FOTO: GUSTAVO PEDRO
A Floresta do Camboatá resiste
Depois de quase virar um autódromo, última área plana de Mata Atlântica no Rio pode se transformar em Unidade de Conservação
“Não vai ter autódromo em Deodoro. É meu compromisso com os ambientalistas”, disse o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, durante entrevista à rádio BandNews, na primeira semana de 2021. Recém-empossado para o terceiro mandato à frente da cidade, Paes explicou haver se comprometido com o Partido Verde – que o apoiou durante a campanha eleitoral – a encontrar outro lugar que não a Floresta do Camboatá para a construção de um novo autódromo. Preserva-se, assim, uma área verde de 2 milhões de metros quadrados no bairro de Deodoro, Zona Oeste carioca, onde vivem mais de 180 mil árvores e ao menos dezoito espécies ameaçadas.
A declaração do prefeito representou a pá de cal em uma batalha de Davi e Golias travada nos últimos anos entre o consórcio Rio Motorpark, que tentou construir um autódromo de 697 milhões de reais sobre a última área plana de Mata Atlântica no município do Rio, e a sociedade civil, que defendia o pequeno bioma por meio dos Ministérios Públicos Federal e do estado e do Movimento SOS Floresta do Camboatá. A afirmação representou, ainda, uma rara vitória ambiental em um cenário generalizado de devastação ecológica.
Não foi uma disputa fácil. Em junho de 2019 – ou seja, apenas um ano e meio atrás – o presidente Jair Bolsonaro se deixou fotografar apertando a mão do empresário norte- americano Chase Carey, CEO da Fórmula 1 e um dos interessados na construção do autódromo. O ex-juiz Wilson Witzel, à época governador em exercício do Rio de Janeiro e aliado do clã presidencial, também estava presente no encontro. Bolsonaro aproveitou a ocasião para declarar que a capital fluminense tinha “99% de chance ou mais” de sediar a Fórmula 1 a partir de 2021. De quebra, a empreitada ainda contava com o apoio do então prefeito Marcelo Crivella – afinal, era o poder municipal que havia cedido a área à Rio Motorpark – e com o olhar generoso do então presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, que não se furtou em publicar uma liminar favorável ao autódromo. Um Golias e tanto.
Cravada no meio da malha urbana, em frente à Avenida Brasil, a Floresta do Camboatá resistiu à expansão imobiliária ao longo de décadas por ter abrigado um paiol e um campo de treinamento do Exército. Com a construção do Parque Olímpico, o autódromo de Jacarepaguá foi destruído e o bioma virou moeda de troca para os viúvos da antiga pista de corrida. Ironia do destino: a decisão que previa a instalação do novo autódromo na floresta foi assinada pelo próprio Eduardo Paes em 2010, durante seu primeiro mandato à frente da prefeitura. Mas a história realmente engrenou em 2017, quando Crivella, seu sucessor, lançou um edital para a construção da pista. O vencedor e único concorrente da licitação foi o empresário mineiro JR Pereira, que não acumulava nenhuma experiência com eventos esportivos, mas carregava um histórico de calotes e ações na Justiça. Uma de suas empresas, a Crown Processamento de Dados, faliu deixando uma dívida de 24,7 milhões de reais com a União.
Desde então, houve várias tentativas de acelerar o rito de licenciamento ambiental, a fim de dar início às obras. Em março de 2020, o Instituto Estadual do Ambiente (Inea), responsável por julgar o licenciamento, tentou marcar uma audiência pública presencial com apenas dois dias de aviso prévio, mesmo que um decreto do então governador Witzel já proibisse aglomerações devido à pandemia. Em julho, o Inea fez outra manobra e buscou mudar a audiência pública para a esfera virtual – ou melhor, sem a pressão física da sociedade civil –, com o objetivo de começar uma obra que não tinha nada de urgente e que poderia resultar na morte de milhares de plantas, além das inúmeras famílias de capivaras, tatus e jacarés-de-papo-amarelo que vivem no local. Em agosto, a audiência finalmente aconteceu, pela internet: durou dez horas – de sete da noite às cinco da manhã, para dar conta da manifestação de mais de cem pessoas. Apenas duas delas defenderam o autódromo.
O projeto começou a ruir definitivamente em novembro do ano passado. Apesar da pressão política – o presidente do Inea já havia posado para fotos com defensores do autódromo –, o pequeno grupo técnico do instituto, coordenado pelo engenheiro ambiental Breno Pantoja, se colocou corajosamente contra a aprovação da obra. Caso insistisse na ideia de aterrar a floresta, o consórcio Rio Motorpark seria obrigado a refazer todo o Estudo de Impacto Ambiental, um procedimento lento e caro. Também em novembro, Crivella não conseguiu se reeleger prefeito do Rio. Para completar, ainda naquele mês, a Prefeitura de São Paulo renovou até 2025 o contrato que lhe permite sediar a etapa brasileira de Fórmula 1. Em pouco tempo, portanto, o empresário JR Pereira perdeu o apoio do município, do governo estadual (na figura do Inea) e da F-1, seu principal parceiro na iniciativa privada. Eduardo Paes só precisou jogar a pá de cal.
Embora a Floresta do Camboatá pareça estar protegida, a briga não terminou. Para que a área seja de fato resguardada, Paes precisa dar alguns passos burocráticos. O primeiro é garantir que o processo de licenciamento seja retirado do Inea. Enquanto isso não for feito, a ação seguirá tramitando e pode até ser reanimada no futuro por outra administração municipal. O segundo passo é transformar a área verde em Unidade de Conservação, com acesso ao público.
Em dezembro, no decorrer de três semanas, integrantes do Movimento SOS Floresta do Camboatá se reuniram com o intuito de pensar soluções ambientais e econômicas para a região. Escreveram um decreto de sete páginas, que foi encaminhado à equipe de Paes, já pronto para ser assinado pelo prefeito. O texto proíbe qualquer alteração na floresta por 180 dias, enquanto um grupo constituído pela prefeitura começa o trâmite para mudar o ordenamento jurídico da área.
Um dos responsáveis pela interlocução com o município é o engenheiro florestal Celso Junius, apoiador do Movimento SOS Floresta do Camboatá e membro de um bem-sucedido projeto de reflorestamento de morros e encostas chamado Mosaico Carioca. Em janeiro, Junius passou a integrar a administração municipal, assumindo a direção de arborização da Fundação Parques e Jardins. “Mais de quarenta pessoas participaram das nossas discussões sobre aquele espaço”, contou, referindo-se às reuniões de dezembro. Entre as propostas apresentadas, destacam-se a promoção de visitas guiadas à floresta, o replantio de árvores, o cultivo de mudas, as pesquisas em parceria com universidades e até a criação de uma central de compostagem e de uma escola voltada à capacitação em agricultura e jardinagem. Tudo sempre se daria em sintonia com a comunidade local.
Procurado pela piauí, Eduardo Paes respondeu que a prefeitura solicitou ao Inea que enviasse os volumes do processo, para que pudesse “analisá-los e dar uma solução final”. Reconheceu que foi sua a decisão de construir o autódromo sobre a floresta, em um projeto conjunto com o governo federal, para que o Rio recebesse as Olimpíadas, mas pontuou que o projeto, à época, era menos invasivo do que o apresentado pelo consórcio Rio Motorpark. De fato o desenho inicial aparentava preservar mais, embora nenhum projeto que destrói parte de um bioma possa ser chamado de sustentável. Paes disse, por fim, que a prefeitura está disposta a apoiar a construção do autódromo em outro local, como uma área degradada no bairro de Guaratiba, também na Zona Oeste. “Mas a condição é de que ele seja erguido com recursos da iniciativa privada”, complementou. O consórcio Rio Motorpark não quis se manifestar sobre o assunto.
Na quinta-feira da semana passada, o secretário municipal de Meio Ambiente, Eduardo Cavaliere, recebeu em seu gabinete quatro integrantes do Movimento SOS Floresta do Camboatá. “A conversa foi boa”, disse o engenheiro florestal Beto Mesquita. “A ideia é que aquela área vire o polo verde de Deodoro. A gente espera que o decreto saia em breve.”
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