Cena do filme "Marte Um" Foto: Divulgação
Marte Um – rumo ao planeta vermelho
Filme de Gabriel Martins mostra esperanças e sonhos de uma família num Brasil em turbulência
O filme Marte Um, de Gabriel Martins, será o representante do Brasil para disputar uma vaga no Oscar 2023, na categoria de Melhor Filme Internacional. A Academia Brasileira de Cinema fez o anúncio nesta segunda-feira (5/9). Em agosto deste ano, o colunista Eduardo Escorel escreveu sobre o filme. Leia abaixo.
Filmado em Contagem e Belo Horizonte no final de 2018, com roteiro e direção de Gabriel Martins, Marte Um tem como um de seus protagonistas o menino que deseja estudar astrofísica e cuja aspiração máxima é ir para Marte, nada mais, nada menos. O personagem, chamado Deivinho (Cícero Lucas), diz no final do filme a seu pai Wellington (Carlos Francisco), sua mãe Tércia (Rejane Faria) e sua irmã Eunice ‘Nina’ (Camilla Damião) que o planeta está a distância aproximada de 60 milhões de km da Terra. Desse modo, a premissa dramática central de Marte Um fica definida – é o direito libertário de sonhar com o impossível ou, ao menos, com o que assim parece.
Para o pai de Deivinho, no entanto, o futuro do filho e, por extensão, de toda a família, depende do menino, apesar de usar óculos, aproveitar a grande oportunidade de sua vida – ser selecionado na peneira do Cruzeiro Esporte Clube e se tornar jogador de futebol profissional. A essas expectativas conflitantes, uma visionária, a outra usual, agrega-se a tensão criada pelo namoro de Eunice e a amiga Joana (Ana Hilário), ambas estudantes de direito, além de os tormentos que assaltam Tércia, a começar pela pegadinha inqualificável, feita por um programa de televisão, da qual ela é vítima enquanto está em uma lanchonete, tranquila, comendo um pastel.
Na abertura do filme, antes da primeira imagem, ouve-se o espocar de fogos e gritos distantes comemorando a vitória do candidato a presidente da República eleito em 2018. Em seguida, o sonhador Deivinho, deitado em uma espreguiçadeira, observa o firmamento e parece arrancar um dente (será mesmo isso que ele faz?). Na manhã seguinte, enquanto o café da manhã está sendo preparado, uma locutora em off anuncia que “Bolsonaro será o 38º presidente do Brasil, eleito com 55% dos votos válidos no segundo turno…”. O filme transcorre, a partir desse dia preciso, ao longo dos meses seguintes, indo até depois da posse do atual ocupante provisório do Palácio da Alvorada, à qual Wellington assiste pela televisão, enquanto almoça, no final da primeira metade de Marte Um.
Ao situar a ação nesse período da história recente do país, o roteiro de Martins cria um pano de fundo marcante para a narrativa que não exerce, no entanto, influência direta na trama. Salvo, talvez, por indicar, de modo deliberado ou não, a desconexão existente entre a instância máxima do poder político e as aflições cotidianas de uma família modesta. Seus integrantes são pessoas comuns cujos desejos enfrentam restrições concretas, sendo todos dependentes do trabalho do pai e da mãe, ela como diarista, ele como porteiro de um condomínio de apartamentos residenciais.
A produção de Marte Um se tornou possível graças ao projeto do filme ter sido selecionado, em 2016, no edital Longa BO Afirmativo, parceria da Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura com a Agência Nacional do Cinema, com recursos do Fundo Setorial do Audiovisual, reservado para “filmes inéditos de ficção, com temática livre, dirigidos por cineastas negros”, com orçamento total no máximo de 1,8 milhão de reais, podendo receber até 1,25 milhão de reais. A esses recursos se somaram a coprodução do Canal Brasil e o apoio do Projeto Paradiso, iniciativa do Instituto Olga Rabinovich, voltado para formação profissional e geração de conhecimento no setor audiovisual.
Chama atenção ter sido necessário dedicar seis anos à realização de Marte Um, mesmo levando em conta as consequências da pandemia, inclusive a suspensão de exibições em salas de cinema por cerca de um ano e meio, entre 2020 e 2021. Tamanho período de produção ratifica que o sistema de produção baseado em editais tem um aspecto disfuncional, começando por premiar com uma mão e castigar com a outra.
No início deste ano, pouco antes de estrear na seleção oficial do Festival de Sundance, Marte Um teve sua distribuição mundial contratada pela Magnolia Pictures International, o que representa por si só um feito para uma produção brasileira de orçamento modesto, ínfimo se comparado ao padrão internacional. Quando foi anunciado, em janeiro, o acordo que poderá propiciar a exibição do filme fora do Brasil, as palavras da chefe de vendas internacionais da Magnolia, Lorna Lee Torres, prenunciaram a recepção calorosa que Marte Um viria a ter: “Gabriel Martins criou um filme inspirador e terno sobre as esperanças e sonhos de uma família, ambientado em um Brasil em constante turbulência. Estamos muito entusiasmados em representar esse lindo filme e convidamos o público a compartilhar os sucessos, fracassos, medos e amores desses personagens – todos retratados com delicadeza e encanto.”
Após a exibição em Sundance, além de críticas favoráveis, como a que considerou Marte Um “uma jóia”, houve também ressalvas, entre elas as de Jessica Kiang na Variety, em 20 de janeiro. No final de um longo resumo descritivo do filme, ela escreve: “Mas realmente investigar a fundo essas [injustiças e privações das quais a família deseja fugir] exigiria um grau de fúria e raiva temática de que esse filme de bom coração, otimista e estranhamente antiquado não trata, para o bem ou para o mal. Dependendo do seu estado de espírito, pode ser tocantemente idealista ou tão irrealista e suave quanto uma novela. Apesar de todos os contratempos que eles enfrentaram, esses quatro adoráveis lutadores conseguem encontrar um terreno comum e uma esperança compartilhada em seu quintal, na beira da sarjeta, olhando para Marte.” Em termos, a restrição é válida pois, como a crítica mesma assinala, as “injustiças e provações das quais” Deivinho e Nina querem fugir “têm causas e soluções inteiramente terrestres”, embora, ao contrário do que Kiang supõe, não possam ser atribuídas ao resultado da eleição presidencial de 2018.
Premiado em São Francisco e Los Angeles, Marte Um participou também de outros festivais mundo afora, entre eles os promovidos em Nova York, Edimburgo, Gotemburgo, Munique e Melbourne.
Para Martins, Marte Um trata, em última instância, da maneira de “descobrir o que os outros realmente querem. Essa família está tentando se unir, mas mesmo assim eles têm seus próprios interesses na vida. Mas a forma como vai funcionar é tentando entender o que o outro está passando. Veja a filha que ama outra mulher e não é aceita pela família. Ou a mãe que está tendo sua própria luta interior. Cada um tem um sonho e uma luta. E até que eles se entendam não pode haver paz nessa família. É realmente um filme sobre empatia e compaixão. E isso é algo muito importante neste mundo hoje; especialmente neste mundo no qual todos estão tão envolvidos pessoalmente. Então, não é apenas um filme sobre sonhos pessoais, mas também sobre compreensão. Entendendo um ao outro”. (entrevista completa disponível em https://www.filmfestivals.com/blog/sundance/mars_one_interview_with_director_gabriel_martins).
Esta coluna sobre Marte Um começou a ser escrita sem que eu soubesse do entusiasmo e aplausos da plateia no 50º Festival de Cinema de Gramado após a exibição de quarta-feira passada (17/8), depois da qual muitos passaram a considerar o filme um dos favoritos da premiação a ser anunciada no sábado (20/8).
No domingo 21 de agosto, de manhã, tive notícia pela internet de que Noites Alienígenas, de Sérgio de Carvalho, ganhou o prêmio de melhor longa-metragem e recebeu também os prêmios de melhor ator (Gabriel Knoxx), melhor ator coadjuvante (Chico Diaz), melhor atriz coadjuvante (Joana Gatis), além de menção honrosa ao ator Adanilo e o prêmio do júri da crítica para o melhor longa-metragem.
Marte Um ganhou o Prêmio Especial do júri, foi considerado o melhor longa-metragem pelo júri popular e recebeu também os prêmios de melhor roteiro e Melhor trilha musical.
Resta para Marte Um a árdua missão de atrair público a partir de amanhã (25/8), quando estreará afinal em 30 cinemas de 22 cidades, incluindo, entre outras, São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte, Brasília, Salvador… Terá que vencer barreiras difíceis de transpor para demonstrar que seu apelo não é restrito às animadas plateias dos festivais.
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Destaque (VI)
“…escrevo em outro tempo, antes e durante a pandemia, entre dois confinamentos, onde tudo me parece ao mesmo tempo carente de realidade e ter excesso de realidade. As velhas contradições não desapareceram, longe disso, mas novos conflitos as encobriram e talvez as absorveram ou bem as fizeram se perder. A guerra está em toda parte, a paz em lugar nenhum. Fatos são contrariados como se fossem opiniões, as verdades mais bem estabelecidas historicamente são revisadas e negadas, o falso e o verdadeiro debatem-se sem fim.” Jean-Louis Comolli (1941-2022), Une certaine tendance du cinema documentaire. Verdier, 2021. Ao morrer, em maio, Comolli deixou ainda Jouer le jeu?, outro livro pequeno, mas também muito interessante. Amir Labaki publicou no Valor resenha de Une certaine tendance du cinema documentaire (“O último manifesto de Comolli”, 22 de julho de 2022).
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