Shigofa Rasouli, aos 24 anos, foi impedida de estudar e trabalhar pelo novo regime do Talibã e refugiou-se em São Paulo. "A maioria dos brasileiros com quem eu converso não sabe nada sobre o Afeganistão. Quando sabe, o conhecimento se limita apenas ao Talibã e ao uso de burca." Crédito: Freshta Salehi
Fugindo do Talibã
Fotógrafa afegã relata como, proibida de trabalhar e estudar em seu país, conseguiu apoio para se estabelecer em São Paulo
Quando o grupo fundamentalista islâmico Talibã retomou o poder após a saída das tropas americanas do Afeganistão no ano passado, Shigofa Rasouli viu-se obrigada a abandonar seu país. Impedida pelo novo regime de frequentar as aulas da faculdade de tecnologia médica e de atuar como fotógrafa, a estudante de 24 anos e outros cinco jovens afegãos conseguiram ajuda para fugir da província de Herat rumo a São Paulo, onde moram desde novembro. Uma campanha liderada pela ativista brasileira Sabrina Herzog, pelo fotógrafo alemão Stefan Dotter e pela fundação francesa ERE arrecadou 35 mil euros [186 mil reais] para bancar a vinda e a estadia do grupo na capital paulista. Parte do dinheiro foi obtida com a venda online de obras doadas por fotógrafos e outra parte com a realização de uma exposição em Paris. No Brasil, o grupo foi acolhido pelas ONGs Estou Refugiado e Compassiva, que providenciaram casa, trabalho e aulas de português. Agora buscam recursos para continuar bancando a estadia e financiar a vinda de outros três afegãos. No relato a seguir, Shigofa fala sobre a perseguição do Talibã, a proibição de meninas frequentarem a escola em seu país, o exemplo da ativista paquistanesa e prêmio Nobel da Paz Malala Yousafzai, a fuga para o Brasil, as dificuldades de adaptação e as saudades da terra natal.
Em depoimento a Lia Hama
Nasci em Ghazni, uma província de 1,3 milhão de habitantes no sudeste do Afeganistão. Sou do povo hazara, uma minoria étnica com características físicas e culturais diferentes da maioria da população afegã, pertencente à etnia pashtun. É comum os estrangeiros nos confundirem com japoneses ou chineses por causa dos nossos traços orientais. Muitos pashtun não gostam dos hazara e não aceitam nossa religião: somos muçulmanos xiitas enquanto os pashtun são sunitas. O Talibã, formado em sua maioria por extremistas pashtun, nos chama de “infiéis”.
Meu pai é lojista e minha mãe é dona de casa. Nasci em 1998, dois anos após o Talibã assumir o poder no Afeganistão pela primeira vez. Cresci ouvindo as histórias terríveis de execução e castigos físicos que meus pais contavam sobre eles. Os extremistas governaram o país até a invasão das tropas americanas em 2001. Na época, o então presidente americano George W. Bush estava à caça de Osama Bin Laden, responsável pelos atentados terroristas de Onze de Setembro. O grupo comandado por Bin Laden, a Al-Qaeda, recebeu abrigo do Talibã em território afegão. Essa foi a justificativa usada pelos americanos para invadir o país e expulsar o Talibã do poder. As forças ocidentais permaneceram por vinte anos no Afeganistão.
Antes da volta do regime do Talibã em agosto do ano passado, minha vida era boa, eu podia estudar e trabalhar normalmente. Estava na universidade, cursando o segundo ano do curso de tecnologia médica. Fazia trabalhos como fotógrafa freelancer para o ITC (International Trade Center), uma agência da ONU para desenvolvimento econômico sediada em Genebra, na Suíça. Mantive contato com a brasileira Sabrina Herzog, funcionária do ITC que fazia a conexão entre o trabalho de artesãos afegãos com grandes marcas europeias. Eu e outros colegas éramos alunos de um curso organizado pelo ITC e ministrado pelo fotógrafo alemão Stefan Dotter.
Minha vida era tranquila até que as tropas ocidentais deixaram o Afeganistão, abrindo espaço para o retorno do Talibã ao poder. De uma hora para outra, fui forçada a abandonar a faculdade porque o grupo proíbe as mulheres de estudarem. O trabalho de fotógrafa também se tornou inviável, já que o regime não permite o exercício livre da profissão – ainda mais sendo uma mulher. Logo ficou claro que viveria sem liberdade e sob ameaça constante de violência se eu continuasse ali.
Viemos num grupo de seis refugiados afegãos: quatro mulheres e dois homens. Cinco são fotógrafos. Tivemos a sorte de contar com a ajuda da Sabrina e do Stefan para viabilizar a nossa viagem. Eles entraram em contato com uma fundação francesa chamada ERE e, juntos, articularam uma campanha para financiar a nossa vinda. Houve a venda de obras doadas por cerca de cem fotógrafos conhecidos no site da ERE e uma exposição em uma galeria no bairro do Marais, em Paris. Sabrina conseguiu os vistos humanitários com o Itamaraty. Como não havia embaixada brasileira no Afeganistão, fomos buscar os documentos no país vizinho, o Paquistão.
A viagem do Afeganistão para o Paquistão foi bastante tensa. Era a primeira vez que eu viajava para o exterior. Me sentia sozinha e com medo. Cobri meus braços e pernas com roupas e a minha cabeça com véu e máscara, só meus olhos ficaram visíveis. Meu coração disparava pensando que os soldados talibãs poderiam me reconhecer como uma hazara em fuga. Além disso, o Talibã não autoriza as mulheres a viajarem sem os familiares. Eles perguntam: “Onde está seu pai? Onde está seu irmão? Onde está seu marido?” Dizem que precisamos estar sempre acompanhadas deles.
Pegamos um ônibus de Herat com destino à capital, Cabul. No caminho, havia muitos postos de controle. Os soldados talibãs paravam os veículos e entravam para averiguar as nossas bagagens. Queriam checar se levávamos objetos proibidos pelo regime, incluindo instrumentos musicais como violão ou guitarra. Quando chegamos a Cabul, pegamos nossos vistos de entrada para o Paquistão e fomos de táxi até a fronteira, uma viagem que levou quatro horas.
O posto de fronteira fica numa região montanhosa e desértica na província de Nangarhar. O local estava lotado de pessoas como nós, querendo deixar o país. A maioria era do povo hazara, mas também havia afegãos de outras etnias: pashtuns, uzbeques e tadjiques. Em comum, todos queriam fugir do Talibã. Os guardas da fronteira nos ameaçavam: “Vocês vão se arrepender de deixar o Afeganistão. Se não forem aceitos no Paquistão e voltarem, serão mortos aqui.”
Levamos três dias e duas noites até conseguir autorização para atravessar a fronteira. Só havíamos levado comida para o primeiro dia: biscoitos, bolos e pães. Mas éramos seis, e os alimentos não foram suficientes para os dias seguintes. Não tínhamos imaginado que demoraria tanto tempo para passar pelo posto de controle. Sentimos fome, ficamos sem tomar banho e passamos muito frio à noite. Não havia cobertores ou colchões para dormir. Viajei apenas com uma mala de 30 kg com roupas, documentos, câmera fotográfica e HD com fotos.
Os talibãs nos proibiram de usar o celular. Eles gritavam: “Por que vocês estão tirando fotos? Por que estão filmando?” Pegaram os aparelhos dos meus colegas e apagaram todas as imagens e os vídeos armazenados. O pior momento foi quando chicotearam as pessoas só pelo fato de elas terem se levantado. Queriam que ficássemos sentados durante horas sem fazer nada. Um dos agredidos foi meu colega fotógrafo Morteza Rezaiy.
Quando finalmente conseguimos entrar no Paquistão, havia um motorista nos esperando para nos levar à capital Islamabad. Ele tinha uma foto nossa e foi assim que nos reconheceu. Fomos levados a uma casa onde pudemos tomar banho após três dias sem nos lavar. Depois jantamos num restaurante de comida típica local. Comemos kebab (pão tipo folha recheado com carne e vegetais), ashak (bolinhos de carne com molho de iogurte) e qabeli (arroz com cenoura, passas e pedaços de carne). Foi a melhor refeição da minha vida.
Permanecemos cerca de um mês em Islamabad até conseguirmos os vistos humanitários para viajar para o Brasil. Nosso voo saía de Karachi, mas outro imprevisto aconteceu no aeroporto. A companhia Turkish Airlines não permitiu nosso embarque e exigiu que tivéssemos a passagem de volta. Mas tínhamos apenas a de ida, já que não pretendíamos voltar tão cedo. Ficamos mais três dias em Karachi até que, com a ajuda da Embaixada do Brasil, conseguimos pegar um voo da Emirates com destino a São Paulo.
Desembarcamos no aeroporto de Guarulhos às 4 horas da madrugada do dia 27 de novembro do ano passado. Estava escuro e fomos recebidos pela Luciana Capobianco, fundadora e diretora da ONG Estou Refugiado. Ela é muito gentil e se tornou uma espécie de mãe para nós. Quando temos algum problema, falamos com ela. Outra organização que nos dá suporte é a Compassiva, dirigida pelo André Leitão. Faço aulas de português na sede deles três vezes por semana.
Antes de vir para cá, eu tinha lido que o Brasil é um país grande, com uma população formada por imigrantes vindos de muitos países. Também conhecia um pouco do futebol, meu irmão é fã dos jogadores Neymar e Kaká. Quando buscamos informações sobre o Brasil no Google, a maioria das fotos que aparecem são do Rio de Janeiro. Essa era a imagem que eu tinha do país na minha cabeça. Sobre São Paulo, sabia apenas que era uma grande metrópole para onde as pessoas vão em busca de trabalho.
Quando contei aos meus pais que iria para o Brasil, eles ficaram felizes porque eu iria para um lugar mais seguro, mas, ao mesmo tempo, tristes porque estaria do outro lado do planeta. Eles ficaram preocupados querendo saber onde eu iria morar, como iria me sustentar, como são as pessoas por aqui. Nos falamos com frequência por WhatsApp e sempre busco tranquilizá-los.
Os primeiros dias em São Paulo foram de muito estranhamento. Para nós, tudo aqui é diferente: as pessoas, o jeito como se vestem, como falam, o que comem. No começo, passei fome porque os únicos alimentos que eu conhecia eram batata chips e ovos. Fiquei feliz quando descobri o arroz com feijão, um prato que aprendi a gostar. Mas sinto falta das cores e dos temperos da comida afegã. Minha impressão é que a comida brasileira é sem cor e sem sabor.
Chorei muito nos primeiros três meses no Brasil. Agora choro apenas uma vez por mês. Sinto falta da minha família, dos meus amigos, de estudar e de trabalhar como fotógrafa. No começo, eu e meus colegas recebemos assistência psicológica. Não faço mais terapia, mas alguns colegas ainda são atendidos.
A maioria dos brasileiros com quem eu converso não sabe nada sobre o Afeganistão. Quando sabe, o conhecimento se limita apenas ao Talibã e ao uso de burca. Me perguntam por que deixei meu país, como é viver sob o regime do Talibã e se eu era obrigada a usar burca. Nunca usei, tinha o hábito apenas de vestir o hijab (véu islâmico) diariamente porque sou muçulmana. Alguns me perguntam sobre a escritora e ativista Malala Yousafzai, que enfrentou o Talibã pelo direito de as meninas irem à escola no Paquistão. Ela é muito famosa no Afeganistão. Nós, afegãs, a admiramos muito pela coragem de ter desafiado o Talibã.
Quando cheguei a São Paulo, ainda usava o hijab. Depois de um mês, decidi abandonar o véu islâmico porque chamava muita atenção. Não me sentia confortável com todo mundo me olhando e me perguntando sobre a minha religião. Sem o véu, tenho um problema a menos para lidar. O mais difícil é a barreira da língua. Hoje consigo falar algumas palavras e frases em português, mas apenas para conversas superficiais. É difícil estabelecer um diálogo mais profundo.
Falo um pouco de inglês e, quando as pessoas não entendem, me comunico por linguagem corporal ou uso o Google Translator. Só leio os sites de notícia do Afeganistão, não acompanho o noticiário brasileiro porque não domino português o suficiente. Além disso, aqui também há notícias tristes e estou cansada de notícias tristes.
Muitos brasileiros acham que sou descendente de japoneses porque há uma grande comunidade japonesa em São Paulo. Eles falam comigo em português como se eu fosse nativa. Mas preciso estudar muito para dominar a língua e conseguir um emprego que pague o suficiente para que eu possa trazer meus pais para uma visita. Tenho vontade de um dia trabalhar aqui como fotógrafa. Consegui um emprego numa loja de roupas no bairro da Vila Olímpia. Ajudo a etiquetar, embalar e fazer a triagem das roupas.
Os primeiros dias de trabalho foram difíceis, houve momentos em que pensei em desistir. Não sabia o que fazer e nem como me comunicar. Ficava horas sem fazer nada e me sentia inútil. Depois de alguns meses de adaptação, a situação melhorou e agora está tudo bem. Demorou para encontrar um lugar para almoçar que eu pudesse pagar. Uma vez, eu e minha colega Zahra Karimi fomos a um restaurante perto da loja. Pedi arroz, feijão e batata frita, e ela, um hambúrguer. Quase caímos para trás quando chegou a conta: 180 reais, sendo que o meu salário é de 1.300 reais. Depois nos ensinaram que, para economizar, é preciso ir a restaurantes por quilo.
É difícil morar num país estranho e ficar longe da família, mas me sinto grata pela ajuda que recebi de tantas pessoas nos últimos meses. Nunca me esquecerei das demonstrações de solidariedade, muitas vezes de pessoas que nem me conhecem. O Brasil hoje é um país mais seguro para se viver do que o Afeganistão. Quero aprender português, estudar e conseguir um emprego que me dê autonomia financeira. Sonho com o dia em que o Talibã deixará o governo e eu poderei, enfim, voltar para casa.
* Para mais informações sobre doações aos refugiados, entrar em contato pelo e-mail luciana@estourefugiado.org.br
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