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A força da gravidade genética

Muito antes de contraírem o Sars-CoV-2, milhares de pacientes de Covid-19 já estavam condenados a desenvolverem a forma grave da doença. Está escrito nos seus genes

| 09 out 2020_20h15
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No 54º episódio do podcast Luz no fim da quarentena, José Roberto de Toledo e Fernando Reinach explicam o porquê de homens terem mais chances de apresentarem casos graves de Covid-19 do que as mulheres. Ouça o episódio completo aqui.   

 

José Roberto de Toledo: Por que há mais homens com versão grave de Covid-19 do que mulheres? Por que dois jovens saudáveis contraem o Sars-Cov-2, um mal tem sintomas e o outro vai parar na UTI de um hospital? A resposta está escrita nos genes dos pacientes. Um importante artigo publicado na revista Science comparou pacientes graves e pacientes leves de Covid. 

A maior diferença que os cientistas encontraram foi que, em 10% dos casos graves, os pacientes tiveram uma resposta autoimune que impediu seu sistema imunológico de combater o coronavírus com eficiência. Isso não tem nada a ver com exposição prévia a outros coronavírus. 

O que provocou esse gol contra do sistema imune foi o próprio código genético dessas pessoas. E por que os homens são mais afetados? Fernando Reinach explica.

Fernando Reinach, hoje vamos falar sobre um estudo que saiu publicado na edição do dia 24 de setembro da Science Magazine. Basicamente, o que eles estão dizendo é que os casos graves de Covid-19, não todos eles, mas uma parte significativa, está escrita nos genes de quem desenvolve essa forma grave da doença. É isso?

Fernando Reinach: É basicamente isso. Todo mundo achava muito estranho que os sintomas da Covid vão desde pessoas assintomáticas até a morte. É uma faixa muito grande, entendeu? É uma parte relativamente grande das pessoas, sei lá, 0,5%, 1% acaba morrendo. Isso não é comum em gripe. Não é comum essa faixa enorme. Claro, tem doenças graves em que um monte de gente morre, mas daí não tem a forma leve. 

José Roberto de Toledo: As pessoas às vezes morrem de gripe. Mas é muito mais raro do que meio por cento de quem contraiu o vírus da gripe, o que leva a crer que não é só porque a pessoa está debilitada ou porque é muito idosa. Devem ter outros fatores que aumentam a gravidade da doença, para ter uma taxa de mortalidade tão alta.

Fernando Reinach: Daí vários estudos basicamente estão pegando um monte de gente que teve um caso leve, um monte de gente que tem um caso grave, e estão vendo qual a diferença entre essas pessoas. Muitas dessas diferenças a gente já falou aqui: um cara obeso, o cara com diabetes, com comorbidades. Os homens têm mais que as mulheres. Agora, por quê? O que essas pessoas têm de diferente? Por que um homem tem mais chance de morrer que uma mulher? Tem que ter uma razão molecular por trás. Esses sujeitos estudavam a genética da produção de interferon.

José Roberto de Toledo: O que é o interferon?

Fernando Reinach: O interferon é uma das citocinas. Os casos graves são uma desregulação do sistema de citocinas na pessoa. Ou ela produz demais, ou ela produz de menos. E isso é característica dos casos graves. 

José Roberto de Toledo: A citocina é uma substância que ajuda o organismo a se defender contra invasões virais, é isso?

Fernando Reinach: Exatamente, ela faz parte dos mecanismos de defesa contra o vírus que a gente tem. Aí, eles começaram, nesse estudo específico, pegaram 987 pessoas que tinham casos sérios e mais 673 pessoas que tinham casos leves de Covid-19, e foram ver nessas pessoas a questão do interferon. E o que eles descobriram é que, das 987 pessoas que tinham os casos graves, 101 delas tinham anticorpos contra interferon.

José Roberto de Toledo: Quer dizer, cerca de 10% dos casos graves, grosso modo, tinham anticorpos contra outras substâncias que são quase anticorpo versus anticorpo.

Fernando Reinach: Não, ele tinha anticorpo contra uma molécula dele mesmo. Quer dizer, uma espécie de doença autoimune.

José Roberto de Toledo: Quer dizer, o organismo jogando contra o próprio time, um gol contra!

Fernando Reinach: Exatamente. Dos 663 que tinham caso leve, nenhum tinha esse anticorpo. E eles demonstraram que esses anticorpos que existem nas pessoas que têm os casos graves bloqueiam a ação do interferon mesmo. Ou seja, essas pessoas, mesmo antes de ficarem doentes, já tinham um problema de produção do interferon. Só que, na maioria das pessoas, essa falta de produção de interferon causa grandes problemas. Tem alguns casos de doenças autoimune.

José Roberto de Toledo: Quer dizer, é como se seu organismo, a brigada anti-incêndio do organismo, tivesse uma parte dela que, em vez de combater o fogo, ficasse atrapalhando os bombeiros.

Fernando Reinach: Exatamente. Você tem anticorpos nessas pessoas. Poderia ser você, eu, alguém. Ela já tem um anticorpo contra a própria molécula que combate o vírus, com o interferon.

José Roberto de Toledo: E isso é uma questão genética, está escrito nos genes delas?

Fernando Reinach: Está escrito nos genes e talvez no ambiente, ninguém sabe exatamente se é só genes ou um ambiente. Agora, o que é interessante é que, se você olhar as pessoas da população em geral, isso é muito raro. Eles olharam 1 227 pessoas e acharam só quatro que têm esses anticorpos antes da Covid.

José Roberto de Toledo: Ou seja, 0,4%. Por coincidência ou não, é a taxa de mortalidade da Covid-19.

Fernando Reinach: Agora, quando você vai entre os casos sérios, é 10%.

José Roberto de Toledo: No caso, as pessoas que têm essa mutação genética, esse anticorpo, estão mais sujeitas a desenvolverem a forma grave da doença. E dá pra saber isso de antemão?

Fernando Reinach: Você ter ou não ter esse anticorpo é uma coisa que dá para medir. Isso é uma coisa que eles propõem no trabalho. Quer dizer, você poderia fazer um teste para saber se a pessoa tem esse corpo antes ou não. Tanto assim que eles fizeram esses testes em 1 227 pessoas. 

José Roberto de Toledo: O cara, sei lá, começa a manifestar sintomas de Covid mais graves e eventualmente ele poderia ser testado. Porque isso tem implicações talvez até no próprio tratamento dele, né?

Fernando Reinach: Ele vai ter falta de interferon e, se você der interferon pra ele, o interferon não vai funcionar, porque o anticorpo que ele tem no próprio corpo bloqueia o interferon. E outra coisa interessante é que dessas 101 pessoas que têm esse anticorpo, 95 deles eram homens, praticamente 95%. Aí tem um outro paper que veio junto com esse, no mesmo volume da Science, [mostrando] que existem pessoas que têm mutações no seu genoma que bloqueiam a produção de interferon. 

Então é completamente diferente. O cara não tem anticorpo contra interferon mas ele tem uma mutação que não fabrica. Nessas pessoas, também eles acumulam nos casos graves. Interessante é que eles fizeram as contas, e esse fenômeno responde por mais ou menos 15% de todos os casos graves que existem. E como essa característica ele tem antes de ter a doença, você pode dizer que são pessoas que têm uma propensão a ter casos graves.

José Roberto de Toledo: Quer dizer, são pessoas que deveriam tomar um cuidado redobrado. Primeiro para não se contaminarem e não entrarem em contato com os corredores e, entrando em contato, precisam que os médicos que vão tratá-los saibam disso porque isso pode mudar a maneira como o tratamento vai ser feito.

Fernando Reinach: Mas, para saber isso, você precisa ter um teste disponível que permita identificar essas pessoas.

José Roberto de Toledo: Esse teste ainda não existe comercialmente?

Fernando Reinach: Existe só em laboratório, mas rapidamente deve se tornar comercial.

José Roberto de Toledo: E são dois testes, na verdade. O teste para saber se a pessoa ou produz um anticorpo contra o interferon ou se ela não produz interferon.

Fernando Reinach: Exatamente. O de não produzir interferon você tem que sequenciar o genoma dela, que é assim que eles fazem. É uma metodologia cara, porque são mutações diferentes que podem levar ao bloqueio da produção de interferon, mas dá para saber. Aí tem outras consequências. Por exemplo, se você teve esse caso grave e recuperou, e tem um monte de anticorpos contra o Sars-CoV-2, muitas vezes você pega o soro dessa pessoa, faz uma transfusão numa outra pessoa para ajudar ela, né. Pessoas que têm anticorpos contra interferon não poderiam doar. 

Então, você está transferindo o anticorpo contra interferon para um outro paciente. Criou uma complicação também nessa tecnologia de transferir soro de uma pessoa para outra. Aparentemente, os casos graves tem um problema de circulação de interferon: uns têm demais, aparentemente; os outros têm de menos, aparentemente de novo. Não está bem claro se esses dois grupos são iguais. Mas o fato é que uma falta de regulação do sistema de interferon é que leva as pessoas a terem um caso grave. Outra coisa interessante é que os genes que levam a produção de alguns desses interferons estão no cromossomo X. Por isso, os homens têm mais doença. Porque o homem tem só uma cópia do cromossomo X. Você lembra: o homem XY, e a mulher XX. Como o homem tem só uma cópia, se ele tiver genes com defeito, esse gene não é compensado, porque existe no outro cromossomo X.

José Roberto de Toledo: É uma vantagem evolutiva das mulheres, nesse caso.

Fernando Reinach: Agora, quando você tem numa população uma diversidade genética, gente que tem um gene, outras pessoas que não têm um gene, essas diferenças entre as pessoas podem não ter nenhum efeito na sobrevivência delas numa condução normal. Agora, quando muda o ambiente, como mudou esse ano com o aparecimento de um vírus novo, as pessoas que têm esse gene mutado ou que produzem esses anticorpos estão em desvantagem em relação às outras. 

Então, é um processo darwiniano acontecendo entre os seres humanos ao vivo para todo  mundo olhar. As pessoas que têm esses genes, que não têm culpa de ter, nesse ambiente com Sars-Cov-2, têm menor chance de sobreviver. Então, ao longo do tempo, isso vai levar esse gene a desaparecer na humanidade. Claro que ao longo do tempo aqui é 10 mil anos, uma coisa desse tipo.

José Roberto de Toledo: Agora, o estudo não foi grande o suficiente para, por exemplo, diferenciar pessoas por raça. A gente não sabe, por exemplo, se eventualmente os asiáticos, pessoas negras, podem ter uma concentração menor dessa variação. O que explicaria a taxa de mortalidade mais baixa na Ásia e na África.

Fernando Reinach: Mas é muito interessante você ver como uma mudança no ambiente favorece certas combinações de genes e desfavorece outras combinações de genes. Isso é evolução. Para quem não acredita em evolução, isso é um exemplo claro da evolução.

José Roberto de Toledo: Agora, é bom deixar claro que não é só quem tem essa mutação, que tem essa característica genética, que pode morrer por Covid. Não significa que os outros 99,6% da população estão isentos de casos graves.

Fernando Reinach: E, mesmo entre os casos graves, essas duas alterações respondem por volta de 12 e 15% dos casos graves.Tem casos graves por outros motivos que a gente ainda não conhece.

José Roberto de Toledo: Isso corresponde a 15% da nossa dúvida, mas já é uma luz no fim da quarentena, porque você começa a entender melhor o processo.

Fernando Reinach: Eu acho que entender a diferença entre as pessoas que têm casos graves e casos leves e conseguir curar as pessoas que têm casos graves é a única outra estratégia além da vacina. Porque a vacina talvez proteja todo mundo, proteja uma parte da população. Como a gente já falou das outras vezes, se você conseguir diminuir os casos graves, aí acabou. Essa doença não é mais um problema para a humanidade.

José Roberto de Toledo: Você levantou uma questão importante. Seria interessante que os estudos com as vacinas incluíssem pessoas que têm essa mutação para ver se a vacina funciona para elas.

Fernando Reinach: Agora, como isso é muito raro, quatro em 1 mil, num estudo desse tipo, que tem 30 mil pessoas, vão ter 120 pessoas com essas mutações. Eu acho que, quando eles estão fazendo esses estudos, eles não estão testando essas pessoas. Teria que incluir isso no protocolo das vacinas também. Porque é sempre difícil para a humanidade aceitar que as pessoas são geneticamente diferentes entre si. Apesar de a diferença ser óbvia, a gente tem dificuldade em aceitar que essas diferenças podem ter implicações. Nesse caso tem.

José Roberto de Toledo: Muito bom! Fernando Reinach, mais uma vez muitíssimo obrigado.

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