Num cartão postal antigo, crianças brincam nas águas do Jardim de Alah, com o Corcovado ao fundo Foto: Reprodução
A barafunda milionária do Jardim de Alah
Um consórcio de empresas quer transformar o jardim, patrimônio tombado do Rio, em um shopping a céu aberto. Moradores e o Ministério Público tentam impedi-lo
“O Jardim de Alah, que liga a Lagoa Rodrigo de Freitas à praia do Leblon, é um dos mais belos lugares do Rio de Janeiro”, diz a narradora. Ao fundo, ouve-se uma trilha sonora relaxante, enquanto a câmera enquadra o mar, as árvores e as montanhas. Assim começa Jardim de Alah, filme de David Neves lançado em 1989 e estrelado por nomes de peso da dramaturgia brasileira, entre eles Raul Cortez, Imara Reis e Grande Otelo. A trama – “uma divertida comédia carioca”, segundo o cartaz de divulgação – se passa nas imediações do jardim, marco urbanístico que separa os bairros de Ipanema e Leblon. Prossegue a narradora: “Tem caramanchões, coretos, pérgolas, quiosques, gente sonhadora…”
Naquela época, o jardim ainda fazia jus ao nome divino com que fora batizado, em 1938. O então prefeito do Rio, Henrique Dodsworth, quis homenagear outro filme chamado O Jardim de Alá, esse de 1936, uma das primeiras películas coloridas do cinema, estrelado pela atriz alemã Marlene Dietrich. Talvez ele visse no novo parque, projetado em estilo art déco e composto por quatro praças, alguma semelhança com os cabelos loiros e os olhos azuis de Dietrich, que, graças ao Technicolor usado no filme, o mundo conhecia pela primeira vez.
O jardim cerca um canal que, desde 1922, liga as águas salobras da Lagoa ao Oceano Atlântico. Por décadas, foi cenário de momentos de lazer da alta classe média carioca, com direito a passeios de gôndola. Em 2000, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) tombou a Lagoa e o seu entorno como patrimônio cultural brasileiro, o que incluía o jardim. No ano seguinte, o então prefeito Cesar Maia assinou o tombamento do jardim como patrimônio histórico municipal. As árvores e o canal pareciam estar protegidos.
A realidade, porém, provou o contrário. Nos anos seguintes, o Jardim de Alah se degradou continuamente. Com o início das obras da linha 4 do metrô, em 2010, a prefeitura autorizou que parte do jardim fosse usado como depósito de material e maquinário. Terminadas as obras, ele passou a ser ocupado por caminhões e máquinas da Companhia Municipal de Limpeza Urbana (Comlurb). As grades das praças enferrujaram – algumas desabaram –, os coretos, quiosques e caramanchões sumiram, e o que antes era um jardim aprazível virou um lugar abandonado, habitado por pessoas em situação de rua e usuários de drogas.
Por conta do estrago causado pelas obras do metrô, a prefeitura foi condenada na Justiça em 2018 a remover os entulhos e restaurar o Jardim de Alah. O então prefeito Marcelo Crivella (Republicanos-RJ) optou, então, por abrir um processo de concessão do jardim à iniciativa privada. A empresa que assumisse o jardim ficaria responsável por sua revitalização – desde que não houvesse descaracterização do local. “Os elementos originais do Jardim de Alah deverão ser restaurados e/ou reconstruídos”, dizia o projeto, divulgado em 2019. Mas Crivella não se reelegeu no ano seguinte, e a ideia acabou engavetada.
Hoje, sob a gestão do prefeito Eduardo Paes (PSD-RJ), um processo semelhante está em curso. A diferença é que, dessa vez, não há intenção de restaurar ou reconstruir os elementos originais do jardim. A paisagem arborizada e bucólica dará lugar a um shopping center a céu aberto, composto de 56 lojas, lounge, palco para apresentações, praça de alimentação e um estacionamento com 228 vagas.
A novidade surgiu em 23 de dezembro de 2021. Naquele dia, o consórcio Rio+Verde submeteu à Prefeitura do Rio um documento chamado Manifestação de Interesse Privado, conhecido no mundo da gestão pública pela sigla MIP. Previsto em lei, o MIP é uma autorização que empresas pedem ao Estado para elaborar estudos técnicos a fim de embasar um determinado projeto. Neste caso, o projeto era a concessão do Jardim de Alah.
A ideia antecede Crivella. Segundo o arquiteto Miguel Antonio Pinto Guimarães, envolvido no projeto, a revitalização do jardim pela iniciativa privada já era discutida em 2015, durante os preparativos para as Olimpíadas do ano seguinte, no Rio. “Não estávamos a serviço de empresários, especuladores do mercado imobiliário, do capital… Todas as decisões, todos os conceitos, todos os aspectos do projeto, que pouco mudaram de lá pra cá, estavam a serviço da urbanidade, estavam atendendo ao desenho da melhor cidade”, ele explica.
O consórcio Rio+Verde é formado por quatro empresas: Opy Participações, Accioly Participações, DC Set Group e PPR/Pepira Empreendimentos e Participações. Por trás delas estão “empresários com verdadeiro espírito carioca”, diz o site do empreendimento.
Guimarães, que é genro do presidente do Grupo Globo, João Roberto Marinho, participa do negócio porque é sócio da Opy. Seus colegas também são figuras influentes no Rio. À frente da Accioly Participações está Alexandre Accioly Rocha, habitué de colunas sociais que ganhou fama pelo sucesso nos negócios e pelos rolos na Justiça. É réu em uma ação na Justiça Federal, acusado de construir irregularmente um muro de arrimo, um deck e um píer sobre um costão rochoso em sua casa à beira-mar, numa área de proteção ambiental em Angra dos Reis, Litoral Sul fluminense. Amigo do deputado federal Aécio Neves (PSDB-MG), Accioly foi denunciado pela Procuradoria-Geral da República por supostamente ter emprestado a ele uma conta bancária no exterior, destinada a receber propinas. A denúncia foi rejeitada por unanimidade no Supremo Tribunal Federal em 2022.
A DC Set pertence aos empresários Jorge Sirena Pereira – conhecido como Dody – e Marcantonio Chies. A empresa gerenciou por trinta anos a carreira do cantor Roberto Carlos (por esse fato notável, Dody entrou no radar de Sergio Moro, que o contratou como marqueteiro em sua breve campanha presidencial). A PPR, por sua vez, pertence a Célio Pinto de Almeida, empresário que, ao lado de Accioly, fazia parte da “confraria do vinho”, grupo de amigos do então governador Sérgio Cabral que se reunia para degustar vinhos.
À piauí, Guimarães diz que a ideia de pedir a concessão do Jardim de Alah surgiu depois de uma conversa casual com Accioly, em 2021. “Estávamos discutindo em minha casa o projeto de restauração do Teatro do Hotel Nacional [no bairro de São Conrado]. Quando [ele] bateu os olhos no nosso projeto para o Jardim de Alah, se encantou… ‘Vamos fazer!’”
Em janeiro de 2022, um mês depois de o pedido ser formalizado, Eduardo Paes autorizou os estudos sobre a concessão do Jardim de Alah. Publicada em Diário Oficial, a decisão permitiu que outras empresas também apresentassem propostas. Elas tinham prazo de sessenta dias para entregar os estudos preliminares, mas já em 7 de março Paes autorizou a abertura da licitação, prevendo a concessão do jardim à iniciativa privada por 35 anos, com investimento total previsto de 112,5 milhões de reais em melhorias no parque (a Rio+Verde pretende construir, além do shopping, uma ciclovia, um ginásio e uma escola, entre outras benfeitorias).
Três empresas se inscreveram na licitação: o consórcio Rio+Verde, a Magus Investimentos e a Duchamp Administradora de Centros Comerciais. Em 18 de agosto, saiu o resultado: vitória para Guimarães e seus parceiros. A concessão foi homologada pela prefeitura.
Dias depois do anúncio do resultado, o Ministério Público ingressou com uma ação na Justiça pedindo a suspensão da licitação. Segundo a promotora Daniela Abritta Freitas, havia uma série de ilegalidades na concessão do jardim: 1) A área é tombada como patrimônio histórico, o que impede sua descaracterização; 2) A lei orgânica da capital proíbe a concessão de espaços públicos em sua integralidade, com exceção de empreendimentos pontuais; 3) O estatuto das cidades exige aprovação do poder Legislativo para projetos que desafetam grandes áreas públicas urbanas como o Jardim de Alah, o que não ocorreu.
Os argumentos da promotora foram rejeitados pela juíza da 6ª Vara da Fazenda Pública do Rio, Regina Lúcia Chuquer de Almeida Costa de Castro Lima. A magistrada argumentou que, como o projeto ainda seria submetido ao Instituto Rio Patrimônio da Humanidade (IRPH), órgão que gere os patrimônios da cidade do Rio, não havia motivo para preocupação. A submissão ao IRPH, escreveu Castro Lima, “certamente garante a integridade do patrimônio histórico composto pelos quatro parques do local, bem como suas obras de arte”. Ela não comentou a lei orgânica do município e o estatuto das cidades.
O projeto do shopping a céu aberto provocou reação também de moradores do entorno. Em junho – antes, portanto, do resultado ser anunciado – três deles ingressaram juntos com uma ação popular na Justiça, pedindo que a licitação fosse suspensa. O processo caiu nas mãos da juíza titular da 8ª Vara da Fazenda Pública do Rio, Alessandra Cristina Tufvesson Peixoto, prima do coordenador de Diversidade Sexual da gestão Paes, Carlos Tufvesson. Ela publicou uma liminar suspendendo a licitação, mas, semanas depois, mudou de ideia. “A pretensão [dos moradores] esbarra no princípio inafastável da independência de poderes, não cabendo ao poder Judiciário imiscuir-se na competência do poder Executivo sem real ilegalidade ou abuso de poder”, justificou a juíza, ao reverter a própria decisão.
Os moradores recorreram ao Tribunal de Justiça. Dos cinco desembargadores da 6ª Câmara de Direito Público, onde corre o processo, dois votaram a favor de suspender a licitação, um contra. O julgamento seguia inconcluso até a publicação desta reportagem.
“Se o Jardim de Alah virou um bode na sala, foi por culpa do poder público, que abandonou aquele espaço e agora usa esse mesmo abandono como argumento para privatizar o jardim”, reclama o advogado Leonardo Orsini de Castro Amarante, que atua em defesa da Associação de Moradores e Defensores do Jardim de Alah. Em agosto, eles organizaram uma manifestação e angariaram apoio de artistas como Evandro Mesquita e Maitê Proença. “Queremos ser ouvidos!”, dizia um cartaz. “Quem ganha com isso???”, perguntava outro.
As críticas não se restringem à descaracterização do jardim. Os moradores reclamam do barulho e do lixo que um shopping pode trazer à região. Mas apontam, além disso, problemas técnicos na licitação. Inicialmente, o edital previa que as empresas deveriam pagar à prefeitura uma taxa equivalente a 6% da receita bruta anual gerada pelo empreendimento. Ao longo da tramitação do projeto, no entanto, a taxa baixou para 3% e acabou, no fim, reduzida a apenas 2%. O edital também não prevê cobrança do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) das empresas, o que contraria uma decisão de 2017 do STF que exige o pagamento desse imposto em concessões públicas. “Milhões de reais deixarão de ser arrecadados para os cofres públicos durante 35 anos”, lamenta Amarante.
Em março deste ano, apesar do imbróglio na Justiça, o consórcio Rio+Verde assumiu formalmente o Jardim de Alah. As obras estão em fase de licenciamento, segundo a prefeitura. O local já foi cercado por tapumes, e as faixas de protesto da associação de moradores foram retiradas dali. “São 35 anos de responsabilidade. Além do investimento de 110 milhões de reais, que será feito para construir a infraestrutura, são mais 20 milhões de reais a cada ano. Vai ter segurança privada, manutenção dos jardins e do espaço, para que seja sempre muito bem cuidado, muito utilizado”, disse Alexandre Accioly ao jornal O Globo.
Como o Jardim de Alah é tombado, o consórcio precisou enfrentar uma última etapa, no fim de 2023: a aprovação do projeto pelo Conselho Municipal de Proteção ao Patrimônio Cultural. Uma vitória acachapante. Dos quatro conselheiros, apenas um, Claudia Alves de Oliveira, votou contra. “A variedade de bens protegidos e de intervenções propostas devem, obrigatoriamente, observar um único comando comum, a preservação das características originais do bem”, argumentou Oliveira. “Essa regra de ouro não pode ceder, sob pena de desmoralização do instrumento de tombamento.” O projeto ainda será analisado pelo Iphan.
Para Guimarães, arquiteto e um dos sócios da Opy, o projeto é compatível com as leis de proteção ao patrimônio histórico. Segundo ele, o jardim original de 1938 foi, já na largada, uma ruptura – “uma negação da paisagem original”, que era de restinga. “O jardim em que não se pode pisar na grama, não se pode brincar nos canteiros, que é feito para ser trottoir com a sua senhora de sombrinha, nunca cumprirá a sua função social de um parque urbano democrático”, argumenta Guimarães. “Faz sentido gastar dinheiro público na reconstrução de um bem com tantas falhas projetuais e que não será capaz de atrair vitalidade, como já se provou ao longo das últimas décadas, porque carece justamente dos inúmeros atrativos propostos por nosso projeto, como a atividade comercial, por exemplo?”
Ele compara o jardim ao Museu Nacional, no Rio, e à catedral de Notre-Dame, em Paris, ambos destruídos por incêndios. “Já que era necessário reconstruir, isso deveria ser feito de acordo com a configuração antiga ou seguindo um novo e disruptivo projeto? Vale lembrar que a gestão de patrimônio histórico também foi capaz de gestos de ousadia absolutamente bem-sucedidos, como a implantação da Pyramide du Louvre em Paris, bancada pelo ex-presidente François Mitterand, apesar do protesto inflamado do conservadorismo francês e que hoje talvez seja o melhor exemplo do bom diálogo entre o patrimônio e a contemporaneidade. Será que esse não é o melhor caminho para o Jardim de Alah?”
A piauí enviou à Prefeitura do Rio as seguintes questões: 1) Por que o projeto de revitalização de 2019 foi abandonado pela gestão Paes?; 2) Por que houve redução no percentual da receita bruta do empreendimento que será repassado aos cofres públicos?; 3) Por que o edital não previu a cobrança de IPTU do consórcio?; 4) O projeto do Rio+Verde não desrespeita o tombamento do jardim?; 5) Por que a concessão da área não foi submetida à aprovação da Câmara de Vereadores, conforme exige o estatuto das cidades?
Em uma nota sucinta enviada na segunda-feira (15), a Companhia Carioca de Parcerias e Investimentos (CCPar), empresa pública responsável por concessões à iniciativa privada, afirmou apenas que “não há qualquer descaracterização do local, nem isenção de impostos para a concessionária” e que “o projeto obedecerá rigorosamente todas as regras urbanísticas, ambientais e de preservação do patrimônio”. “Reiteramos que o Jardim de Alah continuará sendo uma praça pública, de uso gratuito garantido para a população com aumento de 30% de área verde e mais de duzentas novas árvores plantadas”, concluiu.
A novela ainda não acabou. No começo de abril, o Ministério Público ingressou com uma nova ação na Justiça pedindo a anulação do contrato de concessão. O pedido se baseia em um laudo produzido pelo Grupo de Apoio Técnico Especializado (Gate), do próprio MP, que analisou as implicações ambientais do projeto. As obras do consórcio Rio+Verde, segundo o laudo, implicam “risco de dano irreversível e permanente ao jardim histórico tombado”.
Na ação, o promotor Carlos Frederico Saturnino aproveitou para criticar a cobertura jornalística do caso – repleta, segundo ele, de “desinformação propagandística, por vezes veiculada sob a enganosa aparência de peças jornalísticas”. Saturnino apelou à importância da memória coletiva. “A ação civil pública do Jardim de Alah não é apenas sobre o jardim histórico”, escreveu. “Também é sobre a confiança no estado de direito, sobre a necessidade de preservação da nossa história e cultura. É sobre a crença fundamental de que todos são iguais perante as exigências da lei, desde os mais humildes indivíduos que seguem todas as regras vigentes, mesmo aquelas que não fazem sentido, até aqueles que não gostariam de ser iguais, por suas relações privilegiadas e poder político-econômico desigual.”
Nessa segunda-feira (15), a juíza Regina de Castro Lima – a mesma que havia rejeitado ação anterior do Ministério Público – agendou uma audiência para o próximo dia 25. Na ocasião, o consórcio Rio+Verde deverá esclarecer em detalhes as alterações que propõe fazer no Jardim de Alah.
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