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    Crédito: Paulo Macedo

depoimento

Há vários modos de matar um gay

Por que decidi contar a minha história intercalada com os descalabros de Bolsonaro

Fernando Grostein Andrade | 31 ago 2022_08h35
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Em depoimento a João Batista Jr.

Há muitos anos tenho sido alvo de ataques e mensagens de ódio, mas a escalada das ameaças chegou ao ápice em 2018, meses antes das eleições presidenciais. Foi quando recebi via Facebook o seguinte recado: eu devia parar de falar de política, caso contrário o meu velório precisaria ser com o caixão lacrado. A mensagem não dizia de que modo me matariam, mas o recado era bem claro. Fiquei apavorado. Não era uma mensagem isolada: somava-se a uma longa série de acusações, perseguições e apagamentos.

Tudo começou durante a realização do meu documentário Quebrando o Tabu, lançado em 2011, no qual discuto se o usuário de droga não deveria ser tratado pela medicina, em vez de punido e preso. Para aprofundar essa questão de saúde pública e de segurança, entrevistei políticos, médicos e policiais. Alguns dos delegados que entrevistei foram presos mais tarde, acusados de envolvimento com o tráfico. Eu lembro que um deles me disse que o problema da droga tinha a ver com famílias compostas por “homem com homem”. Ele talvez tenha percebido a minha orientação e mandado um recado. Comecei a atravessar um túnel cada vez mais escuro e assustador. As acusações mais leves se referiam a mim como drogado e defensor de bandido.

Para ajudar na divulgação do documentário, criei uma página no Facebook, também chamada Quebrando o Tabu. O objetivo inicial era tratar do tema do filme e da frustrada guerra contra as drogas, mas depois a página se transformou em um portal com notícias relacionadas a direitos humanos, meio ambiente, racismo e feminismo, entre outros assuntos. Quebrando o Tabu ganhou boa visibilidade e passamos a ser uma voz importante na internet, sobretudo junto ao público jovem, com 21,1 milhões de seguidores atualmente, somando Instagram, Twitter e Facebook.

Com a criação da página, muito mais gente passou a me atacar. Recebi mensagens ameaçadoras de pessoas que sabiam meu endereço, os lugares que eu frequentava e até o nome da minha tartaruga. Em setembro de 2015, a página foi hackeada, removeram o acesso de todos os administradores e postaram nela a imagem de uma caveira e uma faca. Recebemos apoio de autoridades públicas e da imprensa por causa dessa agressão. Alguns dias depois, o Facebook conseguiu nos restituir a página.

As ameaças aumentaram em 2017, quando publiquei no YouTube um vídeo de quinze minutos chamado Cê Já Se Sentiu um et?, em que falava sobre ser gay. Entre as mensagens violentas que recebi, uma delas defendia o meu espancamento para que eu aprendesse a ser homem. Mas a escalada de ódio estava apenas no início, e iria piorar com a proximidade das eleições e o clima político cada vez mais tenso no país.

Quando chegou a ameaça do velório com caixão fechado, em 2018, liguei para o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, um dos entrevistados do documentário Quebrando o Tabu e um grande amigo. Contei a ele o que estava acontecendo e pedi conselhos. Eu deveria fazer boletim de ocorrência? Procurar autoridades? Ele me colocou em contato com um advogado, que foi bastante sucinto: disse que essas medidas de nada adiantariam. O advogado me explicou que havia setores da polícia e do Poder Judiciário comprometidos com a ideologia das pessoas que estavam me intimidando. E que eu não estaria em segurança no Brasil a não ser que ficasse de boca fechada.

O advogado contou o caso de uma menina estuprada que havia sido humilhada por um juiz, como se ela fosse a culpada pelo crime, e não a vítima. Resolvi acatar a sugestão do advogado e avisei minha família que iria me mudar do Brasil. Comecei a organizar a viagem com plena consciência de que era um privilegiado, pois havia gente mais vulnerável que eu sem ter a quem recorrer ou para onde escapar.

Naquela época, eu estava ajudando a reativar um grupo de teatro na Penitenciária Desembargador Adriano Marrey, em Guarulhos, na Grande São Paulo, e conheci pessoas que vivem esta dupla privação: a da liberdade e a de não poderem ser abertamente gays. Em alguns casos, homossexuais e travestis presos são levados para alas de “seguro”, a mesma com detentos que cometeram crimes como estupro, porque, como estes, correm risco de morte se ficarem entre os demais prisioneiros.

Na Califórnia, para onde me mudei, achei que iria realizar um sonho da época de estudante, que era viver na Costa Oeste dos Estados Unidos. Agora, porém, os tempos são outros, pois há várias pessoas exiladas aqui devido aos abusos que sofreram por serem gays.

 

A minha sensação de culpa por toda essa situação me levou a tomar uma atitude, recorrendo ao que sei fazer, que é cinema. Decidi realizar um documentário sobre a vida de Jair Bolsonaro. Com a jornalista Carol Pires, que fez um podcast sobre o presidente[1] e é uma pessoa que admiro, montamos um roteiro inicial para o filme. Entrevistas foram feitas em Eldorado, no interior paulista, a cidade natal de Bolsonaro, no Rio de Janeiro e em Brasília. Ocorre que o resultado ficou inassistível.

Eram tantos descalabros, que a primeira edição do documentário causou forte repulsa em quem viu. Na única cena leve do filme, eu mesmo era o protagonista: aparecia contando como desenvolvi, aos 10 anos, o hábito de cultivar orquídeas para superar um luto. Depois de ver a primeira versão do filme, o compositor Antonio Pinto, encarregado da trilha sonora, disse que sentia falta de mais momentos como esse no filme. O diretor Sérgio Machado aconselhou que tivesse mais flores e delicadeza, em oposição à masculinidade tóxica de Bolsonaro.

Comecei a decupar os componentes da masculinidade tóxica: homofobia, autoritarismo, covardia, violência, abuso, racismo, feminicídio, entre tantos outros, e percebi que isso estava se dando numa escala maior, então cunhamos um termo que somava tudo isso: masculinidade catastrófica, algo mais adequado para Bolsonaro, Trump e homens assim, que danificam a sociedade em escala continental.

Em dezembro do ano passado, quando refletia sobre se deveria mudar ou não a estrutura geral do filme, tive um colapso nervoso. Eu estava sem forças. Foi meu marido, o ator Fernando Siqueira, quem me encorajou a seguir em frente. “Já que tá todo mundo falando para você aumentar a sua parte no documentário, vamos fazer um exercício”, propôs. E apontou a câmera para mim. Assim, o filme passou a ser sobre a minha história de vida, entrecortada pela trajetória de Bolsonaro, ou seja, misturando flores e amor com armas e balas. Praticamente joguei fora a montagem que tinha feito antes. Mudamos o título do filme, e o documentário passou a ser dirigido por mim e por Fernando. Vai se chamar Quebrando Mitos e estreia em 13 de setembro no meu canal do YouTube.

Para o filme, fiz um mergulho em mim mesmo, de modo muito transparente. Já me mataram várias vezes. A primeira, quando fui impactado pela morte de meu pai, o jornalista Mário de Andrade. Ele era editor da revista Playboy e apaixonado pelo seu trabalho. Cresci em um ambiente em que se discutia durante o jantar assuntos de política, jornalismo e a produção de ensaios fotográficos com mulheres como Bruna Lombardi e Luma de Oliveira. Quando eu tinha 10 anos, ele teve um ataque cardíaco fulminante. Eu me lembro de ter jogado uma flor de hibisco em seu caixão, esperando que algo renascesse dali. Virei um menino tímido e introspectivo. Durante o meu luto tive o amparo da minha família, minha mãe, meu padrasto, meus irmãos e do meu cachorro na época, o Elvis. Encontrei cor e vida no ofício de cuidar de orquídeas. Era fascinado por todo o processo de cultivo dessas flores.

Aos 12 anos, o meu gosto pelas orquídeas foi tema de uma reportagem do jornalista César Tralli para o telejornal SPTV, da Rede Globo. Foi uma matéria linda sobre um menino que cultivava plantas para escapar da dor do luto. Fiquei feliz e orgulhoso, mas houve um efeito colateral: a reportagem virou a minha vida de ponta-cabeça. Passei a ser chamado de “florzinha” na escola. A minha voz e meu jeito de andar foram alvos de piada. É o tipo de ataque que resulta extremamente cruel, porque nesse momento da vida não temos noção clara sobre a sexualidade, qualquer sexualidade. Mesmo assim, o mundo externo agride e aponta o dedo, chamando a pessoa de algo que ela nem sabe o que é, exatamente, mas que passa a atrelar ao medo e à rejeição. Foi como se eu estivesse pelado de repente, no meio do colégio e cercado pela multidão de alunos. Mesmo os que diziam ser “legal” eu gostar de plantas, falavam isso com um sorrisinho no canto da boca. Sofri preconceito inclusive da parte dos professores.

Em seguida, fui estuprado pela primeira vez. Eu era um adolescente com traços bastante andróginos. Quando tinha 14 anos, durante uma festa em uma boate, homens me seguraram à força e penetraram meu ânus com o dedo. Desde então, passei a anular o meu modo de ser: empostava a voz, para fazê-la mais grossa, e me reprimia na hora de caminhar, para parecer mais masculino. Nas festas, evitava dançar, para não associarem meus modos com o que rejeitavam. Passei até a reproduzir falas machistas e homofóbicas, a fim de esconder minha verdadeira identidade.

Fui pressionado pela sociedade para ser heterossexual, para virar macho. Muito jovem, movido pelo propósito de ser o que queriam que eu fosse, e não o que eu era, cheguei a me apaixonar pela cantora Sandy – que hoje é uma das minhas melhores amigas. Em resumo: a homofobia roubou toda a minha adolescência.

Na juventude, amigos me forçaram a transar com uma mulher que havia posado para a Playboy. Foi quando perdi a virgindade, aos 17 anos. A homofobia pode ser tão cruel que é capaz de tirar o direito de a pessoa ter sua primeira relação sexual de maneira privada, com quem deseja e escolheu de verdade. Aos 18 anos, sofri assédio sexual. Aos 20, vivendo sempre às escondidas e com medo, fui sequestrado por um garoto de programa. Aos 28, fui estuprado mais uma vez, porém sobre este episódio não consigo falar ainda.

Existem várias maneiras de matar um gay. Você pode matar um gay agredindo-o fisicamente ou tirando a dignidade dele, a ponto de não reconhecer seu próprio desejo como legítimo. Na adolescência, tive um grande amigo que também foi uma paixão. O máximo que conseguimos fazer foi nos masturbarmos um diante do outro, sem nos encostarmos. Depois de ejacular, apagamos a luz. Nunca mais tivemos coragem de falar nesse assunto. Às vezes, ele aparecia na minha casa sem avisar e ficava em silêncio. Poucos anos depois, meu amigo se matou. Não suportou a homofobia.

Entre os gays, o suicídio é um problema que atinge todas as idades. Em julho passado, o namorado de um amigo tirou a própria vida. Em 2021, uma pesquisa da organização The Trevor Project – cuja missão é prevenir suicídio entre jovens LGBTQIA+ – entrevistou 34 mil jovens entre 13 e 24 anos, e 45% deles admitiram que “consideraram seriamente” o suicídio. Na faixa etária dos 13 aos 17 anos, o número chega a 50%.

Existe também a morte e o apagamento no mercado de trabalho. Quando eu trabalhava na direção de filmes publicitários, fui alvo de ataques velados e explícitos. Em uma reunião, vi circular um bilhete de mão em mão entre os presentes dizendo que eu era gay. Fizeram isso na minha cara. Outra vez, poucos minutos após uma reunião com um cliente sobre uma peça publicitária de uma cervejaria, recebi a ligação de meu chefe me demitindo daquele projeto. Na cabeça da agência, a mim competia apenas tratar de assuntos de arte e moda, nunca de cerveja. Fui prejudicado em transações comerciais, em que o tratamento dado aos heterossexuais era nitidamente outro.

Quantos ceos e diretores de empresas são assumidamente gays? Quantos gays assumidos estão na lista dos homens mais ricos feita pela revista Forbes? O meio corporativo aceita gays, desde que atuem em áreas tidas como “menores” ou ligadas às mulheres, como as indústrias da moda e beleza. Essas áreas não são em nada menores, mas essa é a visão dos heterossexuais. Muitos deles recebem gays em suas casas, desde que sejam os cabeleireiros de suas mulheres, com os quais conversam sobre amenidades e contam piadas. Para eles, os gays não estão aptos a tratar de assuntos relacionados a finanças e tidos como essenciais. Bancos, escritórios de advocacia e startups, por exemplo, não são ambientes seguros para pessoas assumidamente gays, e tratar às claras a orientação sexual nesses lugares pode afetar radicalmente a carreira.

A violência que arranca nossa dignidade se dá em relação às coisas tidas como essenciais, mas também àquelas ligadas às pequenas coisas do dia a dia, como não ver com naturalidade que dois homens possam andar de mãos dadas e se beijar em público.

 

Existe um fator geracional em toda essa questão. Eu tenho 41 anos e sinto que a turma do meu marido, Fernando Siqueira, de 24 anos, tem outra mentalidade. Os colegas heterossexuais dele têm amigos gays, e está tudo bem assim. Os da minha geração viveram com a suspeita de que, quando um homem olhava outro homem, ele estava se arriscando a tomar uma surra. Os homens da geração do Fernando em geral se sentem lisonjeados por serem paquerados, não importa o gênero da pessoa. Há mais respeito pelo que é diferente. Elogios à beleza são palavras de afeto e não agressão.

Não vamos esquecer que, paradoxalmente, há homofobia também entre os gays. Tenho um amigo homossexual de classe alta que votou em Bolsonaro, um presidente capaz de variadas atrocidades, como dizer: “Ninguém gosta de homossexual, a gente suporta.” Muitos gays com estabilidade financeira não se veem como pessoas vulneráveis ou em perigo, e têm dificuldade de se colocar no lugar de seus pares mais humildes. Acreditam que o dinheiro consegue blindá-los de ataques, piadas e risadinhas. Ignoram que o Brasil é um matadouro de transexuais, travestis e gays no mundo. Em 2021, ocorreram 316 mortes, de acordo com o Observatório de Mortes e Violência Contra LGBTI+ no Brasil, um número ainda maior do que o já trágico saldo do ano anterior, com 237 mortes. A expectativa de vida das mulheres trans e dos travestis no Brasil é 35 anos, e o noticiário mostra que elas são executadas das formas mais cruéis, espancadas até a morte ou estranguladas com fios elétricos, por exemplo.

Conheci meu marido em 2016, pelo aplicativo de encontros Tinder. No começo da nossa relação, tínhamos o hábito de ir ao Parque Ibirapuera, deitar no gramado e passar horas conversando, enquanto olhávamos a copa das árvores. Fernando me ensinou muito. Ele é um gay que não tem culpa de ser quem é, sente orgulho de sua condição e está movido pela alegria de viver. Tenho o privilégio de tê-lo ao meu lado e agora como parceiro na direção em um filme. Ele me ensina o valor da leveza e me puxa em direção à luz.

Eu amo Caetano Veloso. Fê prefere Taylor Swift. Fazemos, então, batalhas com as nossas playlists. Recentemente, compramos um piano velho, e ele começou a cantar. Dedicamos muitas horas à leitura das partituras e ao aprendizado das melodias. Juntos, vamos criar um duo musical – acho que vamos chamá-lo de fes2, aproveitando que s2 significa coração na internet. Pretendo dar um tempo de filmes pesados. Entre dezembro e março, quando tive o esgotamento nervoso e mudamos totalmente a edição do meu documentário, a música foi um bálsamo, depois de tanto tempo afundado na investigação dos abusos promovidos por Bolsonaro. Fê escreveu uma música sobre exilio, chamada Califórnia.

Deixei o Brasil por ter medo. Esse sentimento, porém, não me paralisou nem me calou. Nunca deixarei de chamar a atenção para as questões mais pertinentes, como a própria sobrevivência da comunidade gay. No filme Quebrando Mitos, tomei a decisão de abrir minha vida e revelar minhas vulnerabilidades com o objetivo de despertar a discussão entre gays e seus familiares. A homofobia silencia, apaga e mata. O amor, o acolhimento nos faz mais fortes para enfrentar qualquer tempestade, que, assim como esse governo, vai passar. E voltar ao Brasil sem me sentir ameaçado.

[1] O podcast Retrato Narrado é uma série documental em seis episódios lançada em 2020 pela piauí parceria com o Spotify, e produzida pela Rádio Novelo.

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