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    O manual da PM do Paraná reconhece que a técnica do mata-leão "tornou-se polêmica", mas a recomenda para “promover o impedimento da oxigenação cerebral" de quem for detido. O texto não alerta para o risco letal do golpe Fotos: Reprodução/Polícia Militar do Paraná

anais da segurança pública

O manual da truculência policial

Em ao menos sete estados, cartilhas da Polícia Militar recomendam golpes que provocam asfixia. Entre eles, o mata-leão e o joelho no pescoço, que matou George Floyd

Leandro Aguiar, de Belo Horizonte | 14 nov 2024_14h51
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Derek Chauvin, o policial que matou George Floyd, pressionou o joelho sobre seu pescoço durante 9 minutos e 29 segundos. Obstruiu suas vias aéreas, impossibilitando a respiração e causando sua asfixia. A brutalidade da cena, filmada em Minneapolis em 25 de maio de 2020, fez irromper protestos contra o racismo policial nos Estados Unidos e em vários países. Nos tribunais, os advogados de Chauvin alegaram que ele não infringiu a lei: o golpe do joelho sobre o pescoço, afinal, estava no manual de operações da polícia de Minneapolis. Era previsto como uma medida de contenção em situações excepcionais.

Seguiu-se uma discussão minuciosa. Em 2022, o júri concluiu que, embora o golpe fosse autorizado, os policiais deveriam ter discernimento ao aplicá-lo. Quem dizia isso, aliás, era o próprio manual, que instruía os policiais a evitarem a asfixia do preso. Para isso, deveriam virá-lo de lado, em vez de mantê-lo com a barriga para baixo, posição em que Floyd morreu. Chauvin, por fim, foi condenado a 22 anos e meio de prisão. Em resposta aos protestos, a polícia de Minneapolis e de outros outros 32 estados americanos, de um total de 65, reformaram seus manuais de modo a banir ou restringir as técnicas de estrangulamento.

No Brasil, estamos longe disso. As polícias militares de ao menos sete estados – Bahia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraná e Rio de Janeiro – ainda recomendam esse tipo de golpe, como o mata-leão e o uso do joelho sobre as costas e o pescoço da pessoa que se quer imobilizar. Os documentos foram obtidos pela piauí por meio da Lei de Acesso à Informação. Os demais estados não atenderam ao pedido, com justificativas diversas. O governo de São Paulo, que depois de receber críticas revogou, em julho de 2020, um manual que continha técnicas asfixiantes, alegou que a divulgação da nova cartilha da PM poderia “pôr em risco a vida, a segurança ou a saúde da população”.

A maioria dos manuais brasileiros, diferentemente daquele que vigorava em Minneapolis, não alerta os policiais para o risco de asfixia. Em Mato Grosso, a cartilha intitulada Procedimento Operacional Padrão, publicada em 2023, orienta a tropa a “aplicar técnicas de condução ao solo” quando houver “uma tentativa de reação do indivíduo ora infrator da lei”. A técnica, ilustrada passo a passo, ensina o policial a algemar alguém de bruços, posicionando um dos joelhos em sua lombar e o outro na região cervical. A depender da força aplicada na região cervical (que abrange a nuca e o pescoço) e de sua duração, o fluxo respiratório e sanguíneo da pessoa pode ser obstruído de forma letal. O manual, contudo, não faz menção a isso nem estipula tempo máximo para a aplicação do golpe.

O Caderno Doutrinário de Defesa Pessoal, em vigor na PM de Minas, apresenta o mata-leão como uma “técnica de condução de presos”. “Caso o conduzido esteja muito resistente”, diz o texto, “a mão que está em apoio no ombro do suspeito se desloca em direção ao ombro oposto, envolvendo o pescoço, fornecendo, assim, de maneira segura, uma opção de estrangulamento ‘mata-leão’.” O caderno também ilustra, com várias fotos, a posição do joelho sobre o pescoço. Novamente, nada se diz sobre o risco de morte se o golpe for aplicado de forma imprudente, com força exagerada ou por tempo excessivo.

Isso se repete nos manuais da PM da Bahia, de Mato Grosso do Sul, do Pará e do Paraná. No caso da polícia paranaense, o texto diz que a técnica do mata-leão “tornou-se polêmica por não ser abordada de forma apropriada”. Explica que seu objetivo é “promover o impedimento da oxigenação cerebral, facilitando a quebra da resistência do abordado”. Mas não faz ressalvas sobre o risco letal da asfixia. O único manual a fazê-lo é o da PM do Rio de Janeiro. Ao ilustrar o golpe, ele orienta os policiais a posicionarem os joelhos sobre a escápula do detido, e não sobre o pescoço, para impedir “que ocorra asfixia mecânica”.

Episódios de asfixia não são raros em ações policiais. Uma reportagem publicada pelo The New York Times em junho de 2020 mostrou que, em dez anos, ao menos setenta pessoas haviam morrido pela mesma razão que George Floyd nos Estados Unidos. As instituições de segurança pública, tanto as americanas quanto as brasileiras, não disponibilizam esses dados. No ano passado, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 6.393 pessoas morreram nas mãos da polícia – uma das maiores taxas do mundo, e que está estável há anos. Não se sabe quantas dessas mortes foram provocadas por falta de ar.

Uma rápida busca na internet, contudo, mostra que cenas como a de Minneapolis não são incomuns no Brasil. Um vídeo gravado em julho mostra um homem sendo imobilizado por três PMs em Cuiabá. Um deles pressiona o joelho contra seu pescoço. É possível ouvir os gritos do homem sufocado – “eles vão matar eu!” Um defensor público que estava presente no local intervém, tentando acalmar os ânimos. Um dos policiais retruca aos gritos – “é assim, sim, porque eu sou policial e tô falando que é assim!” Ele estava agindo em conformidade com o manual, já que o joelho no pescoço é permitido em Mato Grosso.

Em São Tomaz, bairro da Região Norte de Belo Horizonte, coisa semelhante ocorreu em março do ano passado. Duas viaturas estacionaram em frente a uma casa e abordaram um homem de 20 anos, que a polícia dizia ser suspeito de traficar drogas. Ele foi imobilizado por sete policiais, um dos quais lhe aplicou um mata-leão. O rapaz então desmaiou, como mostra um vídeo gravado por um de seus vizinhos. Uma mulher grita ao fundo: “Estão matando o meu irmão!” Desacordado, ele foi conduzido até a delegacia. Sobreviveu.

Uma das fotos que ilustra o manual de procedimentos da PM do Pará (Crédito: Reprodução)

 

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou, em agosto, uma série de vídeos que discute o uso da força pelas polícias militares. Participaram do projeto alguns policiais da ativa e da reserva de diferentes patentes, além de pesquisadores universitários. Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum, explicou à piauí que a ideia é trazer para o Brasil um debate que já acarretou mudanças em alguns países, como França, Alemanha, Bélgica e os próprios Estados Unidos. “Várias polícias estão inibindo as técnicas potencialmente letais de imobilização. A tecnologia hoje permite o uso de outros mecanismos, como os tasers [arma de eletrochoque], que ajudam os policiais a lidar com situações de resistência.”

À polícia alemã, é permitida a imobilização de pessoas no solo, mas por um curto período de tempo e desde que a pressão seja exercida sobre a cabeça, não sobre o pescoço. Nas academias de polícia francesas, a técnica do joelho sobre a região cervical deixou de ser ensinada em 2020, quando o governo anunciou que priorizaria a utilização de armas de choque, como os tasers. Substitutos semelhantes foram adotados em outros países.

Bueno conta que o Fórum tem se reunido com integrantes do Ministério da Justiça e das polícias estaduais para discutir essas possibilidades. O objetivo, segundo ela, é adequar o uso da força a regras internacionais, como as da ONU, que veta golpes em áreas sensíveis do corpo, como pescoço, cabeça, garganta e espinha dorsal. Para isso, será preciso revisar os manuais das polícias militares, mas também garantir que, uma vez alterados, eles sejam seguidos pelos agentes. “É preciso ter fiscalização”, diz Bueno. “O manual é um passo a passo, um guia do que pode ou não fazer. Mas nada substitui a experiência [do policial]. Quando você tem imagens gravadas, como no caso das câmeras corporais em São Paulo, isso pode ser eficiente para o estudo de casos e a para a aprendizagem dos policiais.”

A ideia é que esse debate sirva de base para atualizar uma portaria de 2010, do Ministério da Justiça, que estabeleceu parâmetros para o uso da força por agentes de segurança pública. O texto diz que devem sempre ser observados os “princípios da legalidade, necessidade, proporcionalidade, moderação e conveniência”. No entanto, veta somente o uso indiscriminado de armas de fogo. Não menciona golpes violentos. Como os chefes das polícias estaduais são os governadores, a portaria não é impositiva. A piauí perguntou ao Ministério da Justiça em que pé estão as discussões e se a nova portaria incluirá menção às técnicas de asfixia, mas não houve resposta até a publicação desta reportagem.

A proibição de golpes desse tipo ainda esbarra na resistência dos comandantes das polícias e, sobretudo, dos próprios policiais. Agentes ouvidos pela piauí em condição de anonimato argumentam que, embora indesejáveis, as técnicas que provocam asfixia são, em alguns casos, inevitáveis. “Se eu parar pra refletir na rua se o que estou fazendo é errado ou não, eu morro na mão do marginal”, disse um sargento da PM do Rio de Janeiro. Segundo ele, “se 20% da tropa sabe aplicar a técnica ‘limpa’ de imobilização, já é muito”.

“O promotor quer me condenar por usar força excessiva”, reclamou, por sua vez, um cabo da polícia baiana, processado por ter quebrado um braço e duas costelas de um homem usando uma tonfa – bastão de madeira cujo uso está previsto no manual da PM. “Ele levou dois anos analisando a minha conduta. Já eu, tive uns poucos segundos para decidir o que fazer.” O cabo diz que seu treinamento na polícia teve como inspiração o muay thai, arte marcial tailandesa. “O que o muay thai me ensinou? A dar joelhada, chute e cotovelada.”

 

A popularização de algumas artes marciais violentas no Brasil, como o muay thai, é apontada por alguns especialistas como parte do problema. Alcino Lagares, coronel da reserva de Minas que dedicou boa parte de seus trinta anos na PM a estudar técnicas de abordagem e autodefesa usadas em vários países, diz que o modismo do MMA – sigla em inglês para Artes Marciais Mistas – tem influenciado o treinamento das polícias militares. 

“Não adianta o comando apenas cobrar serenidade e civilidade de seus comandados. São os treinamentos que condicionam reflexos, não as palavras”, afirma Lagares. “A presença do policial na rua visa garantir a ordem, enquanto, dentro do ringue, o objetivo é derrotar alguém. O espaço público não tem nada a ver com esses ambientes de competição.”

Em julho de 2022, a pedido da PM mineira, Lagares e seu filho Rômulo, que é instrutor de aikido, uma arte marcial japonesa de natureza defensiva, apresentaram um relatório elencando treze problemas no manual de autodefesa da corporação. Apontaram a falta de “parâmetros para análise dos princípios da proporcionalidade e conveniência que orientem ação policial”, criticaram o uso de socos e chutes para a “quebra de resistência” dos suspeitos, disseram que o manual faz uma “perigosa confusão entre imobilizações e estrangulamentos” e mostraram que a cartilha recomendava “técnicas sujas”, como pressionar os dedos contra os olhos de um cidadão – o que é vetado até no MMA.

Como alternativa, Lagares e Rômulo produziram um manual de conduta que, segundo eles, obedece ao critério de “uso adequado da força” – expressão comumente evocada em textos institucionais das PMs, mas nem sempre seguida à risca. O manual de 65 páginas, ilustrado com fotos, foi distribuído a um grupo de oficiais da polícia mineira, que, na época, participaram também de um curso ministrado pelo coronel e seu filho. A ideia era que, concluídas as aulas, a PM adotasse um novo manual de conduta, o que não aconteceu.

No lugar do mata-leão, os Lagares propõem um golpe de aikido em que, agarrando uma pessoa por trás, o policial consegue tensionar os dedos dela, de modo a impedi-la de “movimentar-se contrariamente à orientação policial”. Uma técnica semelhante de torção pode ser aplicada no chão. Nesse caso, o policial deve manter o joelho sobre o quadril da pessoa, nunca no pescoço. Com isso, diz a cartilha, “o cidadão imobilizado fica impossibilitado de oferecer resistência”. Aplicados assim, os dois golpes podem resultar, no máximo, numa fratura do punho ou no rompimento de ligamentos dos dedos e do braço. 

Lagares diz que, salvo poucas exceções, quem reage violentamente a abordagens policiais está emocionalmente desequilibrado. Frequentemente, são pessoas passando por surtos psicóticos, que estão sob efeito de drogas ou vivenciando uma forte emoção. Para apaziguar a situação, os gestos do policial deveriam comunicar uma intenção amistosa. A postura derivada das artes marciais mais violentas, segundo o coronel, vai no sentido contrário: punhos cerrados, guarda alta. Tensiona os ânimos e pode resultar em tragédias.

Há poucas semanas, a presidente da Associação de Usuários dos Serviços de Saúde Mental de Minas Gerais (Assusam), Laura Fusaro, participou de uma reunião com o comando da PM mineira e representantes do Ministério Público estadual. A pauta do encontro foram as abordagens policiais a pessoas em crise de saúde mental. “Quando alguém está em surto, muitas vezes os primeiros a chegar na cena são os policiais, não os profissionais de saúde. Mas a PM não tem um protocolo para lidar com essas pessoas, além de ter muita dificuldade em admitir que policiais batem por preconceito”, diz Fusaro.

Os manuais de conduta obtidos pela piauí, referentes à Polícia Militar de sete estados, não contêm recomendações específicas sobre o trato a pessoas mentalmente desequilibradas. Os sufocamentos potencialmente letais, e às vezes as armas de fogo, também são usados contra elas. Foi o que aconteceu em Belo Horizonte em 14 de julho deste ano, quando um jovem, que parecia passar por um surto, caminhando pelas ruas só de cueca, foi abordado pela PM. Segundo a corporação, ele resistiu à abordagem e tentou atacar um dos policiais. Eles usaram spray de pimenta contra o rapaz e, em seguida, mataram-no com três tiros.

 

É provável que, perante a Justiça Militar, os policiais que cometeram as violências relatadas nesta reportagem invoquem os manuais de conduta de suas corporações. E que sejam absolvidos. “A maior defesa para o policial é quando ele consegue comprovar que a sua atitude está dentro do que foi recomendado nos manuais e treinamentos”, diz José Wilson de Aquino, militar da reserva do Exército, onde atuou também como assessor jurídico.

Wilson já defendeu vários militares acusados de truculência. Deve muito à ajuda dos manuais, mas acredita que, apesar disso, eles colocam os policiais em uma situação de insegurança jurídica ao recomendar golpes potencialmente letais. “O policial está entre o cumprimento do dever, a resposta que a sociedade quer da polícia e o receio de ser punido pelo Estado no cumprimento desse dever. E você não vai encontrar, nas polícias brasileiras, alguém que nos momentos de tensão vá se basear 100% no que está nos manuais”, diz.

Flávio Santiago, tenente-coronel que chefia a assessoria de imprensa da PM de Minas, concorda com Lagares quanto ao uso do aikido em abordagens policiais. Mas ressalta que isso não é aplicável a todas as situações com as quais um policial se depara. “Operar o estado de flagrância não é uma atividade fácil. Os abusos e a desproporcionalidade precisam ser combatidos. Mas muitas vezes as críticas à PM ficam reféns de um recorte de vídeo que traduz um pedaço da cena, não a situação inteira”, ele diz. Não há sinal de que o joelho no pescoço, o mata-leão e os treinamentos violentos sejam abandonados tão cedo.

A assessoria de imprensa da PM de Mato Grosso do Sul, por sua vez, enviou uma nota à piauí afirmando que seus manuais “estão devidamente alinhados ao ordenamento jurídico vigente na proteção da sociedade e dos agentes de segurança”. A PM de São Paulo, que não forneceu manuais à reportagem, afirmou que eles são “periodicamente revisados e aprimorados, com o objetivo de reforçar a proteção da população e dos policiais em todas as ocorrências”. As polícias militares de Mato Grosso, Rio de Janeiro, Bahia, Pará e Paraná, que adotam as técnicas de sufocamento, não responderam às perguntas da reportagem.

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