Filmes reagem à pandemia
Para quem tinha os meios técnicos e o conhecimento necessários, filmar durante o confinamento foi exercício de sobrevivência
Em 2020, no auge da pandemia, quando não havia vacinas e o isolamento social era questão de sobrevivência, fazer um filme foi uma opção saudável para quem tinha os meios e o conhecimento necessários.
Na abertura do Festival é Tudo Verdade este ano, tivemos a exibição de A História do Olhar (Reino Unido, 2021), de Mark Cousins, sobre o qual comentei na época o fato de ser resultado da reação no calor da hora à pandemia. Para Cousins, conforme mencionei, o lockdown foi “como estar dentro da nossa própria cabeça em um quarto escuro olhando imagens. Foi assim que senti o lockdown: uma edição muito longa”.
Aqui no Brasil, durante os meses de distanciamento social (para pessoas responsáveis), tivemos Me Cuidem-se!, filme processo de Bebeto Abrantes e Cavi Borges que permanece inédito no circuito comercial. Exibido primeiro no Vimeo em seis partes, ainda em 2020, as gravações feitas durante sete meses pelos próprios participantes, respeitando o isolamento e só tendo contato com os diretores através do Zoom, foram remontadas em forma de longa-metragem exibido em festivais, entre eles o Festival Estação Virtual 35 Anos e o RECINE – Festival Internacional de Cinema de Arquivo, ambos em 2021.
Além dessa experiência de Abrantes e Borges, tivemos até um festival com 47 curtas-metragens produzidos sem sair da quarentena, o Quarentena Online Film Festival (Festival de Filmes Indoor).
Produzido em Portugal, com recursos estatais e participação francesa, Diários de Otsoga (2021), de Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes, integra esse grupo de filmes realizados durante a pandemia como tática de resistência à Covid-19, tendo sido um dos primeiros a serem exibidos no circuito de festivais a partir de 2021. Os créditos finais esclarecem ter sido “rodado em regime de confinamento entre 17 de agosto e 10 de setembro de 2020”, e que Mariana Ricardo integra o Comitê central e a autoria do argumento junto com Fazendeiro e Gomes.
À primeira vista, pode parecer que o título se refere a um lugar imaginário ou desconhecido, nos arredores de Lisboa. Mas não – fica claro ao ser formado de trás para frente nos créditos iniciais que otsoga é anagrama de agosto, sinalizando de modo ainda mais explícito que o filme será narrado do fim para o princípio quando a legenda seguinte é “Dia 22”, a próxima “Dia 21” e assim por diante. Em vez de haver a progressão dramática usual, em Diários de Otsoga o que há, pode-se dizer, é uma regressão dramática um tanto desconcertante.
A primeira sequência, no Dia 22, começa em uma animada festa em que os três protagonistas, Crista (Crista Alfaiate), Carloto (Carloto Cotta) e João (João Nunes Monteiro) bebem e dançam como se não houvesse amanhã, ao som de The Night, de Frankie Valli e The Four Seasons, canção que também encerra o filme. Considerado um soul clássico, os versos de advertência imploram para “você” ter cuidado “com as promessas dele… ele cobre você de flores/e sempre mantém você sonhando… mas a noite começa a girar a sua cabeça/E você sabe que vai perder mais do que encontrou… Acredite no que eu digo/Antes que eu vá para sempre/Esteja segura do que você diz…”.
A cena de 2 minutos e meio termina com Crista e João se beijando, observados por um estupefato Carloto. Obedecida a ordem cronológica esse seria um lugar comum banal de encerramento. Visto no início, porém, sem que se saiba o que o antecedeu, abre-se ampla gama de possibilidades para conjecturas imprevistas enquanto o encadeamento das sequências regride – não haverá de ser por nada que uma das empresas produtoras do filme responde pelo nome de Uma Pedra no Sapato – o propósito de Fazendeiro e Gomes, com certeza não é apaziguar, mas inquietar o espectador.
A ideia de inverter a cronologia tem origem, conforme explicação da dupla de realizadores, na mudança da nossa percepção do tempo causada pela pandemia e o confinamento: “… tínhamos de fazer um filme que desafiasse a linearidade e que trabalhasse a repetição, a suspensão, a descontinuidade… sem, no entanto, embarcar numa estrutura complexa e barroca.” Narrar o diário do final para o princípio seria “inverter a reclusão, exercendo uma liberdade coletiva paradoxal, uma partilha de despreocupação e beleza”. Postura reativa meritória às imposições da pandemia.
Recuando dia por dia até o primeiro, na festa inaugural da filmagem que encerra o filme, o grupo isolado na quinta para realizar Diários de Otsoga também dança como se não houvesse amanhã. Ao longo dos 22 dias, uma das vertentes narrativas vem a ser a disputa de Carloto e João pelo afeto de Crista. Nesse período, dedicam-se a afazeres diversos com a única finalidade aparente de se ocuparem, deixando o tempo transcorrer: flertam, constroem um borboletário, tomam banho de piscina, colhem frutas, cuidam das flores, frutas amadurecem e falam na necessidade de organizar uma festa à qual dizem que ninguém virá.
A debilidade de Diários de Otsoga para o espectador está no interesse escasso do que se propõe a narrar e na fragilidade de seus personagens. Por si só, a iniciativa louvável de reunir um grupo para fazer um filme anagrama, ao ser exibido, comprova não ter resultado sustentável.
O prestígio de Fazendeiro e Gomes decorrente de seus filmes anteriores, no entanto, deve ter influído para Diários de Otsoga estrear na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes, em 2021, e ser exibido depois em mais de quarenta festivais mundo afora, inclusive na 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e no 24º Festival do Rio, tendo recebido o Prêmio Astor Piazzolla para a Melhor Direção no Festival Internacional de Cine de Mar del Plata. A justificativa hiperbólica do júri para o prêmio foi: “Pela coragem no relato, pela emergência da alternativa, pela ruptura dos limites, pela volta ao fílmico e pelo enquadramento e luz que nos levam ao mais puro do cinema.” Diários de Otsoga estreia amanhã (21/7) em cinemas de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Porto Alegre e Belo Horizonte.
Destaque (I)
“… Teoricamente, nós estamos desarmados para enfrentar os problemas que estão colocados pelo mundo contemporâneo. Nós não estamos teoricamente bem preparados, bem municiados. Isso, em parte, se deve a um certo dogmatismo que não vê os [cientistas sociais] clássicos como cientistas… Esse dogmatismo nos tem tornado prisioneiros. Nós que advogamos tanta liberdade, não nos concedemos liberdade. A esquerda que advoga a liberdade, essa coisa humana maravilhosa que é você criar mundos novos, sonhos novos coletivos e individuais. Nós, muitas vezes, na militância não nos damos a liberdade que nós propugnamos para toda a humanidade.”
Fernando Haddad, em entrevista sobre seu recém-lançado livro O Terceiro Excluído – Contribuição Para Uma Antropologia Dialética. Selo Zahar. Mídia NINJA, 14 de julho de 2022. YouTube. Entrevista a Caetano Veloso disponível na íntegra em https://www.youtube.com/watch?v=o40A74dVLvY
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