Ilustração de Carvall
Lei fura fila da vacina
Projeto que estimula vacinação privada divide o país entre quem tem direito e quem tem “mais direito”
Menos de um mês depois de entrar em vigor, o artigo 2º da lei 14.125/2021 já se encontra ameaçado. Foi declarado inconstitucional diversas vezes por um mesmo juiz federal de Brasília e é alvo, agora, de tentativa de reforma no Congresso. O artigo determina que a compra e utilização de vacinas pela iniciativa privada está sujeita a duas condições principais: que todas as doses adquiridas pelo setor privado sejam “integralmente doadas ao Sistema Único de Saúde (SUS)” até o término da vacinação, contra a Covid-19, dos grupos prioritários previstos no Programa Nacional de Imunizações; e que, após isso, pelo menos 50% (cinquenta por cento) das doses sejam obrigatoriamente doadas ao SUS.
A questão é sem dúvida controversa, como se viu pelo acalorado debate público que gerou. Mas o Congresso brasileiro, em sua função de arbitrar os interesses muitas vezes contraditórios dos diversos grupos sociais, tomou, com a lei 14.125, uma decisão bastante razoável e equilibrada. Nem a proibição total da participação privada nem a liberação geral, que acabaria por criar não apenas duas filas diversas para a vacinação, mas verdadeira competição entre ambas, num processo de canibalização vacinal único e talvez inédito no mundo – um cenário ao mesmo tempo iníquo e ineficiente.
Mas na política brasileira, como se sabe, nada é muito permanente. Numa coalizão de interesses que une empresários e políticos – e tem o apoio do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) –, projeto de lei apresentado pelo deputado Hildo Rocha (MDB-MA) pretende não só derrubar a proibição temporária de aquisição e uso privado da vacina que hoje consta da lei 14.125, mas também conferir isenção fiscal para as empresas que a importarem. Um verdadeiro cavalo de pau legislativo em menos de um mês.
A “justificativa” apresentada por Rocha ao projeto, de meros cinco parágrafos, se ampara na “exemplar decisão judicial” do juiz brasiliense que declarou a inconstitucionalidade do artigo segundo da lei. A decisão do juiz tem 21 páginas, mas não é fácil encontrar nela argumentos que possam embasar a drástica reversão. Há, isto sim, muito da retórica burlesca da literatura judicial brasileira. Quem lê esses textos por dever profissional já se acostumou: a lei seria “verdadeira tentativa de usurpação inconstitucional da propriedade privada” e um “retrocesso na proteção do direito fundamental à saúde e à vida”, tornando-os “letra morta”, lê-se na decisão. Um amontoado de postulações hiperbólicas, nenhuma construção argumentativa.
Ao final, o que resta é o senso comum de que “quanto mais vacina melhor” e de que o ingresso do setor privado ampliaria a oferta sem causar nenhum dano: “precisamos colocar no campo de batalha toda a nossa força, todos os nossos ‘soldados’ que estão aguardando a ‘convocação'”, brada o juiz heroico. “Não se busca a quebra da fila de vacinação, deixando os mais necessitados ao relento. O que se pretende é uma atuação conjunta, de mãos dadas com o poder público…”, adiciona o deputado solidário.
E nessa canoa embarcam certos empresários “patriotas”, todos, é claro, em busca apenas da proteção do direito à saúde garantido pela Constituição, para não mencionar aqueles que simplesmente tentam burlar a lei tomando vacina às escondidas.
O que não se encontra em nenhum manifesto dessa comovente campanha cívica é qualquer discussão sobre a questão jurídica fundamental: o que significa garantir “acesso igualitário e universal” à saúde, como determina o artigo 196 da Constituição, num contexto de emergência sanitária e de escassez de vacinas?
A vacinação privada nesse momento crucial da pandemia atrapalharia o Programa Nacional de Imunizações, criando competição entre empresas e estado por vacinas, ainda maior fragmentação na sua aplicação e maior dificuldade de controle sobre quem já está imunizado. Além disso, a vacinação privada dividiria o país entre dois tipos de brasileiros: os que esperam a sua vez na fila de prioridades, e os que recebem a vacina pelo simples critério da capacidade econômica do patrão – independentemente de idade, comorbidade, vulnerabilidade etc.
Seria essa uma leitura adequada do direito à saúde reconhecido em nossa Constituição? A resposta parece clara, a não ser que adotemos uma versão orwelliana do artigo 196: “Todos têm direito igual à saúde, mas alguns têm direito à saúde mais igual do que os outros.”
Já é exatamente essa, é claro, a situação que vivemos no Brasil pandêmico e pré-pandêmico. A coexistência de sistemas de saúde público e privado com recursos díspares, amparada pelo artigo 199 da Constituição, premiada por diversos incentivos fiscais e perpetuada pelo histórico subfinanciamento do SUS, já produz, sem dúvida, cidadãos de duas classes, com acesso extremamente desigual à saúde. E como mostram tragicamente os dados, a Covid-19 mata desproporcionalmente os mais pobres e a população negra, dependentes do sistema público de saúde.
Mas isso não é motivo para se agravar ainda mais o problema, muito menos sob o pretexto hipócrita de se garantir o direito à saúde. A lei 14.125 é um caso raro de respeito ao princípio constitucional do acesso igualitário e universal tão vilipendiado no país. Se em tempos “normais” nossas sensibilidades parecem já estar profundamente anestesiadas, que pelo menos durante a mais grave pandemia dos últimos cem anos sejamos capazes de mostrar nosso lado mais solidário.
Professor de direito público e codiretor do Transnational Law Institute - King’s College London, é autor de Health as a Human Right (Cambridge University Press, 2021); Global Fellow da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas – SP
Professor de direito econômico da Faculdade de Direito da USP
Professor de direito constitucional da Faculdade de Direito da USP e colunista da Folha de S.Paulo
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