"A maioria das pessoas vê futebol como a minha mãe: 'E aí, filho, como vai a vida? Já quando é filme, é aquele silêncio. Está errado. Tem que assistir futebol como filme." FOTO: EGBERTO NOGUEIRA/ IMÃ FOTOGALERIA_2008
A alegria são 61 telefonemas
Por que os técnicos de futebol do Brasil andam mentindo para o jornalista Paulo Vinicius Coelho
João Moreira Salles | Edição 17, Fevereiro 2008
O Estádio Monumental de Lima, no Peru, poderia estar cravado num vale da lua, se a lua fervesse. Quem está nas arquibancadas e olha para cima vê, colada ao anel superior, uma barreira de montanhas feitas de pedra e pó. O sol atinge a parede de rocha, é defletido e vai fustigar o gramado. Em novembro de 2007, o exército de repórteres que estava ali para cobrir o jogo Brasil x Peru pelas eliminatórias da Copa do Mundo buscava sombra. Havia uma única exceção.
Do alto das cabines de rádio, no último andar da arena, percebia-se que lá embaixo, minúscula, uma estranha forma humana executava uma coreografia extravagante. Alto, magro e dono de uma enorme corcunda, um homem avançava a passos de ganso sobre as riscas de cal que demarcam o campo. A perna direita erguia-se reta, permanecia suspensa uma fração de segundo e tombava à frente. Lembrava um soldado soviético desfilando diante do mausoléu de Lênin. O corcunda cumpriu o trajeto desde a bandeirinha até a linha do meio-de-campo. Parou, refletiu um instante e seguiu até o córner oposto. Fez então um giro de 90 graus e continuou a marcha, agora se equilibrando na linha de fundo. Cobriu assim as duas dimensões do campo: 82 passos para o comprimento, 60 para a largura.
Concluída a missão, a miniatura se pôs a correr em direção à arquibancada. Galgou-a com crescente dificuldade, primeiro de dois em dois degraus, em seguida de um em um, e olhe lá. À medida que se aproximava das cabines, sua forma foi se esclarecendo. Não era propriamente um homem-corcunda, mas um homem-tartaruga. O apêndice que dava relevo às suas costas era uma mochila à beira de explodir. Pesava 10 quilos.
Bufando, já quase sem ar, Paulo Vinicius Coelho – ou PVC, como é mais conhecido o comentarista da ESPN-Brasil – invadiu a cabine onde estava seu colega João Palomino e sentenciou: “Nos comeram cinco passos na largura do campo”. Acabara de confirmar, empiricamente, a informação que circulava entre os jornalistas: o técnico do Peru havia diminuído as dimensões do campo para dificultar o jogo do Brasil. A imprensa tomara a informação como dada. PVC decidiu apurar. Foi o único.
Dez dias mais tarde, no Rio de Janeiro, o técnico do Botafogo, Cuca, abriu uma conversa sobre Paulo Vinicius Coelho sem medir palavras: “Eu fico puto com o PVC”. Membros da comissão técnica arregalaram os olhos. “Ele mostra o jogo. Ele desenha aqueles bonequinhos na prancheta, diz que o meu volante vem por aqui, que o outro avança por lá, publica o esquema no jornal e entrega o meu time para o adversário. A coisa principal é saber ler o esquema tático, e isso ele faz muito bem, infelizmente. Eu prefiro que ele faça isso só com o time dos outros. Dá o recado a ele.” Cuca admira PVC. Não é o único. Paulo Vinicius Coelho é a figura de proa de uma nova geração de comentaristas que está mudando a forma de analisar o esporte. Para essa turma, gente nascida no final dos anos 60 ou início dos 70, os fatos valem mais do que a exaltação dos afetos.
Quando se menciona o nome de PVC, a primeira palavra que ocorre à maioria das pessoas é “memória”. De fato, a dele é prodigiosa. Um incauto pensaria que ele exerce bem a função porque foi ungido pela graça divina. Assim como Gisele Bündchen tem suas curvas, PVC tem seu hipocampo. É comum os admiradores se aproximarem dele para comentar a sua exuberância mnemônica. Em São Paulo, antes de entrar numa sala apinhada de alunos de jornalismo que, excitados, o esperavam como se ele fosse um Robinho, um homem o cutucou e soltou o comentário de praxe: “Você tem uma memória extraordinária, né? Muita leitura…” PVC sorriu meio sem jeito: “É, eu leio bastante. Mas tem um pouco de trabalho também”.
Toda sexta-feira, PVC chega às oito da manhã na redação da ESPN, no bairro do Sumaré, em São Paulo. Sua mesa é um desabamento iminente: pilhas de jornais brasileiros e estrangeiros, livros, revistas esportivas européias e até um compêndio do congresso internacional dos árbitros de 2000. Tendo aberto algum espaço para o teclado respirar, PVC começa a fazer o que seus colegas apelidaram de ronda semanal: ligar para cada um dos vinte clubes da série A para saber como estão os times – ambiente geral, expectativas, contusões, suspensões, notícias de última hora. Fala com os assessores de imprensa ou, quando consegue, com o próprio técnico.
Os telefonemas não duram mais de três minutos. Não há migalha de conversa desperdiçada. O tom é baixo, quase um sussurro. 8h36, Grêmio: “E aí, Serginho? Tem algum problema? Qual a escalação? Vocês estão achando que conseguem se classificar para a Libertadores?” Desliga às 8h38. Atlético Mineiro: “Fala, Domênico, tudo certo? Vem cá, o Danilinho e o Rafael Miranda jogam?” Com o fone preso entre o ombro e o ouvido, simultaneamente responde a e-mails de leitores do seu blog. Um leitor o acusa de favorecer o Palmeiras numa disputa com o Fluminense para contratar o jogador Thiago Neves: “Eduardo, eu não torço para que o Thiago Neves vá para o Palmeiras. Minha torcida é para acompanhar bem o caso. Neste caso, tenho trabalhado como repórter. Você não compreendeu”. Liga para Zurique e fala com o principal assessor da FIFA, Andreas Herren. Quer detalhes da cerimônia em que o Brasil seria declarado país-sede da Copa de 2014. Palmeiras, 9h58: “E aí, Fábio? Ele treinou o Paulo Sergio por dentro ou pela lateral?”
Já são 10h e a redação está cheia. Num dos sete monitores ligados em canais de esporte, uma matéria informa que o Corinthians contratou dois pais-de-santo full time para evitar o rebaixamento para a segunda divisão. Alvoroço, risadas, aplausos. PVC é o único que não dá atenção. “Fala, Juca, só tem o Borges de fora, né?” Às 10h48, fala simultaneamente em dois telefones, aos quais se acrescenta, um minuto depois, um celular. Às 11h45, quinze minutos antes de entrar no ar, termina a checagem e digitação dos vinte times da primeira divisão que entrarão em campo na próxima rodada. Tudo estará à disposição no blog. Em menos de quatro horas, ele deu 61 telefonemas e conferiu a presença ou ausência em campo de 250 atletas.
Ao meio-dia, entra ao vivo no programa Bate Bola 1ª Edição. Como muitos o julgam um prodígio enciclopédico, ele é constantemente testado ao vivo com perguntas espinhosas. Do Rio Grande do Norte vem essa: “Qual o presidente da República que foi jogador de futebol?” PVC não sabe, e não se importa de admitir isso ao vivo. Havia dito a um colega: “Memória só é importante para não errar, para não dizer ‘o Corinthians de Gamarra e Luizão'” – dois jogadores que fizeram época no time paulistano, mas que se cruzaram na porta: quando um entrou o outro saiu. Informação serve para acertar.
Em outubro passado, ele e o narrador João Palomino buscavam um lugar nas cadeiras do Maracanã para plantar o tripé e transmitir o treino da seleção na véspera do jogo Brasil x Equador. A ordem vinda dos poderes constituídos do futebol exigia que os repórteres não descessem ao campo. Como sempre, a proibição previa – ou admitia – exceções. O repórter André Plihal, da ESPN, declarou: “Enquanto o reportariado da Globo estiver lá embaixo eu não saio”. De fato, o reportariado da Globo estava lá embaixo, indo e vindo pela beira do campo. Às tantas, do túnel de onde se esperavam os jogadores, emergiu Galvão Bueno. Era o único que dispensava crachá. Simpático, acenou para os colegas nas cadeiras. Um raiozinho de sol bateu em seu relógio de ouro, que brilhou intensamente, ofuscando um quero-quero. Os sem-campo se admiravam com sua desenvoltura. Conversou ao pé do ouvido do assessor de imprensa Rodrigo Paiva, fez um gesto para que o milenar supervisor Américo Faria viesse a seu encontro. (Num leve trote, Faria acolheu o pedido.) Com um sorriso filosófico, Palomino e PVC assistiam a tudo de longe. Eles formam uma espécie de exército de Brancaleone frente às divisões globais. Têm o entusiasmo dos vietcongues. São alegres.
Pelo fone de ouvido, alguém avisa que se passaram 2 599 dias desde a última partida da seleção no Maracanã. A informação é arquivada na memória. Um pouco mais tarde, ao vivo, Palomino perguntará a PVC: “O que os números 2-5-9-9 te lembram?” PVC responde: “São os dias que terão se passado desde a última apresentação da seleção aqui no Maracanã”. E acrescenta: “Foi a informação que o Paulo Andrade acabou de nos passar do estúdio”.
Paulo Vinicius Coelho está com 38 anos. Seu rosto tem algo de divertido. Há um discreto parentesco com o personagem Wallace, do desenho animado Wallace e Gromit. Na vida prática, é atabalhoado. As alças da mochila que carrega nas viagens têm o dom de se agarrar a todo vão de porta que se meta no caminho; volta e meia, as pernas se adiantam apenas para serem atrapalhadas pelo tronco, que, de um repelão, é puxado para trás. Seu chefe na ESPN, o jornalista José Trajano, já perdeu a conta das vezes que PVC ligou o carro e saiu sem se lembrar das pilhas de jornais e cadernos deixados sobre a capota. Dizem que também não dirige muito bem. Nada disso atrapalha a vida dele. O seu negócio é conhecer futebol, e para cumprir essa função poucos estão tão bem equipados. “Ele é um fenômeno”, afirma o jornalista Juca Kfouri, “por causa da profunda capacidade de reter e processar informação.”
PVC carrega na cabeça e nos seus arquivos um dos maiores mananciais de dados sobre futebol do país. Nos cinco dias que passou em Lima, quase nunca se separou da sua mochila de 10 quilos. O inventário do conteúdo revelaria: 1) livros: História de la Copa América (429 p.); En el Corazón del Pueblo. Pasión y Gloria de Alianza Lima (153 p.); La Grande Enciclopedia della Coppa del Mondo (450 p., capa dura); Todos os Jogos do Brasil (616 p.); 2) folhas soltas com anotações para o próximo compromisso da seleção: todos os jogos Brasil x Uruguai no Morumbi e todos os jogos do Brasil em São Paulo, além da ficha completa dos 26 jogadores convocados da Seleção Peruana; 3) DVD com todos os gols da era Dunga, acompanhados de análises e tabulações (gols tomados pela esquerda, direita, meio; marcados pela direita, esquerda, meio; gols marcados e tomados de bola rolando, contra-ataques, faltas, escanteios etc.); 4) computador e palm para armazenar apenas informações sobre o esporte.
A um simples toque, PVC é capaz de acessar a ficha completa de todos os jogos do campeonato brasileiro de 1971 para cá: data, placar, escalações, técnicos, substituições, árbitros, gols (e o minuto em que foram marcados), cartões amarelos e vermelhos, estádios, público. Ele mesmo digitou cada uma das fichas. O palm ainda armazena todas as convocações das seleções da Espanha, da Inglaterra, da França e da Itália de 2000 para cá e de Portugal, Alemanha, Argentina e Holanda de 2005 em diante. A cada rodada do campeonato brasileiro, PVC confere e armazena informações relativas a dez jogos, além de partidas da Liga dos Campeões da UEFA e das seleções nacionais de maior expressão que porventura tenham jogado naquela semana.
José Trajano passou boa parte dos primeiros anos de parceria dando broncas homéricas em PVC por causa dessa obsessão factual. Fazia isso no ar: “É que ele vinha com aquelas histórias de que ‘Nunca o São Paulo venceu o Náutico com gol no segundo tempo’ ou ‘Faz x anos que o Corinthians não vence Beltrano no inverno’. Eu dizia: ‘Ora, vai encher o saco do outro…’ Mas aí você começa a ver que aquilo é trabalho duro, que ele conversa com todo mundo, e então começa a respeitar”. Com o tempo, as broncas escassearam. PVC foi ganhando o público e hoje é praticamente um pop star. Nos estádios, os torcedores gritam seu nome. Com freqüência, a concorrência vem checar informação com ele. PVC nunca nega.
É natural que menino sonhe em ser astronauta, piloto de avião, pirata ou jogador de futebol. PVC sonhou em ser jornalista esportivo. A idéia se firmou por volta dos 14 anos, quando se deu conta de que o dia mais importante da sua vida eram as terças-feiras. Logo de manhã, ia montar guarda na banca de jornal, à espera da revista Placar, que devorava e redevorava ao longo da semana. Na mesma época, ganhou da mãe uma máquina de escrever. O pai era dono de uma padaria em São Bernardo, no ABC paulista, e a ética do trabalho – abrir a loja de madrugada, atender a freguesia até a noite – seria uma lição aprendida desde cedo. A máquina serviria para aprender datilografia e arrumar emprego. Paulo Vinicius – o apelido PVC surgiu anos mais tarde – trabalharia como office-boy de dia e estudaria à noite. Ele não foi atrás de emprego, mas aprendeu a datilografar. Instalou mesa e cadeira num vão embaixo da escada, introduziu uma folha branca na máquina, tabulou e, de cabeça, começou a datilografar a escalação completa dos doze grandes times do Brasil que haviam jogado na semana. Tornou-se exímio datilógrafo e formou-se em jornalismo.
PVC tem fé cega na informação. Talvez seja dos poucos comentaristas esportivos, se não o único, a nunca ter sido influenciado pelos grandes estilistas da crônica esportiva nacional. A elegância de Paulo Mendes Campos, o perfume da prosa de Armando Nogueira, a oralidade de João Saldanha, o sopro épico de Nelson Rodrigues, nada disso deixou marca. Com a possível exceção de Saldanha, esses homens são mais escritores do que cães farejadores. “Eu gosto do ‘romance’ do futebol, mas não é informação. Nelson Rodrigues escreve sobre as 120 mil almas do Monumental de Nuñez no dia do Brasil x Argentina. É bonito, só que não havia 120 mil almas, porque no Monumental nunca houve espaço para 120 mil almas.”
PVC sustenta que, com a televisão, a epopéia chegou ao fim. “Aquele grande jogador cujas jogadas geniais você só conhecia pelas descrições e não pelo olho, isso acabou.” Numa crônica para o Lance, escreveu: “Os ídolos eram exaltados em suas qualidades, porque os defeitos não estavam escancarados todos os dias. Não há deus que resista à superexposição da sua condição humana”. É como se os grandes jogadores do passado fossem essencialmente atores de teatro, e os novos, astros do cinema. Quem ia ao espetáculo teatral via algo fugaz, que desaparecia, e a beleza estava aí, pois permitia a fabulação. Com o ator de cinema, isso acaba. A jogada fica registrada para sempre e eventualmente não resistirá ao teste da realidade. O grande Rivaldo, com sua fala difícil, sua falta de carisma, morreu pelo cinema. “Na época do Nelson Rodrigues, ele seria um mito”, observa PVC.
Paulo Vinicius chegou à revista Placar com 21 anos. Era excessivamente tímido e dizia “tlinta-e-tlês”, problema com que só teria de se haver mais tarde, quando migrou para a TV. O jovem aspirante encontrou pela frente o redator-chefe Sergio Martins, responsável por desvendar, na década de 80, a máfia da loteria esportiva, uma das reportagens mais importantes sobre esportes no Brasil. De todas as pessoas com quem já trabalhou, Martins é a que mais o influenciou. “Ele me ensinou a escrever com todas as letras. Eu era um moleque e tentava florear. Ele cortava. Deixava o essencial, o que era informação.”
Com o rosto de quem virou muitas noites, Martins é desses jornalistas que dizem que a profissão acabou: “Ninguém vai mais ao estádio. Fazem matéria sem conversar com as pessoas, sem olhar no olho”. Quando conheceu PVC, identificou nele três virtudes e um defeito. “Ele era apaixonado pelo que fazia. Além disso, nunca foi malandrinho, queria vencer, mas nunca puxou o tapete de ninguém.” A terceira virtude era a memória: “Para um desmemoriado como eu, era fora do normal. Eu olhava aquilo com ceticismo e um certo ciúme. Ele me passava algum dado de cabeça e eu dizia: ‘Vai checar’. Ele dizia: ‘Mas eu sei’. ‘Vai checar.’ Ele estava certo 90% das vezes, mas o problema são os 10%. Quando ele acertava, era irritante: ‘Naquele Flamengo e Vasco de 52 fazia 28 graus no Maracanã, chovia e soprava um vento leste’. Pô, o cara nem era nascido! E eu vi esse jogo e não me lembro? Mas essa confiança excessiva na memória dele era ruim. Hoje ele ainda fala alguma bobagem na TV. Quase nunca, mas quando percebo eu digo comigo: ‘Você errou, cara'”.
Sergio Martins ensinou PVC a ser repórter. O pupilo reconhece: “Tive sorte de não virar comentarista cedo. Quando a gente começa a comentar, se acostuma logo a dar opinião”. Quando é convidado a falar a alunos de jornalismo, PVC tenta ser o Sergio Martins deles. “Os blogs são o futuro do jornalismo?”, alguém pergunta. “Não”, responde. “Os blogs são o perigo da opinião. Está todo mundo preocupado em falar das coisas. Mais importante é saber delas. Se algum dia eu disser a vocês ‘Quando eu era repórter’, me enterrem porque já morri.” Ligar para vinte clubes, por exemplo, ele acha “uma delícia”.
Na primeira semana de dezembro, PVC deu sete furos em quatro dias. Antes de toda a imprensa, revelou o nome dos novos técnicos do Corinthians, do Cruzeiro, do Vasco, do Atlético Mineiro e do Goiás, além da saída do técnico do Palmeiras e da transferência de um jogador importante do Botafogo para o São Paulo. Se escrevesse para a editoria de política, seria como revelar o novo ministério.
Ele entende sua obrigação profissional de maneira muito simples: transformar informação em conhecimento. O jornalista americano I. F. Stone dizia que fatos são subversivos. Para quem se acostumou a julgar futebol mais pela intuição do que pelo conhecimento, são mesmo. Por exemplo, não há campeonato mundial de futebol em que os argentinos não apareçam como bichos-papões. PVC não nega que eles formem grandes times, mas, candidamente, profere uma heresia: nossos vizinhos são um verdadeiro fiasco em Copas do Mundo. Das 18 edições do campeonato, eles não participaram de quatro, foram eliminados na primeira fase em cinco, em outras cinco chegaram no máximo às quartas-de-final. Foram vice-campeões duas vezes, uma delas em 1930, a segunda em 1990, mas só chegando lá favorecidos por um sistema que hoje os teria eliminado na primeira fase. Finalmente, foram campeões duas vezes – a primeira, jogando em casa, com ajuda de generais e adversários suspeitos; a outra, graças a Maradona, um jogador irreproduzível. À luz fria dos fatos, a Argentina em Copas não é lá grande coisa.
PVC assiste de sete a nove partidas por fim de semana, além dos jogos da Liga dos Campeões às terças e quartas. “São mais ou menos onze partidas das quais eu posso falar, pois compreendi o que aconteceu em campo.” Compreender implica não permitir distrações. “A maioria das pessoas vê futebol como a minha mãe: ‘E aí, filho? Como vai a vida?’ Já quando é filme, é aquele silêncio… O problema é que o ‘E aí, filho?’ acaba com o jogo. Tem que assistir que nem filme”, explica. Mesmo em dia de folga, PVC assiste às partidas de papel na mão, desenhando os esquemas táticos. Não é muito diferente do que faz no estádio. No jogo Brasil x Equador, no Maracanã, enquanto Robinho dava um dos dribles mais desconcertantes dos últimos anos, PVC permanecia apoiado sobre a bancada, o tronco inclinado para a frente, quase sem esboçar reação. (Sussurrou um “lindo” para a jogada do Robinho.) Seus olhos acompanhavam ora a defesa, ora o meio-campo, ora o ataque. À medida que os jogadores se movimentavam, espalhava seus respectivos números numa folha branca, para decifrar o padrão tático. Vez por outra, por educação, sorria tímido para torcedores que, das cadeiras, erguiam cartazes nos quais se lia “PVC, você é um animal”. Alguns apontavam para Dunga, como que para dizer que ele deveria estar no lugar do técnico da seleção.
Com o tempo, PVC desenvolveu o que, em música, corresponderia ao ouvido absoluto: a capacidade de, por assim dizer, reconhecer cada nota da partida. “Eu vejo o jogo e nos primeiros cinco minutos sei como o time joga. Isso é informação”, diz. José Trajano conta que PVC tem uma maneira própria de sofrer com as derrotas da seleção. “Ele fica furioso não com a derrota em si, mas com a maneira como o jogo foi perdido. Ele fica irritado com o erro tático.” Kfouri lembra que, por PVC ver tão bem uma partida, não são poucos os técnicos que ligam para ele atrás de opinião. “Tratam-no como é raro treinador tratar jornalista, ao menos do ponto de vista tático. Só ele e Tostão merecem tanta deferência.”
Em 15 de julho do ano passado, PVC deu um exemplo cabal de como utiliza informação. Era a final da Copa América, Brasil x Argentina. O time argentino vinha de uma campanha gloriosa, com cinco vitórias em cinco jogos e futebol deslumbrante. Já o Brasil chegara à final depois de amargar uma derrota para o México e um empate sem graça com o Uruguai. A Folha de S. Paulo sentenciava: “A Argentina chega à final da Copa América apontada como favorita ao título, invicta e com vitórias obtidas com goleadas”. O Estadão fazia eco: “Brasil é coadjuvante na decisão contra a Argentina”. Até Dunga aceitava o favoritismo da Argentina. Ao meio-dia, PVC entrou no ar com um palpite diferente. Ele lembra: “Era útil saber o que acontecia nas campanhas dos dois times. O Brasil tinha tomado meio gol por partida desde que Dunga assumira a seleção; já a Argentina de Basile sofria um gol a cada jogo. Dos dezesseis gols marcados pela Argentina na Copa América, onze tinham sido no segundo tempo. Parece estatística de tolo, mas acontece que a Argentina tinha jogado todos os seus jogos à noite. E a final era às três da tarde”. Minutos antes da partida, no ar, ele arriscou: “Nesse sol de 36 graus, talvez não tenha segundo tempo para a Argentina”. Não teve. O time não resistiu à marcação que o Brasil impôs no primeiro tempo e morreu no segundo. Fomos campeões.
Não se trata de infalibilidade (PVC cantou vitória do Brasil contra a França em 2006), mas de usar a melhor informação possível para enfrentar a imponderabilidade de um dos únicos esportes no qual, com freqüência, o time mais fraco vence o mais forte.
PVC mora com a mulher, Adriana, e os filhos, João Pedro (8 anos) e Bruna (de 4), num pequeno apartamento de 90 metros quadrados no bairro do Sumaré. Gosta de contar que a segunda pergunta que fez à mulher foi: “Qual é o seu nome?” A primeira, evidentemente, foi para qual time torcia. Adriana era palmeirense, como ele. Profissionalmente, PVC não se importa em revelar seu time do coração. “Mas também não ofereço a informação, se não for relevante.” E quando é relevante? “Quando me perguntam. Aí, sigo a primeira regra da minha profissão, que é informar. Mas é gozado. Alguém pergunta em quem o Janio de Freitas vota? É uma informação certamente mais relevante do que o time para o qual eu torço. Quando ele vota, está influindo no resultado. Eu não entro em campo.” PVC aprendeu cedo a refrear a paixão. Seu pai é santista. Freqüentemente, o filho assistia aos jogos do Palmeiras na torcida adversária. Era mais prudente analisar do que torcer. Para Adriana, foi um aprendizado maldito. Ver jogo do Palmeiras ao lado do marido é um pesadelo, porque ela é fanática e ele é racional. “Foi pênalti!”, ela urra. “Não foi”, ele sussurra. “Abomino ver futebol com você”, ela conclui.
Adriana é uma das poucas mulheres com quem PVC partilha a paixão pelo futebol. Esse é um mundo de homens. Num fim de tarde de novembro, umas duas centenas deles se acotovelavam no lobby do Swissôtel de Lima, à espera da chegada da Seleção Brasileira. Eram repórteres, comentaristas e fotógrafos à cata da mais insignificante migalha de som ou imagem. Ao chegarem, jogadores e comissão técnica iam passando pelo corredor de cordas e desapareciam num elevador privativo. A cena não dura mais de cinco minutos. Até o mais safo repórter sabe que extrairá no máximo alguma platitude das celebridades, que, quase todas, sequer ouvem as perguntas por causa dos iPods que se tornaram obrigatórios entre elas. PVC não se misturou à guerra de cotovelos. Ali não havia informação a ser garimpada. Decidiu tentar uma entrevista com o goleiro Azca, que em 1957, defendendo a Seleção Peruana no Maracanã, tomou um dos mais famosos gols de falta do futebol brasileiro. Didi aprimorava ali a sua famosa folha-seca, o chute traiçoeiro que, nas palavras de seu criador, fazia a bola “sair zarolha”, descair e entrar.
Enquanto as pessoas se digladiavam no lobby, PVC conseguiu o telefone da casa de Azca. Discou, apresentou-se e propôs a entrevista. Silêncio. Mais tarde, relataria o diálogo.
PVC: Não, não pagamos por entrevista, Azca.
Azca: Mas então não tem nenhum benefício para mim.
PVC: Tem, sim. O benefício é que eu sou um jornalista brasileiro de 38 anos. Nasci doze anos
depois daquela partida e sei da sua história. Li nos livros. E se eu quero contar, é porque alguém deixou um registro.
Azca: Entendo, mas ainda assim não vejo nenhum benefício para mim, desculpe.
PVC: Compreendo as suas razões, mas não desculpo. As relações humanas são assim: na única conversa que tivemos, você me pediu 3 mil soles para contar uma história que pertence ao futebol. É inevitável, essa é a lembrança que terei de você: “Azca foi um jogador que, uma vez, cobrou mil dólares para dar uma entrevista”.
PVC, Mauro Betting, Paulo Calçade, Alex Escobar são os nomes que ocuparão a crônica esportiva nas próximas décadas. É uma passagem de bastão. Se há romance, é o romance dos fatos. Trajano admite que a sua geração, “a geração romântica”, nunca fez esse trabalho de coleta obsessiva de informação. “Eu, o [Fernando] Calazans, os outros – a gente nunca passou a manhã ligando para técnico para saber como estavam os jogadores. É claro que os tempos eram outros, mas ainda assim era muito mais um trabalho de intuição e conhecimento empírico do que de análise de táticas e números. Nós somos os românticos: ‘Bom mesmo era o Dida…’ [jogador do Flamengo da década de 50]. PVC é o contraponto.”
A clivagem entre a velha e a nova geração ficou evidente numa mesa-redonda durante a Copa do Mundo de 2006. A Ucrânia empatara sem gols com a Suíça. Calazans estava enfadado: “O jogo entre Ucrânia e Suíça foi inacreditável. Os timinhos desta Copa estão muito fraquinhos”. Trajano e Kfouri concordaram. PVC só escrevia. Quando chegou sua vez de falar, discordou. “Não acho essa Copa do Mundo ruim, não. Há jogos bons e jogos ruins, como em todas as Copas. A gente não tem que comparar o 0 a 0 de Ucrânia e Suíça em 2006 com a final do Brasil em 1970. A comparação correta é com o 0 a 0 entre Itália e Israel, um jogo horroroso também de 70.” Era o princípio da realidade se opondo ao princípio do prazer. “É claro que todos nós vimos a seleção de Pelé, mas o argumento do PVC era melhor”, admite Kfouri.
É uma velha discussão. Já na década de 70, Paulo Mendes Campos abria uma crônica com a seguinte frase: “O futebol de hoje tem certa monotonia de repartição pública”. PVC sorri. “O futebol não tem culpa por você envelhecer. Se a gente não sabe mais o time de cor, a culpa é nossa.” Para ele, a boa Copa é aquela em que se descobre o futebol, lá pelos 13 anos. “A minha Copa do choro é a de 82, aquele Brasil x Itália. Aquela é a minha final de 50. Sei que 50 foi triste, mas não para mim.”
“Na minha época, a do futebol bonito, os caras corriam 4 quilômetros por partida. Hoje, correm 13. As pessoas precisam saber disso. Hoje tem atleta. Antigamente, era jogador de futebol.” A observação é de Muricy Ramalho, técnico bicampeão brasileiro pelo São Paulo, eleito o melhor do país nos últimos três anos. Muricy é o que PVC chama de uma pessoa “do futebol”. Ser “do futebol” significa ver tudo. “Se estou de carro e passo perto de uma pelada, paro para dar uma olhada”, diz o técnico. “Dizem que moderno é usar computador, fone. Bobagem. Moderno é ver tudo. Eu vejo. Tudo, tudo, tudo. Para falar de futebol comigo, tem que ser muito bom.” Se Muricy pudesse dar um único telefonema para se informar sobre um adversário cujas características desconhecesse, para quem seria? “Depende. Gosto do Ostermann, do Paulo Cesar Vasconcellos, do Alberto Helena, do Tostão. Mas se o time fosse daqui, eu ligaria imediatamente para o PVC. Sabe por quê? Porque o PVC me telefona. Quer saber do clima, do ambiente, de como foi o treino. Se ele faz isso comigo, faz com os outros.”
Vanderlei Luxemburgo foi o único técnico que não quis dar declarações sobre o comentarista. O Santos que dirigia fez partidas medianas no final de 2007. PVC atribuiu a performance ao desinteresse do técnico. “Apático como está, Vanderlei é o ex-melhor técnico do Brasil”, escreveu. Luxemburgo nunca mais retornou ligação. A estocada foi fatal. Falar de caráter é coisa que se tira de letra. Já diagnosticar, quem sabe?, os primeiros sintomas da decadência profissional, isso não se perdoa.
É provável que, daqui para a frente, PVC tenha de arregaçar cada vez mais as mangas. As tais pranchetas a que se referia o técnico Cuca acabaram por atrapalhar a vida de muito treinador. Muricy Ramalho deu um jeito nisso: “Alguns desenhos táticos ele erra. Já errou comigo.” Muricy abre um largo sorriso: “E errou porque eu menti”. Não foi o único. “Olha, vou confessar uma coisa. Às vezes ele me liga, eu penso bem e decido mentir para ele”, conta Cuca. Para não perder jogo, cada vez haverá mais gente mentindo para PVC.
Com exposição cada vez maior, PVC tem consciência das propostas que virão para que deixe a ESPN, onde ganha 18 mil reais como comentarista e chefe de reportagem; completa os rendimentos com 2 mil da rádio Eldorado e 5 mil do jornal Lance. Um diretor da Globo/Sportv se referiu a ele como “um sonho de consumo”. PVC não pensa em sair. Não só porque gosta de onde está, mas por temer que o queiram pelas razões erradas. “Eu não sou um jornalista para a Globo. Se ela convida alguém, é porque essa pessoa está se tornando uma pequena celebridade. Eles querem o personagem PVC, não o jornalista, e o personagem tem um prazo de validade diferente. Já se a Folha me convida, é pelo jornalista.” Admira a Folha, ainda que tenha uma boa frase sobre a cobertura esportiva do jornal: “É o melhor e talvez o único caderno de política de esportes do mundo, mas às vezes fica faltando o caderno de esportes”. O jornal já quis abrir uma conversa, mas PVC preferiu ficar no Lance, no qual colabora há anos. Não foi a única tentação. A Record também tentou contratá-lo, mas PVC não fala do assunto. Dizem que sofreu – o dinheiro era muito – , mas acabou recusando.
Assim, por enquanto, ele poderá ser visto todos os dias na ESPN. Quem quiser saber que o presidente Café Filho foi goleiro e fundador do Alecrim Futebol Clube, que pergunte a outro. Ou espere por um deslize. Volta e meia, sem querer, PVC saca do seu hipocampo uma informação arquivada no escaninho das irrelevâncias. Numa mesa-redonda em outubro, um leitor da cidade de Palhoça mandou uma pergunta por email. Instalou-se a dúvida na mesa. Onde ficaria Palhoça? Dois ou três arriscaram “Santa Catarina”, entre eles PVC, que comentou baixinho, como que para si mesmo: “Tem o Guarani de Palhoça…”
Leia Mais