouni estão cumprindo aquilo que prometem: a ampliação e a democratização do ensino superior.

O relatório, obtido pela piauí, foi concluído em fevereiro e aguarda julgamento do TCU. Só então será publicado oficialmente. O texto diz que o MEC terá 180 dias, a partir da data de publicação, para incluir na Política Nacional de Educação Superior as informações que estão faltando. A urgência se justifica, segundo o tribunal, porque, se não há metas guiando os programas, as decisões do ministério “não [são] embasadas em evidências apropriadas, aumentando significativamente os riscos de desperdício de recursos públicos” (só no ano passado, segundo dados do orçamento federal, o Fies custou 5 bilhões de reais à União). 

Os auditores argumentam que ao governo não cabe apenas garantir o acesso dos estudantes às universidades – é preciso oferecer condições para que eles permaneçam nelas, concluam a graduação e entrem no mercado de trabalho. Hoje, não se sabe se isso vem acontecendo, e quanto. O TCU afirma que o apagão de dados do MEC impede que o país avalie se o Fies, depois de 25 anos em vigor, é um programa eficiente – ou se, pelo contrário, está submetendo brasileiros a “uma condição mais difícil do que a de antes do ingresso no ensino superior”.

Foi o caso não apenas de Keisse. Ela conta que a maioria de seus colegas entraram na faculdade por meio do Fies – e, assim como ela, vários acabaram trancando o curso. Alguns, porque não tinham mais condições de pagar a mensalidade, mesmo com a ajuda do programa; outros, porque não conseguiam conciliar estudos e trabalho. Muitos continuam endividados, tentando pagar pela faculdade que não concluíram, e lidam com problemas decorrentes disso. Com o nome sujo, Keisse não tem cartão de crédito nem pode fazer compras grandes, como dar entrada em um carro ou uma casa. O diploma já saiu de seus planos.

 

O relatório do TCU demonstra que o governo produz poucos dados sobre o Fies e o Prouni – e, quando produz, não os utiliza devidamente. Existem, por exemplo, onze tipos de indicadores para o Fies e trinta para o Prouni, por meio das quais é possível saber, por exemplo, o número de bolsas concedidas e ocupadas e quantos alunos têm baixa renda. O problema é que não há metas associadas a nenhum desses indicadores. Isso significa que as informações coletadas pelo governo não estão sendo utilizadas para avaliar os resultados dessas políticas públicas. 

Essa bagunça impacta até as estatísticas básicas. O TCU perguntou, para o MEC e para o Inep, quantos alunos brasileiros são, ao mesmo tempo, bolsistas parciais do Prouni e beneficiários do Fies. O Ministério respondeu: 248 mil alunos. O Inep, que produz os principais indicadores sobre educação no país, deu um número muito diferente: 61,5 mil alunos. Uma diferença de quatro vezes, para a qual os auditores não encontraram explicação.

Há divergências mesmo dentro do MEC. A Secretaria de Educação Superior, um dos braços do ministério, diz que foram concedidas 1,2 milhão de bolsas do Prouni entre 2015 e 2022. Buscando em bases de dados abertos, os auditores do TCU encontraram apenas 1 milhão de bolsas. Já no Repositório de Arquivos do MEC, consta que foram ainda menos: 977 mil. 

Os auditores consideraram injustificável a divergência de dados. Isso porque, além de dificultar o diagnóstico dos programas, ela impacta o cálculo do valor a ser investido pelo governo, podendo acarretar “ineficiência do gasto e o respectivo endividamento público sem o devido retorno”. O relatório observa que o gasto público em educação superior no Brasil está acima da média dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Mas, de acordo com dados do IBGE, 80,8% da população brasileira acima de 25 anos não tem diploma universitário, enquanto a média dos países da OCDE é de 52%. Uma discrepância que, diz o TCU, pode indicar que o dinheiro está sendo mal gasto.

Entre 2013 e 2022, segundo o tribunal, a receita gerada pelo Fies cobriu apenas 26,8% dos custos do programa, e a inadimplência média dos estudantes foi de 51,5%. O resultado é que, ao final desse período, havia 58 bilhões de reais em mensalidades atrasadas de alunos (consideram-se atrasadas aquelas que passaram ao menos 90 dias do prazo de pagamento). O governo dificilmente vai recuperar esse dinheiro, financiado via Caixa Econômica Federal. Na avaliação dos auditores, o Fies passou por um período de ampliação entre 2010 e 2015 “sem que houvesse planejamento adequado” para garantir seu crescimento sustentável. 

A falta de métricas não surpreende quem acompanha políticas públicas no Brasil. João Marcelo Borges, pesquisador do Centro de Desenvolvimento da Gestão Pública e Políticas Educacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV), explica que os governos raramente estabelecem metas claras para seus programas – e, quando o fazem, não as monitoram. Idealmente, um programa como o Fies deveria não apenas ter objetivos pré-estabelecidos, mas também um acompanhamento permanente deles. Munido de dados, o gestor público deveria então fazer um balanço do custo-efetividade para avaliar se o programa é, dentre todas as opções possíveis, o mais barato e eficiente. Caso contrário, deve ser repensado.

Esse nível de planejamento é raro, diz Borges. Uma das exceções notáveis no Brasil é o Bolsa Família, monitorado por diferentes parâmetros que consideram não apenas a renda dos beneficiários, mas também indicadores indiretos, como o aumento ou a diminuição no número de matrículas do ensino básico, das taxas de vacinação e da mortalidade infantil.

Em um programa da dimensão do Fies, a falta de metas é especialmente grave. “É inaceitável um país com nosso nível de desenvolvimento não ter nem informações seguras sobre estudantes que passam anos em um mesmo programa”, argumenta Borges. O pesquisador está entre aqueles que consideram o Fies uma política ruim, que não resolve a desigualdade educacional, causa endividamento e acaba servindo de “sorvedouro” de dinheiro público. O Prouni, a seu ver, foi uma fórmula mais bem-sucedida, uma vez que não endividou nenhuma família nem fez o Estado perder bilhões de reais em financiamentos que não foram quitados.

piauí questionou o Ministério da Educação sobre as conclusões da auditoria do TCU. Em nota, sem comentar os números, a pasta afirmou que aguarda o envio oficial do relatório, após votação em plenário do TCU, para recebimento das informações e adoção de todas as medidas cabíveis, ao encontro da atuação sempre respeitosa e franca com os órgãos de controle, de forma a seguir aperfeiçoando práticas, ações e programas sob sua responsabilidade.

 

É papel do TCU avaliar se, economicamente, uma determinada política faz sentido – isto é, se atingiu seus objetivos e se faz o melhor uso possível do dinheiro do contribuinte. A avaliação não descarta, contudo, o benefício social gerado por essa política. Estudos confirmam que o Fies e o Prouni foram fundamentais para possibilitar o ingresso de alunos de baixa renda em universidades privadas. Permitiram que muitos jovens fossem os primeiros de suas famílias a obterem um diploma universitário e formaram profissionais qualificados.

A economista Renata Bandeira de Mello, assessora do BNDES, obteve seu título de doutorado pela UFRJ, em 2022, com uma tese que abordou os efeitos do Fies e do Prouni sobre a educação brasileira. Ela argumenta que o desenho do Prouni é o que mais contribui para a equidade no acesso ao ensino superior, tanto do ponto de vista de classe quanto de raça, já que suas regras são mais focalizadas (o programa beneficia alunos saídos de escolas públicas ou que estudaram como bolsistas na rede privada; já o Fies, além de não exigir essa condição, atende alunos de uma faixa de renda maior, abarcando parte da classe média). Nenhum dos dois, porém, é garantia de bom ensino. Pelo contrário, argumenta Bandeira de Mello: Fies e Prouni democratizaram no Brasil o “acesso à educação de baixa qualidade”.

Com milhões de reais em incentivos do governo, o país viveu nas últimas décadas uma proliferação de faculdades particulares, muitas das quais cumprem requisitos mínimos de qualidade. Entre 1995 e 2015, o número de instituições de ensino superior privadas saltou de 684 para 2.069. No mesmo período, as públicas foram de 210 para 295. O setor educacional obteve, no começo da década de 2010, os melhores índices de valorização na Bovespa, puxados por grupos poderosos que ainda não são bem regulamentados pelo poder público.

É um processo que Bandeira de Mello chama de “financeirização” da educação superior. Hoje, seis desses grupos educacionais estão cotados na Bovespa (Cogna, Yduqs, Ser, Ânima, Cruzeiro do Sul e Vitru) e duas na Nasdaq, a segunda maior bolsa de valores do mundo (Afya e Vasta). Os nomes são pouco conhecidos fora do meio empresarial, mas esses grupos estão por trás de algumas das maiores faculdades particulares do Brasil, como Estácio, Ibmec e Anhanguera.

O que Bandeira de Mello e outros pesquisadores argumentam é que a expansão do ensino superior poderia se dar de outras formas, não necessariamente via crédito estudantil. O próprio TCU afirma, no relatório, que uma das alternativas é ampliar o investimento nas universidades públicas, que poderiam ter mais vagas, assim como uma melhora das estruturas que garantem a permanência dos alunos – alojamento, alimentação, materiais de estudo.

“O débito do Fies é muito superior ao valor que as universidades públicas estão pedindo hoje”, diz João Marcelo Borges, da FGV. Os reitores das federais pleiteiam, hoje, um orçamento de cerca de 8,5 bilhões de reais; as dívidas do Fies são estimadas em 58 bilhões.

Como os juros praticados pelo Fies são inferiores ao que seria possível obter com a emissão de títulos do Tesouro Nacional, é como se o governo arcasse com um prejuízo ao facilitar o crédito para os alunos. Pelos cálculos do TCU, esse subsídio implícito custou à União 95 bilhões de reais entre 2013 e 2022. Isso deve ser levado em consideração, argumenta o tribunal, já que o dinheiro poderia estar sendo aplicado em outras políticas públicas. 

Com o programa de renegociação de dívidas do Fies, o governo federal agora tenta amenizar o prejuízo. Em maio, já tinha obtido 538 milhões de reais em pagamentos de alunos inadimplentes – o equivalente a 1% dos 58 bilhões devidos. O abatimento, em alguns casos, chegou a 99%. Keisse Batista foi uma das beneficiadas: sua dívida de 14 mil reais foi reduzida a 1 mil. Para quitar esse valor, a jovem precisou dividir o pagamento em cinco parcelas. Só em outubro estará, finalmente, com o nome limpo no Serasa. Quando isso acontecer, ela pretende realizar um de seus sonhos: ter um cartão de crédito em seu nome.

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