Ilustração: Carvall
Filmados e largados
Câmeras corporais usadas pela PM são avanço importante, mas não resolvem problemas estruturais da polícia – e já se tornam alvo de demagogia na eleição
Embora o Brasil conviva desde 2018 com uma positiva mas ainda não explicada queda no número de homicídios, assunto que merece ser discutido, o debate sobre segurança pública nesta pré-campanha parece ter escolhido outro foco de atenção: as câmeras corporais usadas por policiais militares. O assunto está em evidência. De um lado, grupos impressionados com a acentuada redução nas mortes causadas pela PM de São Paulo, que adotou as câmeras, pensam que uma nova roda foi descoberta e, por isso, se apressam em defender que o projeto seja nacionalizado. Do outro, alguns defendem a “liberdade” dos policiais – o que, na prática, significa a falta de vigilância sobre o trabalho desses agentes, estimulando o uso político e miliciano do braço armado do Estado.
Aos grupos empolgados com os resultados do programa Olho Vivo, da PM paulista, que hoje conta com cerca de 5 mil câmeras corporais usadas nas fardas dos agentes, é importante que se lembre: para funcionar, um projeto dessa envergadura não contempla só a aquisição de equipamentos e tecnologias, mas também grandes investimentos em reforço de comando, controle e transparência, esforço que muitas PMs do país não estão dispostas a fazer. Em alguns casos, elas são abertamente contrárias a essa ideia. A PM de Goiás, por exemplo, há alguns anos tornou sigilosos os dados sobre mortes causadas por seus policiais (em São Paulo, a título de comparação, a estatística é publicada mensalmente desde 2001). Muitos querem esconder o que fazem e por que fazem.
No universo de mortes causadas pela polícia, há aquelas que são indiscutivelmente legítimas, pois acontecem dentro dos critérios legais de legítima defesa e uso da força. Há também, como reconhecem comandantes da PM de São Paulo, uma parcela de mortes que podem ser classificadas como execuções sumárias e que precisam ser vigorosamente enfrentadas. Na grande maioria dos casos, porém, o que se vê são mortes classificadas como legítimas mas que levantam dúvidas e suspeitas – seriam mesmo inevitáveis?
É em torno dessas mortes mal explicadas que as disputas políticas ocorrem, antagonizando defensores de direitos humanos e policiais. O cerne da questão não é a legalidade da ação, mas a possibilidade de que, sendo a segurança pública um direito fundamental, o policial opte por uma conduta que não resulte em morte. E isso depende de doutrinas, de políticas de comando, de equipamentos adequados e de um forte grau de supervisão e controle.
A empolgação desses grupos com as câmeras corporais indica que eles continuam distantes da realidade policial, pensando nos policiais somente pela lógica da focinheira, o que acaba por realçar estereótipos e preconceitos mútuos. Pouco se fala de governança e accountability. Quando cobrados a propor alternativas, muitos desses grupos se limitam a repaginar velhas e incompletas soluções, adaptando-as à linguagem e aos ouvidos atuais do campo progressista. São soluções que nunca foram pensadas para romper desigualdades raciais, de gênero e socioeconômicas que nutrem a violência no Brasil.
No campo oposto, candidatos a governador de São Paulo prometem suspender total ou parcialmente o uso das câmeras corporais pela PM. É o caso de Tarcísio de Freitas (Republicanos), representante do bolsonarismo raiz na disputa; Rodrigo Garcia (PSDB), atual governador; e Márcio França (PSB), ex-governador. Eles tentam, com essas promessas, conquistar votos do eleitorado policial, dos bolsonaristas arrependidos e dos órfãos do udenismo/malufismo que ainda grassa em São Paulo. Segundo eles, o programa adotado pela PM paulista inibe o policial, tolhe sua liberdade e aumenta os riscos de eles serem mortos ou feridos. Nenhum desses candidatos se importa, é claro, com as evidências: os dados de 2021 (após a implantação do programa) mostram que só quatro policiais de São Paulo morreram em serviço, sendo três em acidentes de trânsito.
Há uma falácia em jogo. Tarcísio de Freitas tenta reproduzir a tática do presidente Jair Bolsonaro e, escudado por Eduardo Bolsonaro e pelo deputado estadual Conte Lopes (ex-policial que faz parte da bancada da bala em São Paulo), busca antagonizar policiais e adversários políticos. Trata os policiais como curral eleitoral, o que o presidente faz a todo momento. O caso mais recente foi a promessa feita por Bolsonaro de reajuste salarial exclusivo aos policiais federais. Depois de ter sido cobrado por outras categorias, ele reduziu o percentual que havia prometido e, ao que tudo indica, deve conceder reajuste para todo o funcionalismo público federal. No fim das contas, ele calcula que os policiais vão votar nele de qualquer forma, diante da ojeriza que muitos têm à candidatura Lula.
Já Márcio França e Rodrigo Garcia, que na condição de ex-governador e governador compartilham a experiência de comandar a PM, parecem não estar dialogando seriamente com os policiais paulistas. Os agentes podem lembrá-los, sem muito esforço, de que o programa de câmeras corporais não nasceu agora – vem sendo implantado desde 2014 e, portanto, já existia durante as gestões de ambos. Essa amnésia seletiva, que infelizmente é comum a candidatos, é fruto das conclusões tiradas de pesquisas qualitativas feitas com grupos de eleitores. Para obter o melhor resultado, os políticos acabam se transformando em produtos genéricos de marketing eleitoral, assépticos e sem projetos.
Mas a amnésia não é o mais grave. Temo que, por trás das críticas ao programa de câmeras corporais, esteja a constatação de que o controle rígido da atividade policial é incompatível com o uso político das tropas. No varejo da política eleitoral brasileira, ao filmar tudo o que os policiais fazem durante seus turnos de serviço, as câmeras poderiam expor favores, desvios, interferências e outros pedidos excêntricos que muitas vezes os políticos fazem aos policiais. Isso pode ser um risco enorme para grupos que acham que, uma vez no poder, têm direito a tudo, inclusive aparelhar as polícias e não prestar contas a ninguém. Isso, é claro, se aplica a setores das próprias polícias Brasil afora, como as milícias fluminenses fazem questão de nos mostrar ao vivo e a cores o tempo todo.
Tanto à esquerda quanto à direita, a forma de lidar com a segurança pública produz um mesmo efeito: isolamento das polícias e reforço de estratégias de sobrevivência organizacional que dependem mais da vontade de comando do que de planejamento e investimentos permanentes na construção de novos padrões de policiamento, mais eficientes e democráticos. A atividade policial não é pensada como política de Estado no Brasil. Por isso ela fica exclusivamente dependente de percepções morais e de cálculos políticos sobre agradar ou desagradar setores que dão sustentação às coalizões de poder.
Não existe uma linha divisória entre a esfera política/estratégica, que, sim, é de competência dos dirigentes eleitos, e a esfera tática/operacional, que visa consolidar padrões de atuação compatíveis com o estado democrático de direito. Tudo fica junto e misturado, num eterno vórtice de platitudes narrativas e comerciais, onde soluções de gestão são vendidas por mercadores de “projetinhos” e, muitas vezes, acabam sendo apropriadas por setores policiais para travar guerras culturais contra qualquer pensamento dissonante.
Daí até a ideia de que só os policiais podem dizer o que é bom ou não para a segurança pública é um pulo. Basta vermos o crescimento de candidaturas de policiais defendendo plataformas corporativistas, se colocando como porta-vozes legítimos da área. O que não percebem – ou, pior, não querem perceber – é que segurança pública é tanto um direito fundamental quanto, também, um campo organizacional, que movimenta múltiplos atores e interesses. Isso significa que a melhor saída para a área é reforçar os mecanismos de transparência e prestação de contas, de modo a explicitar os interesses em jogo e as opções políticas que podem ser adotadas.
O programa Olho Vivo da PM de São Paulo deve, sim, ser objeto de estudo e ser disseminado como uma tecnologia que contribui para a democratização das polícias. Ele não é a tábua de salvação dos bons contra os maus e não pode ser resumido à necessária redução da letalidade policial (esse é um objetivo que precisa ser perseguido com ou sem uso de tecnologia). O programa é um dos instrumentos de valorização de uma polícia profissional, e é capaz de fazer frente às apropriações ideológicas e privadas da atividade policial. Ele não é a salvação da segurança pública brasileira – como também já se pensou que fossem as Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs) –, mas é um caminho. Os pré-candidatos a governador precisam parar de tratar segurança como tabu e explicar para a população e para os policiais os efeitos de suas propostas na prática.
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