Evaristo Miranda discursando em um evento da Embrapa, em agosto de 2019 Foto: Robinson Cipriano/Embrapa
Ideólogo de Bolsonaro é denunciado por cientistas
Doze pesquisadores publicam artigo na revista Biological Conservation desmentindo teses de Evaristo de Miranda usadas para embasar políticas antiambientais do governo
Doze cientistas brasileiros denunciaram o grupo de pesquisa do engenheiro agrônomo Evaristo de Miranda, da Embrapa, por fabricar falsas controvérsias com o intuito de afrouxar as leis e normas para proteção do meio ambiente no Brasil. Num artigo que será publicado na edição de fevereiro da revista especializada Biological Conservation, os autores analisam o que eles descreveram como um “ataque às políticas ambientais estimulado por um esforço velado e sistemático de um pequeno grupo de negacionistas para desinformar os tomadores de decisão e a sociedade”.
Evaristo Eduardo de Miranda é o ideólogo da política ambiental de Jair Bolsonaro. Os dados gerados por ele e sua equipe na Embrapa Territorial são frequentemente citados pelo presidente e por seus ministros para defender que o Brasil é o campeão em conservação ambiental e que tem um excesso de áreas protegidas que prejudicam o crescimento do agronegócio nacional.
Miranda foi perfilado pela piauí em março de 2021, numa reportagem intitulada O fabulador oculto. É pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, a Embrapa. Até o começo deste ano, era lotado na Embrapa Territorial, em Campinas, uma unidade da empresa que ele criou em 1989 e dirigiu em três ocasiões. Há poucas semanas, contudo, tornou-se assessor da presidência da empresa. A Embrapa Territorial não quis se pronunciar sobre o caso; Miranda não respondeu aos pedidos de entrevista feitos pela piauí.
De acordo com o artigo da Biological Conservation, a que a piauí teve acesso, muitas das alegações de Miranda são fabricadas e não têm lastro na realidade. Ainda assim, elas são populares nas redes sociais e entre políticos, e com isso contribuem para o desmantelamento das políticas públicas de conservação ambiental. O grupo encabeçado por Raoni Rajão, professor de gestão ambiental na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), alega que as falsas controvérsias promovidas por Miranda levaram à diminuição drástica do número de multas ambientais e ao desmonte das políticas de controle do desmatamento e das queimadas na Amazônia pelo governo Bolsonaro.
Mas a influência de Miranda no afrouxamento de normas ambientais vem de muito antes, conforme mostra o artigo. Nos anos 1990, estudos feitos por sua equipe contribuíram para retardar por duas décadas a proibição da queima da palha da cana-de-açúcar em São Paulo. Nas discussões sobre o novo Código Florestal, ele usou números artificialmente inflados para calcular a área de proteção em torno dos rios que não poderia ser usada para o agronegócio, conforme mostraram os pesquisadores. Seus números eram má ciência, mas tiveram peso no debate que levou à aprovação do código, em 2012, com a anistia de 58% de todo o desmatamento feito ilegalmente até 2008.
O estudo brasileiro repertoriou as estratégias usadas por Miranda e mapeou sua influência em Brasília. Os autores notaram similaridades entre o modus operandi do grupo da Embrapa e aquele usado por cientistas que estimulam o negacionismo climático e outras falsas controvérsias ambientais. Eles desconsideram, por exemplo, os consensos estabelecidos pelos especialistas e fazem uso indevido de suas credenciais científicas, valendo-se do prestígio da Embrapa para conferir autoridade a argumentos sem respaldo da ciência.
Rajão ressaltou que a denúncia do grupo de Miranda não equivale a uma crítica institucional à Embrapa. Lembrou o caso de um professor da Universidade de São Paulo (USP) que ganhou notoriedade como negacionista da crise climática depois de uma entrevista a um programa de tevê, mesmo sem ter qualquer produção científica relevante sobre o tema. “Não é porque alguém vem da USP que tudo que ele escreve é automaticamente verdade”, disse o pesquisador à piauí.
O grupo de Rajão passou um pente-fino no currículo de Evaristo de Miranda e constatou que, dos 83 artigos de sua autoria que ele listava em fevereiro de 2021, apenas 17 – ou 20% do total – tinham sido publicados em periódicos com revisão por pares, processo que funciona como o controle de qualidade do conhecimento científico. Além disso, os autores constataram que nenhuma das alegações que embasam as falsas controvérsias alimentadas por Miranda foi submetida à avaliação de outros especialistas.
Por isso mesmo, os cientistas brasileiros se empenharam em publicar seu artigo numa revista com revisão por pares. Rajão disse que o trabalho poderia ter sido divulgado muito antes na forma de relatório ou nota técnica. “Mas aí estaríamos sendo contraditórios com a nossa própria afirmação sobre a importância do processo cientifico”, afirmou o pesquisador.
O texto sai após um processo de revisão que durou mais de onze meses entre a primeira versão e aquela publicada após a avaliação do editor e dos revisores. O grupo de autores inclui nomes destacados das ciências ambientais no Brasil, como o climatologista Carlos Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), e a ecóloga Mercedes Bustamante, da Universidade de Brasília (UnB).
O artigo chama a atenção pelo tom contundente, atípico numa publicação científica. E por se enquadrar num gênero incomum na literatura: é praticamente um exposed acadêmico, construído com a finalidade de destrinchar e refutar as falsas alegações por trás das controvérsias alimentadas por um grupo de pesquisa.
De acordo com Rajão, os cientistas e as revistas especializadas preferiam manter certa “distância higiênica” das notícias falsas e controvérsias fabricadas. “Só que os aventureiros estão tendo um peso maior nas decisões públicas do que as equipes enormes de cientistas que trabalham em universidades estabelecidas”, lamentou. Fazer a denúncia seguindo todos os ritos da publicação científica é uma nova forma de atacar o problema.
Rajão disse que, normalmente, os cientistas que atuam na fronteira não entendem que é responsabilidade sua cuidar da retaguarda do conhecimento científico. “Só que essa retaguarda está sendo corroída”, argumentou. “Nós temos que nos responsabilizar por ela e buscar entender o que está acontecendo com a ciência.”
O artigo brasileiro traz ainda algumas recomendações sobre como os cientistas e a sociedade deveriam lidar com as controvérsias fabricadas. Para os autores, o caminho para imunizar o público contra as notícias falsas passa por um melhor entendimento de como o conhecimento científico é construído e validado. Para tanto, os cientistas deveriam se empenhar em mostrar como seus dados são produzidos a partir de observações sistematizadas e acumuladas, tendo como base uma infraestrutura de conhecimento que envolve uma grande coletividade de atores.
“Temos que deixar claro para as pessoas que a ciência é uma prática que não é só feita por indivíduos, mas por coletivos, que tem controvérsias e incertezas reais, que tem erros e acertos, mais acertos do que erros”, disse Rajão. “Dessa forma talvez a sociedade e os tomadores de decisão possam criar filtros e antídotos contra esse tipo de incursão em políticas públicas com falsas controvérsias.”
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Versão anterior desta reportagem informava que o artigo escrito pelos doze cientistas havia sido publicado nesta terça-feira (25) pela revista Biological Conservation. O artigo, no entanto, só será publicado na edição de fevereiro da revista.
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