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    Roda de samba, Curtas Jornadas Noite Adentro - Foto: Divulgação

colunistas

Funk e roda de samba – inovação e resistência

Série e filme dialogam ao abordar inovação e tradição em dois gêneros musicais

Eduardo Escorel | 21 set 2022_08h53
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Funk.Doc: Popular & Proibido, série de seis episódios, de Luiz Bolognesi, está em exibição desde 30 de agosto, prosseguindo no canal HBO Max até 4 de outubro. Curtas Jornadas Noite Adentro, de Thiago B. Mendonça, por sua vez, estreou há uma semana (15/9) em cinemas de seis cidades, entre outras São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Ambos têm origem na música. Mas enquanto o documentário de Bolognesi trata do gênero irreverente e transgressivo que se impôs no Brasil a partir do final da década de 1980, sendo portanto relativamente novo, o filme de Mendonça que é, nas suas palavras, uma “ode ao samba”, inscreve-se como defensor de uma tradição polida, a roda de samba, objetivo explicitado através da frase do mestre Candeia (1935-1978) citada pelo diretor: “Um país que deixa a cultura se perder nunca será uma nação.”

Entre a série e o filme é possível estabelecer um inesperado diálogo, feito de afinidades e divergências, no qual seja destacado tanto o valor da inovação e ousadia do funk, consagrado em âmbito internacional, quanto o do samba, forma já clássica de expressão artística.

Fiel ao padrão que alterna entrevistas com números musicais, Berço do Funk, primeiro episódio de Funk.Doc: Popular & Proibido, recupera com eficácia narrativa a trajetória do gênero de origem afro-americana, iniciada no Brasil com bateria eletrônica e sintetizadores. Destacam-se, em especial, as palavras do DJ Marlboro ao contar a razão do primeiro álbum Funk Brasil ter feito tanto sucesso, vendendo 250 mil cópias, ao ser lançado em 1989: 

“Só que tudo que eu vinha fazendo, cara, eu não gostava. Achava muito ruim. Porque eu estava querendo, talvez, fazer uma tradução do que acontecia lá fora em relação à maneira de cantar, entendeu? Falei: cara, eu não posso ficar preso ao que acontece lá fora. Eu tenho que criar uma nova maneira. A gente tá fazendo o tema hip hop, das letras de hip hop, contestando, falando do dia a dia etc., de uma forma, contestando o tempo inteiro. Tá sem alegria e tá com a batida acelerada, mas não é esse. A gente tem que arrumar… achar o tema que vai ter identidade com a gente. Não é o tema de Nova York, é o nosso tema.” E Hermano Vianna completa pouco adiante, dizendo: “Num período muito curto de tempo, acho que menos de cinco anos, os bailes que tocavam 100% de música importada passaram a tocar 100% de música nacional. Eu também não conheço nenhuma outra transformação cultural tão rápida que muda de uma coisa para outra em tão pouco tempo.”

A intuição de DJ Marlboro ao decidir que não podia “ficar preso ao que acontece lá fora” e devia “achar o nosso tema” reverbera com intensidade, neste momento, quando pensamos na grave crise do cinema brasileiro. Até que ponto o impasse atual que indica a inviabilidade econômica do sistema de produção vigente é devido à nossa produção audiovisual ter se mantido, em grande parte, “presa ao que acontece lá fora” e à teledramaturgia preponderante no país? Estaremos carentes de novos parâmetros? De um modo próprio inovador de decidir o que será produzido e de financiar nossa atividade? 

DJ Marlboro e Luiz Bolognesi – Foto: Divulgação

Entre o primeiro episódio de Funk.Doc: Popular & Proibido, documentário bem feito com linguagem convencional e Curtas Jornadas Noite Adentro, filme de ficção realizado igualmente com apuro, mas de estrutura narrativa mais ambiciosa, outra diferença crucial é o público de ambos. A série de Bolognesi, transmitida pela televisão, pode alcançar número considerável de espectadores. O filme de Mendonça, no entanto, terá dificuldade para evitar o destino melancólico da maioria das produções brasileiras recém-desovadas.

Prova dessa fatalidade é o fabuloso Segredos do Putumayo, comentado aqui em 7/9, que sequer apareceu no quadro das vinte maiores rendas do portal Filme B e, segundo informação da distribuidora O2, foi visto no fim de semana de estreia (1 a 4/9) por 273 espectadores, chegando a 540 dez dias depois! Não creio, nesse e em outros casos, que a falta de público possa ser atribuída ao filme, cabendo antes à configuração do mercado e do circuito exibidor, cada vez mais a serviço do blockbuster importado.

Há, de outro lado, o exemplo de Quebrando Mitos, de Fernando Grostein Andrade e Fernando Siqueira, co-dirigido por Claudia Calabi, lançado sexta-feira passada (16/9) no site quebrandomitos.com.br e que teve mais de 300 mil visualizações no YouTube em dois dias. Alternando relato autobiográfico de Andrade com as enormidades ditas e cometidas pelo atual ocupante provisório do Palácio da Alvorada, o documentário veio a público a dezesseis dias do primeiro turno da eleição presidencial com a intenção nítida de influir no resultado. Essa atualidade, tão rara no cinema brasileiro, é um de seus grandes méritos, havendo a lamentar, porém, a forma arcaica da narração em off ao fazer um retrospecto político de nível escolar do incumbente, voltado mais para estrangeiros desinformados do que para brasileiros que acompanham o noticiário. 

O título Curtas Jornadas Noite Adentro remete, como é evidente, ao clássico da dramaturgia teatral, de Eugene O’Neill, Longa Jornada Noite Adentro. Essa longa jornada se passa toda, porém, em uma casa, durante um único dia de agosto de 1912, entre oito e meia da manhã e meia-noite. E, o que é mais importante, os quatro personagens de O’Neill – mãe, pai e dois irmãos – fazem viagens interiores. Curtas Jornadas Noite Adentro é, de seu lado, um filme deambulatório, feito de “caminhadas trôpegas pelas noites paulistanas”, nas palavras do diretor – os integrantes de uma roda de samba passam largo tempo se deslocando, não só a pé, mas de moto, ônibus e carro por um bairro de periferia, tendo como base o Bar do Surdo. Os percursos interligados por apresentações começam e terminam com o consagrado A Alegria Continua, de Mauro Duarte e Noca da Portela, cuja letra dá o tom dessa espécie de filme-exaltação. Sem se furtar a um flagrante instantâneo da desoladora brutalidade policial, sobressai ao final, porém, o hino à alegria com os dois versos finais sendo repetidos com insistência: “O samba tem feitiço/ O samba tem magia/ Não há quem possa resistir/ Ao som de uma bateria/ É lindo a gente vê/ O samba amanhecer/ Cheio de poesia/ Com o sol aparecendo/ E a lua indo embora/ E a lida tão sofrida/ Vem pra rua/ Mas enquanto houver samba/ Alegria continua, alegria continua/Alegria continua.”

Mas, diante da situação real dos personagens, talvez se deva concluir que essa proclamação final é mais ilusória do que verdadeira.

*

Destaque (X):

“Hoje, somos indivíduos isolados em guerra desesperada para vencer. Ver um filme, uma peça, um concerto, são atos coletivos, mas hoje o sentimento é que o outro atrapalha e ameaça. A arte virou consumo, só vale quando ‘agrega valor’. Qual a função da arte nos nossos dias? É só a de manter a nossa ‘saúde mental’? O que é exatamente saúde mental, o que entendemos por isso?… O tempo virou algo que nos agonia porque nunca o alcançamos, vivemos ‘correndo atrás’. Não somos mais capazes de nos entregar a um filme por duas horas. Talvez por isso, a moçada hoje assista a um filme com a velocidade alterada para o dobro nos celulares. Não há mais paciência para ver e ouvir, parecemos estar esgotados. Do quê?” Roberto Gervitz, Um Vírus no Cinema, Seminário Vida Cultural, Folha de S.Paulo e Itaú Cultural, 15/09/2022.

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