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    Manifestação em frente ao quiosque Tropicália, depois da morte de Moïse Kabagambe - Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

questões de direitos

Fome, sede e martírio à beira-mar

Ministério Público do Trabalho pede indenização de 5,7 milhões de reais para família do congolês Moïse Kabagambe e aponta condições análogas à escravidão em quiosques

Fernanda da Escóssia e Thallys Braga | 24 mar 2022_15h23
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Doze horas trabalhando sem pausa sob o sol escaldante do Rio com os pés descalços na areia, sem poder beber água, comer, usar o banheiro e não raro sem receber um tostão de pagamento. Os dias eram assim para quem trabalhava nos quiosques Biruta e Tropicália, na Barra da Tijuca, onde o congolês Moïse Kabagambe, 24 anos, foi espancado até a morte em janeiro. Uma investigação conduzida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) no Rio de Janeiro aponta que os funcionários dos estabelecimento estavam submetidos a condições degradantes, próprias do trabalho análogo à escravidão. O órgão entrou na Justiça com uma ação civil pública pedindo a responsabilização dos sócios dos dois quiosques, da Orla Rio – encarregada de fiscalizar os estabelecimentos – e da Prefeitura do Rio de Janeiro. 

Com base nos depoimentos de 25 pessoas, incluindo familiares e ex-colegas de Kabagambe, o MPT identificou que os funcionários dos quiosques não tinham registro trabalhista e exerciam suas atividades em condições precariíssimas. O artigo 149 do Código Penal Brasileiro considera que são condições análogas à escravidão quatro situações: trabalhos forçados, jornada exaustiva, condições degradantes de trabalho ou restrição da locomoção da pessoa por motivo de dívida. No caso de Kabagambe, a situação se torna ainda mais grave por ele ser negro e imigrante, fatores que dificultam a entrada no mercado de trabalho e propiciam a subordinação a atividades precárias. 

Por tudo isso, o MPT pede o pagamento de 2 milhões de reais para a família de Kabagambe, por dano moral individual, além de 285,4 mil reais de indenização trabalhista e 3,5 milhões de reais de pensão para a família (valor calculado com base na idade e na expectativa de vida de 76 anos). A ação cobra também o pagamento de 11,5 milhões de reais por danos causados à coletividade e solicita que o valor seja repassado a entidades sociais sem fins lucrativos. Os três homens presos pelo assassinato de Kabagambe trabalhavam no quiosque Biruta, vizinho ao Tropicália.

Ao longo da ação, assinada pelos procuradores Guadalupe Louro Couto, Juliane Mombelli, Lys Sobral Cardoso, João Batista Berthier e Italvar Medina, antigos funcionários do quiosque fizeram uma reconstrução detalhada das condições de trabalho no lugar. Contaram que sentiam fome, mas não podiam parar de trabalhar para comer. Em dias de baixo movimento, se eles reclamassem, os patrões davam um prato de arroz com três pedaços pequenos de peixe ou nuggets de frango. Precisavam comer rápido para voltar logo ao atendimento. Nas tardes mais corridas, Carlos Fábio da Silva Muzi, sócio do Tropicália, dizia não ter tempo para cozinhar. Kabagambe e os colegas então comiam os restos de petiscos deixados pelos clientes nas mesas, segundo a ex-cardapista Daiane Alves. Água, bebiam da torneira, do chuveirão ou compravam na praia. “A fome apertava cada vez mais. Dá muita fome trabalhar na areia, andando o tempo todo”, disse Alves em depoimento ao MPT. 

“Moïse era um imigrante negro, trabalhava nessas condições porque precisava alimentar a família”, disse a procuradora Guadalupe Louro Couto. “É importante que haja uma mudança de comportamento nas orlas, que a sociedade saiba do que está acontecendo, para impedir que essas pessoas continuem trabalhando até adoecer.”

Kabagambe começou a trabalhar como garçom no quiosque Kaprichado, hoje Tropicália, em dezembro de 2018, para ajudar a mãe e os irmãos. Suas funções consistiam em apresentar o cardápio e servir petiscos e bebidas a banhistas da praia da Barra da Tijuca. De segunda a segunda, a jornada começava entre nove e dez da manhã e só acabava quando não havia mais clientes da areia, por volta de sete ou oito da noite. Segundo Alves, o congolês ficava em pé na areia candente durante a maior parte do tempo. Se sentasse para descansar, Muzi e sua mulher diziam: “Vão pra areia, vamos ganhar dinheiro!”

Ao fim de cada dia, eles formavam uma fila em frente ao caixa, comandado por Muzi, para acertar as contas. Pelo combinado, deveriam receber 10% sobre cada venda realizada na areia, mais oito ou dez reais para as passagens de ida e volta do trabalho — valor insuficiente para o congolês, que gastava 16 reais no deslocamento de sua casa, em Madureira, à Barra. Os funcionários ganhavam, em média, 200 reais num dia de muito sol e uns 40 num dia de baixo movimento. Mas não havia um valor fixo mensal, e o momento do pagamento nem sempre era tranquilo: Vodia João Nseka Vata, ex-garçom do Tropicália, disse ao MPT que “todos os trabalhadores se estressavam muito no quiosque do senhor Fábio, porque ele era complicado de pagar as diárias.” Daiane Alves disse que alguns clientes, ao saberem que os garçons não tinham salário fixo e eram remunerados só pelos pratos que vendiam, sentiam pena e davam gorjeta.

Em entrevista à piauí, Fábio Muzi contestou os relatos dos ex-funcionários e disse que o Tropicália sempre ofereceu alimentação e um cooler com água potável a eles. Explicou que a informalidade é comum nesse tipo de relação trabalhista, visto que a atividade dos quiosques é sazonal. O empresário demonstrou pesar em relação ao fechamento do quiosque. Disse não se conformar que um crime cometido por funcionários de outro estabelecimento, o Biruta, tenha acarretado no fechamento do negócio que era a sua única fonte de renda. Contou que a mensalidade da escola dos filhos está atrasada, e há dias em que falta dinheiro para comprar comida. “Minha vida virou de cabeça pro ar por um fato que eu não tive nada a ver. Eu estava em casa dormindo, nenhum dos envolvidos trabalhava comigo, mas como aconteceu na escada do meu estabelecimento, levei a culpa”, ele disse.

Em depoimento à polícia, Viviane de Mattos Faria, administradora do Quiosque Biruta, foi questionada sobre a baixa remuneração dos trabalhadores do quiosque. Respondeu: “O trabalho dessas pessoas consistia em pegar um cardápio no quiosque e oferecer aos banhistas na areia.” O Biruta é conectado ao Tropicália, e Kabagambe chegou a prestar serviços a Faria. Ela também é alvo da ação movida pelo Ministério Público do Trabalho. 

A empresa Orla Rio, encarregada da fiscalização dos quiosques, disse que ainda não tinha sido notificada da ação do MPT e por isso não se pronunciaria. A prefeitura do Rio foi procurada, mas não respondeu até o fechamento da reportagem. A piauí segue à disposição para esclarecimentos.

 

Os depoimentos de vários outros ex-funcionários do Tropicália e amigos de Kabagambe ajudaram a embasar a ação do MPT, corroborando relatos sobre a exaustão durante e depois do expediente. O ex-cardapista Vodia João Nseka Vata, por exemplo, contou que se sentia muito cansado por trabalhar sob o sol o dia inteiro. Daiane Alves disse que o atrito com a areia provocava dores em suas pernas, mas ela não deixava de trabalhar por precisar do dinheiro. O vendedor de caipirinha David Rodrigues, amigo de Kabagambe, disse que tinha o hábito de tomar Dorflex todos os dias depois do expediente para aplacar a dor.

O quiosque Tropicália não oferecia roupas de proteção UV, protetor solar e boné — equipamentos essenciais para o trabalho no sol. O irmão de Moïse, Djodjo Baraka Kabagambe, disse ao Ministério Público que o congolês queixou-se inúmeras vezes de queimaduras na pele e nos pés. Yannick Ilunga Kamanda, que trabalhou no Quiosque Carioca, também na Barra da Tijuca, contou que a única vestimenta oferecida aos garçons é um abadá com o nome dos estabelecimentos. A roupa não oferece proteção UV e, nos dias mais quentes do verão carioca, provoca sensação de ardência na pele. Em vários depoimentos colhidos pelo MPT, ex-funcionários do Tropicália contaram ainda que Fábio Muzi, o proprietário, sempre trabalhava dentro do quiosque, longe do sol. À piauí, Muzi disse: “É claro que ficava na sombra, por que eu ficaria no sol? Não vejo problema nenhum nisso.”

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