Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg em Acossado Foto: Reprodução
Godard e a busca permanente por um novo cinema
Documentário de Guzmán mostra Chile em transformação – mas ainda distante do país real
O Libération desta terça, 13 de setembro, atualizado às 13h50, trazia a notícia de que Jean-Luc Godard recorreu ao suicídio assistido para morrer, “prática autorizada e regulamentada na Suíça”. A matéria citava ainda entrevista dada em 2014, na qual Godard foi inequívoco: “Eu não tenho ansiedade de prosseguir a todo custo. Se eu estiver muito doente, não tenho nenhuma vontade de ser empurrado em uma cadeira de rodas… De forma alguma.”
Morto aos 91 anos, o maior cineasta de sua geração e um dos mais importantes do cinema contemporâneo, “faleceu tranquilamente na sua casa rodeado por pessoas próximas, em Rolle, na Suiça”, segundo a família afirmou ao jornal francês. “Ele não estava doente. Estava simplesmente esgotado.”
Ser Godard e se manter ativo como cineasta durante mais de sessenta anos, de 1955 a 2018, deve mesmo ter sido exaustivo. Em especial no caso dele, autor de vasta filmografia original, comprometida antes de tudo com suas convicções pessoais. Um dos criadores mais influentes do seu tempo, não há quem tenha se iniciado no cinema entre 1960 e 1965, anos em que foram lançados Acossado e O Demônio das Onze Horas, que não tenha sido seu eterno devedor.
A obra posterior de Godard é muito desigual e com frequência exasperante. Ainda assim, é nessas dezenas de filmes que se encontra a inquietação que estimula a busca permanente de um novo cinema.
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Patricio Guzmán, diretor, roteirista e narrador de Mi País Imaginario (2022), reconhece ter chegado tarde para começar a gravação no Chile. Por outro lado, como evitar a sensação de que ele saiu da festa antes da hora ao terminar o documentário com o recém-eleito presidente Gabriel Boric discursando diante da multidão para comemorar a vitória na eleição em dezembro de 2021?
Na voz em off do prólogo, Guzmán diz lembrar muito bem o conselho que recebeu de Chris Marker enquanto preparava A Batalha do Chile (1975-1979): “Quando quiser filmar um incêndio é preciso estar antes no lugar onde se produzirá a primeira chama.” Ao assistir a Mi País Imaginario, após a nova Constituição do país ter sido rejeitada há dez dias por 62% dos cerca de 13 milhões de eleitores, tem-se a impressão que Marker falhou ao não recomendar também nunca interromper a filmagem enquanto o incêndio não tiver sido apagado.
De fato, Guzmán só chegou para filmar Mi País Imaginario um ano depois de 18 de outubro de 2019, dia em que uma explosão social incendiou o Chile. “Dessa vez não pude filmar a primeira chama”, ele admite na narração.
Soube aqui [em Paris, onde Guzmán mora] pelas notícias e por canais chilenos que chegavam, e era muito impressionante. O que aconteceu no metrô foi espetacular [em protesto contra o aumento de 30 pesos da tarifa, manifestantes incendiaram as estações. Das oitenta danificadas, onze foram totalmente destruídas]. Ou seja, é muito raro ver uma cidade inteira ou parte de uma cidade inteira ocupar o metrô para destruí-lo. Era muito violento. E depois de dez dias, ou oito dias mais ou menos, quando houve essa grande manifestação, a reviravolta foi maravilhosa por que a coisa se transformou em festa e uma festa muito organizada, com muita gente, muitos desfiles, com muita consciência do que estava acontecendo. E sem porta-vozes. Ninguém falava por eles. Cada grupo falava por si mesmo. Isso é único. É único na América Latina. É bem bonito, isso. Uma atividade social única.” (Entrevista ao programa Cadena Nacional do canal de televisão por assinatura chileno Vía X, em 17 de agosto de 2022).
Após ter estreado no Festival de Cannes, em maio, Mi País Imaginario foi lançado no Chile em 11 de agosto, só em salas de cinema, 24 dias antes do plebiscito que aprovaria ou rejeitaria o texto da nova constituição do país. Além do circuito comercial, foram programadas exibições gratuitas em regiões onde não há cinemas. Tudo indica que o propósito deliberado era influir, na medida do possível para um documentário, a favor da aprovação do projeto que substituiria o marco legal herdado da ditadura do general Augusto Pinochet, regime do país de 1973 a 1990. Em retrospecto, fica evidente que essa intenção acabou frustrada e as palavras de Guzmán, ditas em Cannes, provaram ser ilusórias: “O que eu estava esperando desde minhas lutas de estudante em 1973 tinha afinal se tornado realidade.”
Quando chega ao Chile para filmar, em outubro de 2020, com um ano de atraso, Guzmán se “encontra com estas velhas amigas, as pedras da Cordilheira. Estão espalhadas [pela rua] e são muitas. Parece que aqui teriam chovido pedras”. Esse trecho da narração acompanha planos de pedras gravadas no entardecer, em contraluz, seguidos de cenas do calçamento da rua sendo quebrado por jovens – “Estão preparando algo” que Guzmán não esperava, ele comenta em off. Muitos usam capuz balaclava e máscara, outros têm panos enrolados na cabeça, alguns estão de capacete e se protegem com escudos metálicos ao se aproximarem para enfrentar os carabineros, a força policial chilena. A câmera está a meia distância quando manifestantes se destacam do grupo e arremessam pedras. Chegam na beira da calçada e vemos policiais paramentados de uniforme esverdeado se aproximando. Mas, antes do confronto direto, aos 4’58” do filme, a cena seguinte é de uma jovem ajustando sua máscara no rosto, de capuz balaclava preto com flores amarelas e vermelhas. Ela passa a descrever os acessórios que usa para se proteger e diz: “Com a revolta, eu floresci. O levante me deu força, me deu vida.”
Para admiradores dos notáveis documentários ensaísticos de Guzmán lançados a partir de 2010 (Nostalgia da Luz; O Botão de Pérola, de 2015; e A Cordilheira dos Sonhos, de 2019), todos voltados para refletir sobre os vestígios e a perpetuação dos crimes da ditadura, surpreende e decepciona o modelo narrativo corriqueiro adotado por Guzmán em Mi País Imaginario – sua própria reflexão feita através da narração é reduzida ao mínimo e ele assume o papel de interlocutor discreto que mais ouve do que fala com um grupo de catorze mulheres. “Não foi algo premeditado”, disse Guzmán na mesma entrevista na televisão citada acima, mas pouco a pouco, à medida que as pessoas chegavam até a câmera víamos que as mulheres tinham um entusiasmo, uma argumentação, umas razões, uma pena, uma alegria, maiores que os outros. Os homens eram bons também, mas fomos deixando-os de lado por que elas eram mais expressivas. Eram mais emocionantes, e achei que era bom deixar o espaço para elas, pronto, e assim ficou o filme.
As entrevistadas, todas a favor, naturalmente, de a nova Constituição ser aprovada, são intercaladas com manifestações que se sucedem entre outubro de 2020 e dezembro de 2021, à medida que a repressão aumenta. O resultado é aproximar Mi País Imaginario de uma reportagem, na qual planos aéreos em excesso, feitos com drone, banalizam ainda mais a forma final.
Sobressaem, em especial, alguns dos comentários de Guzmán feitos na narração – uns são agudos, enquanto em outros ele se ilude, fruto talvez de se sentir tão envolvido nos eventos que testemunha:
“…Parece que estou diante de uma guerra civil. A violência da polícia me lembra os tempos de Pinochet. Os homens armados parecem atuar por impulsos fora de controle, sem liderança, sem marco legal. Na verdade, é insuportável… Eu nunca pensei voltar a viver isso aqui, como o que vivi há mais de quarenta anos. A repressão é tão violenta que provoca raiva e desespero. Me inquieta o final desta luta. Quem serão os perdedores e quem serão os vencedores?”
“Agora se vota o fim da constituição de Pinochet para escrever uma nova. Sob pressão popular, o governo e os partidos não tiveram outra alternativa a não ser organizar este plebiscito [realizado em 25 de outubro de 2020 para aprovar ou recusar que uma nova constituição fosse redigida, assim como que tipo de órgão deveria redigir a nova Carta Magna]. Nesse mesmo dia o resultado é conhecido – cerca de 80% quer uma assembleia constituinte para redigir a nova lei. É a vitória da explosão social.”
Proclamação final que veio a se revelar prematura, conforme demonstrado em 4 de setembro deste ano quando o novo texto, afinal redigido, foi rejeitado por 62% dos eleitores. A eleição de Gabriel Boric, porém, havia fortalecido mais ainda a esperança de Guzmán:
“Nós também acreditávamos nas mudanças permanentes que Salvador Allende iniciou. E estávamos felizes, mas o golpe de Estado [de 1973] nos destroçou as vidas e os sonhos. Agora, há uma nova esperança. Gosto de acreditar que o sonho se realize e que o país que imaginamos se torne real…”.
E pouco adiante, acompanhando imagens de destroços deixados pela manifestação:
“Tudo me indica que chegamos ao final de uma época. Sinto que começam novos tempos. Por sua vez, neste momento o Chile vota em um novo presidente da República. Ganha o candidato Gabriel Boric. Ganha com 4,6 milhões de votos contra o candidato da extrema direita. Triunfa com o apoio maciço da juventude, das mulheres e de todos os chilenos que desejam a mudança… Começo a ver um novo país imaginário.”
Ao rejeitar o texto da nova constituição, em 4 de setembro, o país real demonstrou estar distante do país imaginário de Guzmán, mas ele já havia voltado para casa levando sua câmera.
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Quero crer que Guzmán esteja de luto, como Ariel Dorfman confessou que está no The Guardian em 6 de setembro de 2022:
Como muitos de meus compatriotas, eu acreditava que a nova constituição, nascida em resposta a uma revolta popular há três anos, seria ratificada… Embora tenhamos perdido uma oportunidade única de finalmente enterrar a constituição autoritária de Pinochet – que tem sido a facilitadora das políticas econômicas neoliberais do Chile e, portanto, de sua crise atual – me sinto confortado pela certeza de que uma nova constituição será adotada. O referendo de domingo não foi o fim do caminho, mas mais um passo vacilante na busca por justiça… Meu único conselho para meus compatriotas na luta é lembrar as palavras que ouvi uma vez do grande poeta nicaraguense Ernesto Cardenal: “As constituições de amanhã serão escritas com os poemas de amor de hoje.”
Talvez, afinal, o amor prevaleça e eu pare de lamentar.
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Destaque (IX)
“Eu creio que o processo constituinte é uma oportunidade de se abrir para a incerteza. E a incerteza naturalmente gera nervosismo e temor. Mas a incerteza é necessária para dar legitimidade à política. Por que onde não há incerteza, não há democracia.” Claudia Heiss, professora e cientista política entrevistada em Mi País Imaginario. Guzmán retoma o tema da incerteza, na mesma entrevista de 11 de agosto citada acima: “O principal é que há uma incerteza agora. Há um cenário que se move e você mesmo não sabe se os elementos que está levando em conta são os reais ou não. Há muito impressionismo, na verdade. Há muitos boletins, muitas notícias, muitas pessoas entrevistadas que não são tão importantes, mas se repetem tanto que você pensa que todo mundo pensa assim. E esse não é o caso. Eu creio que estamos desconectados da verdadeira realidade e que há um montão de gente, uma enorme quantidade de pessoas que estão de acordo com o movimento inicial, digamos. É preciso mudar as coisas porque não se pode continuar em um país que tem uma constituição antiga… que tem um governo que não corresponde às necessidades que as pessoas têm. Há um desejo de mudança, de fazer uma revolução pacífica. E é o que vai ocorrer, sem dúvida.”
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