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Fragmentos de um discurso tropicalista – para Caetano

Em 1967, assisti atônita pela televisão uma explosão poética e sonora: Alegria, alegria invadia minha casa, minha consciência  e meu coração. Perplexa, fiquei vendo e ouvindo aquela canção diferente, com imagens luminosas, fragmentadas que anunciavam uma nova visão, que traduziam uma nova percepção de um mundo em transformação: o Tropicalismo.

Eliete Negreiros | 10 ago 2012_11h00
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1. Alegria, Alegria  – Em 1967, assisti atônita pela televisão uma explosão poética e sonora: Alegria, alegria invadia minha casa, minha consciência  e meu coração. Perplexa, fiquei vendo e ouvindo aquela canção diferente, com imagens luminosas, fragmentadas que anunciavam uma nova visão, que traduziam uma nova percepção de um mundo em transformação: o Tropicalismo.

Era uma anunciação. Este foi um ano decisivo para a cultura brasileira: nas artes plásticas, Hélio Oiticica apresenta a instalação Tropicália, cuja expressão Caetano tomaria para sua canção; no cinema, estréia Terra em Transe de Glauber Rocha; no teatro, o grupo Oficina, encabeçado por Zé Celso Martinez Corrêa, encena a peça do modernista Oswald Andrade, O rei da vela; na música, Caetano Veloso compõe Tropicália e no III Festival da MPB são apresentadas Alegria, Alegria, de Caetano e Domingo no parque, de Gilberto Gil.

Em 64 o golpe militar que derrubou o governo populista de Jango Goulart provocou um grande choque na consciência brasileira e paradoxalmente houve uma fermentação cultural sem precedentes, uma revolução estética nas diversas artes. A crise de consciência por que passou a intelectualidade e os artistas, vendo seu sonho de socialização do Brasil transformado abruptamente no pesadelo da ditadura militar e todas as mudanças que isto ocasionou, vai alimentar uma revisão crítica da política e da arte, um questionamento da ideologia da esquerda e uma nova reflexão sobre o lugar da arte e do artista na sociedade. A revolução estética que acontece nas  diversas artes neste momento – música, cinema, teatro, artes plásticas – é sem precedentes e é um indicador da procura de novas formas de expressão diante do impasse colocado pela história. Naquela época, eu não sabia disso. Mas o impacto estava no ar. Daí o sentimento de anunciação que tive ao ver Caetano cantar Alegria, Alegria na televisão.

2. Glauber  e o Cinema Novo –Caetano fala da presença fundamental  do cinema de Glauber Rocha no Tropicalismo no livro Verdade Tropical: “Se o tropicalismo se deveu em alguma medida a meus atos e minhas idéias, temos então de considerar como deflagrador do movimento o impacto que teve sobre mim o filme Terra em transe, de Glauber Rocha, em minha temporada carioca de 66-67.”Nos meados dos anos sessenta, Glauber havia se tornado um líder cultural. Depois de ter feito Barravento, impressiona diretores e críticos europeus com Deus e o Diabo na Terra do Sol, filme de “beleza selvagem” que acenava com a possibilidade de um novo cinema nacional, nascido da miséria brasileira

3. Tropicália, a canção – Tropicália, a canção, foi composta por Caetano em 1967 e está no disco Caetano Veloso, de 1968. A letra parece uma colagem, onde partes fragmentadas vão formando um todo multifacetado, de onde emerge uma visão ruinosa do mundo. Essa idéia de composição fragmentada se contrapõe à de composição orgânica: trata-se de uma outra unidade, não a unidade que mantém as partes em harmonia, em equilíbrio, mas a unidade resultante da assimetria, do contraste, do desequilíbrio entre as partes.  Podemos ver aqui a presença da alegoria moderna benjaminiana, onde há uma possibilidade de totalizar algo que é fragmentado. O texto é tecido de metáforas, numa articulação que parece propor uma decifração.

Na primeira estrofe, por exemplo, uma série de imagens é lançada numa sequência rápida: imagens da modernidade – aviões, caminhões; imagens da natureza – chapadões, planalto central; imagens de partes do corpo: cabeça, pés, nariz; imagens do Brasil – carnaval. Aqui já podemos ver dois elementos estruturais da canção. O primeiro é esta ideia de uma composição feita de imagens fragmentadas, de estilhaços do real, algo que faz lembrar o cubismo (cabeça, pés e nariz) e a colagem, procedimento da pop art. A segunda, a presença de elementos da modernidade, elementos fabricados pela indústria (avião, caminhão) contrastando com elementos da natureza (os chapadões). No refrão, o contraste entre o moderno (a bossa) e o antigo (a palhoça) é reafirmado. No entanto estes elementos contrastantes são colocados num mesmo plano, isto é, sem nenhuma valoração do tipo o antigo é melhor, ou o novo é melhor, sem nenhum princípio de exclusão, mas sim lado a lado, convivendo e confrontando-se.

Em Tropicália estão presentes elementos poéticos dissonantes que compõem o imaginário inquieto e genial daquele período da cultura brasileira e aí é feita uma nova representação do Brasil, onde as fraturas da nossa sociedade são e estão expostas, onde diversas vozes se entrecruzam sem se fundir, criando uma dissonância, onde não há projeto nem utopia, mas sim uma explosão e exposição de estilhaços culturais, recalcados ou não, que compõe o panorama cultural daquele momento.

4. Carmen Miranda– “A canção manifesto Tropicália, homônima da obra de Oiticica, termina com o brado ‘Carmen Miranda da-da dada’. Tínhamos descoberto que ela era  nossa  caricatura e nossa radiografia”, escreveu Caetano.

5. Fellini e Giulietta Masina –“Um dos acontecimentos mais marcantes de minha formação pessoal  foi assistir a La strada, aos quinze anos, no Cine Subaé, em Santo Amaro da Purificação, a cidadezinha no interior da Bahia onde nasci. A cara de Giulietta Masina ficou no fundo de minha alma como se fosse uma instância metafísica universal”, disse Caetano.

6. Colagem – Meu coração não se cansa de ter esperança de um dia ser tudo o que quer. Caminhando contra o vento, sem lenço e sem documento, eu vou. O sol se reparte em crimes, espaçonaves, guerrilhas. Existirmos, a que será que se destina? Eu vou. O sol nas bancas de revista me enche de alegria e preguiça, quem lê tanta notícia… Sob a cabeça os aviões, sob os meus pés os caminhões. E no joelho uma criança sorridente, feia e morta estende a mão. Meu coração não se cansa. Gosto de sentir minha língua roçar a língua de Luís de Camões, gosto de ser e de estar e quero me dedicar  a criar confusões de prosódia e uma profusão de paródias que encurtem dores e furtem cores como camaleões. Meu coração não se cansa. Procurando por você, meu amor, onde está? meu Deus , mas que felicidade te encontrar pela cidade com esta cara linda ao sol do meio dia. Eu vou. A vida é amiga da arte, é a parte que o sol me ensinou. E o sol é tão bonito. Eu vou. Existirmos, a que será que se destina? E a coisa mais certa de todas as coisas não vale um caminho sob o sol, e o sol sobre a estrada é o sol sobre a estrada, é o sol, é o sol. Eu vou. Por que não?

Cajuína, presença de Torquato Neto

Língua

Coração vagabundo, LP Domingo, Caetano e Gal, 1967

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