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    João Assy é médico infectologista e atua há seis anos em Santarém, no Pará Intervenção de Amanda Gorziza sobre foto de arquivo pessoal

depoimento

“A gente não aguenta mais ver as pessoas morrendo”

Infectologista de hospital em Santarém relata como nova variante de Covid chega à região de barco e se espalha com velocidade maior que na primeira onda

João Lima Assy | 15 fev 2021_08h00
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O médico João Lima Assy é um dos quatro infectologistas de Santarém, cidade de 306 mil habitantes que fica no meio do caminho entre as capitais do Pará e do Amazonas. Ele relata como tem sido a pandemia de coronavírus na cidade e como o tráfego de barcos no Rio Amazonas entre Manaus e as cidades do interior do Pará favoreceu a disseminação do coronavírus, inclusive da nova variante – que é transmitida de modo ainda mais rápido. Os barcos a todo momento trazem pacientes contaminados pela nova cepa. Santarém é referência de saúde para uma área de mais de 1 milhão de habitantes e possui, no momento, 54 leitos de UTI para Covid. Assy, um paulista de 34 anos que há seis se mudou para a cidade paraense, trabalha no Hospital Municipal de Santarém atendendo pacientes na enfermaria e, quando necessário, dá assistência também aos internados em UTIs. 

Em depoimento a Lianne Ceará

Santarém é como se fosse uma capital do interior, um polo regional para a saúde. Fica a 700 km de Belém e outros municípios dão quase mil quilômetros da capital, então essa população acaba vindo pra cá. Uma coisa ou outra que não dá pra resolver aqui a gente encaminha pra Belém, mas, antes disso, eles passam por aqui. Temos uma ligação muito forte com Manaus, a distância daqui pra lá e pra Belém é quase a mesma, chega a ser até mais perto para Manaus, são 700 km até Belém e cerca de 600 até lá.

Pelo Rio Amazonas, Santarém fica bem no meio entre Belém e Manaus. A ligação entre Santarém e Manaus é cultural, regional e talvez até mais forte que com Belém, então o fluxo de pessoas indo e vindo é muito frequente. A gente recebeu muita gente fugindo da situação do começo do ano em Manaus, pacientes que enfrentavam a viagem de três dias de barco para vir pra cá. Conversei com alguns pacientes e eles contavam que vinham de Manaus, de barco, alguns assintomáticos. Outros vinham já sintomáticos. Quando as coisas começaram a piorar lá com a nova variante, pioraram de imediato por aqui. Quando a nova variante surgiu lá, logo em seguida deve ter chegado aqui. Muita gente de Manaus e dos municípios na divisa com o Pará, como Parintins, Nhamundá, começaram a vir por essa linha fluvial. Mas quando as coisas ficaram mais complicadas aqui, foi necessário proibir a entrada de barcos do Amazonas. No final de ano, muita gente daqui, que tem família lá, foi pra lá – porque aqui, assim como no país todo, não houve decisão firme para se evitar reuniões, mesmo que menores. Havia um decreto que proibia eventos com mais de 300 pessoas, a gente até brincou na época que não faz o menor sentido achar que uma festa de 290 pessoas é segura no meio de uma pandemia.

Somos quatro infectologistas na cidade. No começo da pandemia, estávamos contratados para ajudar no fluxo da UPA, com pronto-atendimento, e que teoricamente não interna, mas,  nesse casos, pacientes que precisam de internação curta acabam ficando lá. Há outros dois hospitais de apoio. Um é o Hospital Regional, que era para tratamentos mais complexos e de porta fechada, mas que basicamente parou todas as atividades para tratar Covid. Lá também é a referência de UTI para Covid da região. O outro hospital é o Municipal, todo tipo de paciente chega lá – traumas, acidente de moto, atropelamentos, e por aí vai… No começo, o Municipal ficou só com pacientes que não tinham Covid, mas depois do fechamento do hospital de campanha em setembro, acabou recebendo as pessoas com o vírus também. Esse mês, com a piora de janeiro, tivemos que abrir vinte leitos para Covid lá, porque a UPA já não dava conta. A gente espremia, juntava os pontos de oxigênio e colocava cinquenta pessoas lá, mas era um sufoco. No Regional são quarenta leitos de enfermaria e cinquenta de UTIs. Até agora, ainda há uma discussão sobre a reabertura do hospital de campanha, mas, obviamente, os casos não esperaram e subiram antes mesmo de essa discussão chegar ao fim. O nosso maior medo é precisar alocar esses pacientes excedentes e não termos onde. No hospital de campanha tínhamos 120 leitos que não chegaram a lotar, mas, claro, é sempre melhor que sobre espaço.

Outro agravante é que os hospitais particulares daqui não têm leitos de UTI; agora, por medida judicial, estão se organizando para abrir esses leitos. Trabalho aqui há seis anos e, desde sempre, não temos esse suporte da saúde suplementar aqui; quando algum paciente da rede particular passa a necessitar do tratamento intensivo, vem para a rede pública. 

Temos muitas dúvidas com relação à nova cepa, sabemos que está circulando, mas faltam estudos empíricos. Recebemos recentemente um boletim do estado sobre pacientes que foram sequenciados e alguns estavam com a nova cepa, em vários municípios diferentes. Até então a gente achava que a reinfecção acontecia, mas que era raro. Grande parte dos pacientes internados agora são reinfecções, então, de duas, uma: ou a imunidade dura seis, sete meses, que é o tempo da primeira onda pra segunda; ou essa nova variante tem um escape imune a ponto de causar reinfecção. Temos a impressão de que está acontecendo em pacientes mais jovens, mas isso pode estar associado à prática do dia a dia desses pacientes, o ideal é que isso seja visto em estudos científicos de fato.

Quando a situação começou a se agravar novamente, vimos a consequência dos problemas enfrentados no ano passado pela gestão estadual, quando muitos médicos chegaram a ficar quatro meses sem pagamento. O problema não é nem o financeiro, mas o sentimento de desvalorização, a gente trabalhava de domingo a domingo a pedido deles e não tivemos o devido pagamento. Esses médicos, que já tinham experiência com a primeira onda, acabaram sendo contratados em outras cidades do interior. Houve uma dificuldade enorme para fazer uma escala aqui em Santarém. Eu também não estava mais na linha de frente e, sinceramente, nem queria voltar. Preferia ficar só no atendimento das outras coisas de infectologia. Mas, de janeiro pra cá, quase imploraram pra gente e acabamos assumindo novamente as enfermarias do Hospital Regional e também dando suporte às UTIs. 

Na primeira onda enfrentamos a falta de oxigênio. Estávamos no hospital de campanha e não havíamos parado pra pensar na logística do oxigênio, estávamos tendo um consumo cinco vezes maior que o que a estrutura fornecia. Não tínhamos usina ou tanques de oxigênio, então era no cilindro mesmo. Esses cilindros vinham de balsa de Belém para serem trocados. Num final de semana, a balsa atrasou, e a pressão do oxigênio no hospital começou a cair. Tinham cinquenta ou sessenta pacientes internados e começamos a rapar o tacho do oxigênio que sobrou, ficamos tirando de um pro outro, escolhendo os mais graves naquele momento. Por sorte, não tivemos óbitos naquele dia, como vem acontecendo em Manaus. Mas é uma coisa que desgasta muito. Depois montaram uma estrutura melhor de oxigênio, e isso não voltou a acontecer. Além disso, pela dificuldade de escala dos médicos, houve um dia em que o prefeito da cidade, que também é médico, teve que assumir a UPA. Lá não tinha médico pra nada, nem pra sala vermelha – que é onde ficam os pacientes intubados -, e o prefeito achava que ia assumir apenas o atendimento da frente, mas não tinha médico pra nada num lugar que tem de seis a sete médicos. Nós, infectologistas, passávamos uma vez por dia para ver todos os pacientes. Naquele dia era eu que estaria lá, e acabei dando assistência, pegando um plantão de surpresa e saí de lá às onze da noite.

Agora já sabemos como lidar melhor com o vírus. As cidades menores do interior ainda sofrem com esse problema do oxigênio. O tempo todo recebemos pedido de transferência urgente de pacientes porque está acabando o oxigênio. O que mais me impressiona nessa segunda onda é a rapidez na ocupação desses leitos, a velocidade da curva, a aparente demora em abrir leitos – isso também mostra a força dessa variante. Acabaram focando muito na história do tratamento precoce que não serve pra muita coisa, e o mais importante, que é abrir leitos, que não é só uma cama e um lençol, isso parece que perdeu o passo. Ficamos para trás, e a mutação do vírus não para de correr. Tem o aumento acelerado e o nosso retardo, enquanto sistema de saúde, de absorver esses casos. Aqui em Santarém entramos agora em lockdown para ver se há  diminuição nesses casos e se podemos tardar esse novo colapso na saúde. 

Houve um caso específico que resume todos os sentimentos, de um paciente com a mesma idade que a minha, que não tinha comorbidade, apenas sobrepeso. Era o mais quieto dos pacientes e o que estava mais desconfortável para respirar. Na UPA, o levamos para a sala vermelha de intubação enquanto conseguíamos transferência para o leito de UTI. Uma das grandes diferenças da Covid para as outras doenças é que o paciente, mesmo com a saturação baixa ou desconforto respiratório, fica muito lúcido até a intubação, o que acaba acarretando o problema da falta de medicamento para sedação e anestesia. Nas outras doenças, quando vamos intubar o paciente, a própria enfermidade já mexe com alguma coisa no neurológico e conseguimos sem grandes dificuldades. Na hora de intubar o paciente de Covid, ele sabe exatamente o que está acontecendo, está conversando normalmente. Este, como vários outros, pediu muito para que cuidássemos, que sabia que precisava da intubação. No dia seguinte conseguimos levá-lo para a UTI do Hospital Regional, mas depois de uma semana fiquei sabendo que ele faleceu. Essa coisa de conversar com o paciente até o último minuto tem impactado muito as equipes. Não foi muito diferente do que com os outros pacientes, mas esse me doeu muito pela idade, era jovem como eu. A sensação de impotência é muito constante para nós, médicos. O fato é que a gente não aguenta mais ver as pessoas morrendo.

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