IMAGEM: VERS L’INCONNU [RUMO AO DESCONHECIDO]_GAO XINGJIAN_1993
A busca, noite adentro
O que eu quero é o breu da noite como condição, como algo no qual eu possa afundar e me dissolver
Per Petterson | Edição 32, Maio 2009
Às vezes eu saio para caminhar à noite. Não só no verão, quando a luz escorre do céu o dia inteiro e também de noite, e fica fácil enxergar longe, mesmo bem depois da meia-noite, e tampouco só no inverno, quando camadas grossas de neve irradiam luz em direção verticalmente oposta, do chão para cima, como o piso da discoteca londrina em que dancei certa vez (mas isso faz muito tempo). Se estiver suficientemente frio você tem vontade de dançar, é verdade; de ouvir o rangido seco das botas encontrando a neve a cada salto que você dá. O som do sapateado na estrada de campo numa noite de janeiro! É bom ter a cabeça coberta pelo capuz, bom que ninguém possa ver o teu rosto ruborizado. A época mais escura nesse vale é no final de novembro, antes de a neve assentar, quando tudo que posso ver ao abrir a porta e pisar na soleira são as luzes externas de uma outra chácara na encosta em frente, e ao meu redor os campos lavrados pelo outono engolem e sufocam – cada centelha, cada faísca, cada chama, sem devolver nada. Então, se eu não puder dormir ou não quiser dormir, provavelmente vestirei meu casaco, em geral o casaco de marinheiro com que visto os meus personagens nos romances que escrevi, e irei para o pátio. A lanterna fica em casa. O contraste que ela produz ao ser ligada e o raio de luz cortando a noite, dividindo tudo entre aqui e ali, podem despertar novamente o medo do escuro que eu tinha quando era pequeno e que já quase desapareceu, mas em certas situações, em certos cruzamentos mentais e geográficos que sou incapaz de calcular ou antever, ele me atinge com força e me deixa tão rijo de terror que nas minhas piores fases trago comigo a minha faca de Creta. Seguro-a com força pelo cabo e deixo exposta a lâmina afiada de metal, pronta para ser usada contra todos que se esgueiram à minha volta e preenchem completamente a escuridão com seus corpos viscosos, irados e selvagens, dispostos a me atacar na primeira oportunidade.
E nesse momento sinto o frio agudo me queimar a nuca e mesmo assim dou o primeiro passo e percorro todo o caminho até o vale.
Na maioria das vezes não é assim. Sem faca nem lanterna, desço a encosta que sai do Portão (é como se chama o lugar onde moro). Às vezes um dos meus cães me faz companhia – de preferência Laika, que é mais jovem e tem menos tendência à preguiça –, às vezes saio sozinho, quando suspeito que meu alce favorito está parado no lugar de sempre, mascando e cochilando entre os arbustos ao lado da estrada que corta Dæsjroa, ou Dalsroen, como aparece em alguns mapas. Não que o alce tenha medo de Laika. Ele não se mexe um centímetro por mais que a cadela fique latindo, e Laika sabe que o alce não tem medo, e como ele não bate em retirada Laika não pode persegui-lo. A frustração dela é tão grande que ela late sem parar até quase se partir ao meio. E eu também, eu me parto ao meio; tudo isso é barulhento demais, não quero que a minha noite seja assim. Por isso prefiro caminhar sozinho. Não preciso necessariamente de companhia. O alce pode ficar lá nos arbustos, por mim não tem problema, eu gostaria de saber que ele está lá e quem sabe até poder escutá-lo, mas apenas como um componente da noite que percorro, pois também quero fazer parte dessa noite.
O que eu quero é o breu da noite como condição, como algo no qual eu possa afundar e me dissolver; o que eu quero é que a escuridão se infiltre nos meus olhos e que o meu corpo saia flutuando para que deixe de ser tão nítido, ou tão importante quanto ele me costuma parecer, a ponto de, devo admitir, eu me pegar escutando os seus sinais como um monomaníaco ou um hipocondríaco; o que eu quero é dissolver um pouquinho a fronteira entre corpo e não-corpo, talvez consumar uma tênue osmose ali onde começa um e termina o outro; borrar. É o que eu quero quando estou farto de mim mesmo, do meu rosto no espelho, das palavras que ponho na tela, farto do gosto metálico que sinto na boca ao me representar dia após dia, quando a relação proporcional entre eu e eu é de 1:1, só que não exatamente, e o asco e o desdém por mim mesmo vazam pelas fissuras na borda, ali onde a discrepância impede que a fita adesiva da vida grude como deveria.
E me pergunto: terá sido assim para os que se sentiram atraídos pelo grande deserto, o Saara, no livro Desert Divers [Mergulhadores do Deserto], de Sven Lindqvist[1] (que acabo de ler pela terceira vez e no qual penso com frequência); terá sido assim para Saint-Exupéry, para Isabelle Eberhardt[2] ou para os outros naquele livro, será que eles queriam se apagar, será que o Saara era a noite deles, e que não fizeram outra coisa senão pensar com mais ambição, com uma vontade maior do que a minha, estancado em pé no frio, inquieto e me coçando todo, com apenas essa noite avançada de outono à minha disposição? E talvez eu pare por aqui. Mas entendo o anseio, aquela atração, quando me encontro de repente numa estrada escurecida, como agora, com os braços abertos como as asas de um avião, um avião de rota de correio, talvez, indo de Dacar a Casablanca como o avião de Saint-Exupéry; a máquina vibrando, tão quente e próxima do meu corpo, mas também um grande silêncio envolvendo minha cabeça, meus pensamentos, e assim caminho pela escuridão para confirmar o espaço ao meu redor. Para perceber como é potencialmente infinito e portanto capaz de proporcionar uma liberdade quase esmagadora, da mesma forma que o deserto é potencialmente infinito, como o foi para Sven Lindqvist quando leu sobre o Saara e sonhou com o Saara quando garoto, e como seguiu sendo quando o visitou pela primeira vez, já um homem de meia-idade, depois do fim de um casamento. Aquela separação lhe deu a liberdade, o marco zero, a possibilidade de conseguir virar a cabeça e enxergar quem ele era quando, muito tempo atrás, ainda criança, vislumbrou o instante do tempo em que agora se encontrava, de repente virou-se para trás e olhou para o passado, movido pelas circunstâncias, e podemos imaginar como os olhares dos dois se encontraram, um deles límpido e azul, o outro quem sabe um pouco mais desbotado, e o mais velho viu a pergunta no olhar do mais novo: quem você se tornou, o que foi capaz de fazer? E ele teria sido obrigado a responder: Não, ainda não estive no Saara. Viajei por toda parte, escrevi vários livros sobre o que vi, levantei diversas perguntas importantes, mas ainda não estive no Saara. Posso ir agora. Irei agora. Sei que devo.
Flutuo na escuridão como um homem vendado, mas de olhos bem abertos, com os braços à frente agora, como vi nos filmes. O Saara pode parecer um pouco demais, um pouco grande; Lindqvist e seus mergulhadores tinham tanta coisa assim a delir? Preciso do Saara ou essa noite de novembro em Dæsjroa é suficiente? Difícil dizer. Depende de qual é o meu problema, se é que se pode dizer que há um.
Em seu livro Bench Press [Levantamento Supino], Lindqvist escreve: “Saara significa ‘vazio’. Também significa ‘nada’. É esse grande nada vazio que me atrai. Parto amanhã.” E eu compreendo isso, sei que rumo ele está tomando, e ainda assim penso: Como pode um homem tão viajado, tão culto e sábio, com tanta substância, desejar o “nada”? Ou por que nós o desejamos? Pois nós o desejamos. E se o Saara é a noite dele, será que ele e todos aqueles sobre quem escreve, como Michel Vieuchange,[3] por exemplo, desejam que a manhã finalmente chegue? Vieuchange foi morto pelo Saara. Isabelle Eberhardt foi morta pelo Saara. Não era isso que desejavam, definitivamente, mas morreram mesmo assim. Eu desejo que a manhã chegue. Disso tenho certeza. Se penso um pouco. Não quero flutuar nessa noite para sempre. Só naquelas ocasiões em que sinto a necessidade de ser delido, até que meu corpo volte a ser como a bolha que flutua, estática, à altura do nível espiritual certo, no seu lugar, apagando assim o que chamamos de alma.
Em Bench Press, um Lindqvist de meia-idade está deitado no banco de uma academia, o suor escorrendo pelo rosto, tentando afastar com halteres a morte do pai, e também o próprio divórcio. Mas foi preciso parar na morte, ele não foi adiante. Nem toda dor pode ser suspendida. Eu mesmo tentei, embora não da mesma forma, não levantando peso. O que faço é me afastar caminhando, e nesses casos não somente à noite, mas simplesmente caminho, rápido e para longe; cada vez mais rápido, quilômetro após quilômetro, até deixar para trás o que preciso esquecer, até que os cães se recusem a prosseguir, especialmente Lyra, minha mais velha, que começa a tremer toda vez que calço meus tênis de corrida marrons. Oh, não! Oh, não! Vejo nos olhos dela, não esses tênis, não de novo! E funciona, com óculos escuros contra a luz diurna, desde que você não pare de se mover, desde que o seu fôlego acelere e abafe todos os outros ruídos e que a dor nas pernas aumente tanto nas subidas que se você parar para senti-las será incapaz de dar mais um passo, um fluxo cortante te atinge rápido e com força e fica difícil engolir, fazer descer o que ameaça subir. Então a noite escura e disforme é tua única fonte de salvação, a noite que você pode atravessar dançando se quiser, como em câmera lenta, que pode atravessar como água, como o lago Hemnes talvez, em algum ponto da paisagem adiante que não enxergo agora, no qual há uma ilhota onde vive uma lontra; deslocar-se pela água escura daquela maneira bonita e esguia, deve ser ótimo, ou por essa noite que esconde até a minha idade, um Billy Elliot de 51 anos dançando pela estrada que cruza Dæsjroa. E Lindqvist sai da sua academia e vai embora, de Bench Press para Desert Divers, primeiro num vôo barato para Agadir, no Marrocos, e depois para o leste em direção ao deserto, num pequeno Renault alugado, para cumprir a promessa que fez a si mesmo quarenta anos antes.
“Hoje em Bench Press há uma tempestade de areia se armando”, ele tinha escrito. “É a mesma que costumava irromper na minha infância, logo antes de cair no sono. Ela cai sobre mim quando estou deitado no banco, como uma neblina que guincha e morde.” E então ele aponta o carro na direção de uma tempestade de areia de verdade. A visibilidade some, o carro se arrasta sobre a neve, areia penetrando por todas as frestas, ele mastiga areia, esfrega os olhos, sonha com uma garrafa de água mineral, marca Oulmez, e não está insatisfeito. Nem eu. Não é isso que estou querendo dizer. Mas talvez eu possa dizer que eu tenho um problema. Pois eu devia estar sob um teto agora, na minha casa, numa escuridão diferente dessa, na cama que minha esposa preparou tão caprichosamente, dormindo e descansando antes de um novo dia de trabalho diante do teclado e de uma hora ou duas empunhando um machado. Mas não consigo me acomodar, a cama se torna a prisão da minha mente, a casa fica pequena demais, portanto vou até o corredor, visto meu casaco de marinheiro e penso: eu não temo nada, e saio ao encontro da noite.
“Os que buscam o esquecimento” é o título de um dos contos de Isabelle Eberhardt, a maior das mergulhadoras do deserto, e pode ser que muitos façam isso: procurem o esquecimento, por razões que não julgarei agora, não aqui sozinho nesta estrada de chão batido, mas para encontrar esse esquecimento, para serem deixados para trás, podem permitir que o deserto faça o papel de uma grande borracha, que atue de forma tão absoluta como o apagador no quadro-negro, que no fim não se possa mais ouvir nada no vazio, a não ser o som frágil dos sinos da ausência. Outros buscam a mudança, querem mudar a si mesmos completamente, e para consegui-lo precisam atravessar a noite, penetrar no deserto e talvez deixar que o vento seco e abrasivo da mudança sopre através dos seus corpos e limpe as suas almas; deixar que o deserto os reeduque para coisas elementares. De todo modo, eles vieram, os mergulhadores do deserto, de suas diferentes origens, cada qual ansiando por um pedaço dessa experiência, todos apontando para o mesmo centro, para o Saara, a determinação mental e coragem dependendo do tamanho da sinceridade de cada um deles. Estariam tentando ser corajosos, talvez, para que nunca mais precisem ter medo? Será que buscavam aquilo que Bob Dylan canta em It’s Alright, Ma (I’m Only Bleeding): “Você se perde, reaparece, descobre de repente que não tem nada a temer”? Ousar se perder para possivelmente se reencontrar, e ter a coragem necessária para isso, pois não se pode ter a certeza de um dia ressurgir. Quando você finalmente se entrega. Aquele momento desprovido de peso! E você terá a ousadia de realmente ser aquele no qual se torna, aquele que você não pode conhecer de antemão? Como Rimbaud, quando levou a cabo uma ruptura total e parou de escrever a poesia que revolucionou a literatura francesa e européia e simplesmente desapareceu aos 25 anos de idade ao se mandar para o Iêmen e para o nordeste africano, ressurgindo como outra pessoa, aparentemente com outras qualidades e talentos, e dizendo: Je est un autre, o que na verdade contém um erro gramatical, pois é óbvio que é Je suis un autre, sou outro, mas ao dizê-lo com o verbo na terceira pessoa ele fez de si mesmo um objeto e se alienou. Então ele se esqueceu, e depois se perdeu; é o que arriscam interpretar meus amigos que sabem francês.
Parece fazer sentido, concordo, mas caminhar por essa noite também é se perder um pouquinho; seguir em frente quando mal se pode enxergar as próprias mãos: existir, pensar, mas ser invisível aos outros, a si mesmo; estar quase apagado. Chego a fechar os olhos, o que não é realmente necessário, e saio da estrada para pegar um daqueles caminhos que cruzam a serra do Portão, difícil de ser vista mesmo com a visão noturna intacta, mas conheço o trajeto e sei onde preciso virar; eu o medi passo a passo ao longo dos anos e todo o círculo de movimento está alojado no meu corpo com uma bússola brilhante ao centro. Há também um detector em algum lugar ali, talvez próximo ao coração, e de qualquer modo fecho os olhos porque faz-me sentir bem.
A certa altura da trilha sinto a pressão das árvores dos dois lados, cada vez mais numerosas; o terreno sobe, deixo meus pés sentirem as pedras e raízes no caminho em aclive e eles fazem luz a partir disso, mas engulo em seco e penso: afinal qual é o meu problema? Tenho 51 anos. O espaço à minha volta já não é infinito. Essa é a verdade. A eternidade veio abaixo, e de repente a repulsa pode chegar como um vento maligno e fazer tudo que você pretende realizar, todos os teus objetivos e intenções se desmancharem nos teus dedos e dentro da tua cabeça e serem soprados para longe como um pó seco e cinza. O que importa, nesse caso, é andar rápido de dia e no escuro à noite, ou devo me virar e olhar para trás, como fez Sven Lindqvist, e encarar o meu próprio olhar na outra ponta do túnel do tempo? Abro os olhos, encaro a escuridão e imediatamente os fecho, pois não adianta nada, não faz diferença. Muito ou pouco, vejo a mesma coisa. Abertos ou fechados.
Abertos ou fechados; é a mesma merda, penso, e uma fúria vai se acumulando em mim, como costuma acontecer quando sou acometido por alguma coisa contra a qual nada posso fazer. Mas posso vê-lo, é claro, embora seja difícil capturar o seu olhar. “Ei, você, olhe para cá!”, grito em meio aos pinheiros que sei estarem ao meu redor, e minha voz soa rasgada e muito estranha nessa noite escura. Mas ele não responderá, se contentando em olhar timidamente para o chão no seu caminho da estação da praça da Ferrovia até a loja Narvesen na esquina da rua do Parlamento, em frente ao prédio do parlamento. Aquela loja era mais proletária, eu acreditava naquela época, final dos anos 60, do que a livraria Cammermeyer na rua Karl Johans, porque tínhamos uma loja Narvesen em Veitvet também, que era onde eu morava, nos arredores de Oslo, e era possível permanecer anônimo na estreita e sombria rua Stortingsgate, enquanto a Karl Johans era larga e vivia banhada em luz. Mas na loja Narvesen eles também tinham montanhas de livros; lá eu podia comprar Keats, Shelley e Poe em edições americanas baratas (em vez das inglesas na Cammermeyer), e foi o que fiz, pois naquele ano eu andava romântico e o que eu lia tinha de ser sobretudo bonito de ler, e comprei um livro de poemas chineses em inglês chamado The White Poney [O Pônei Branco]. Nele me deparei pela primeira vez com Li Po e Tu Fu, e sobre os poemas deles havia um céu como eu jamais tinha visto em lugar algum, e sem dúvida parte disso tinha a ver com a estranheza deles e com a minha leitura viciada; uma espécie de orientalismo da minha parte, mas quem disse que eu me importava? E comprei os poemas de Obstfelder numa edição de bolso, e o romance In Summer [No verão], de Gunnar Larsen, e fui lendo sentado no vagão do metrô até o vale Grorud, passando por Hasle, Økern, Vollebekk e todas as outras estações. Das pessoas que conhecia, eu era a única a ler aqueles livros. Não fazia segredo deles, tampouco os discutia com os outros, e ninguém sabia que em determinados domingos eu ia sozinho até a cidade e andava da estação central até a rua Møller para entrar discretamente na pequena igreja presbiteriana que havia lá, e me sentar no último banco para poder escutar o inglês arcaico que usavam na liturgia. Fazia isso porque tinha a impressão de que era semelhante ao inglês de vários poemas que andava lendo e se parecia com a maneira como falavam no Romeu e Julieta de Zeffirelli, que eu tinha visto no cinema naquele ano. Era novamente a estranheza, o belo, o que era diferente de tudo que eu via na minha vida cotidiana, era isso que eu queria, descobrir que aquilo poderia me transportar para outro lugar. E ao mesmo tempo não queria ir a lugar nenhum, queria permanecer onde estava e queria que o lugar onde estava pudesse conter tudo que me era necessário. Mas não continha! E se continha, era invisível para mim, e pelo menos uma vez por dia eu tinha a impressão de que podia partir ao meio, como acontece com Laika quando percebe que não pode ser uma cadela obediente e feliz, e ao mesmo tempo perseguir o alce.
Eu o vejo sentado no banco dos fundos da igreja presbiteriana da rua Møller, com o casaco azul-marinho de marinheiro no colo, os olhos inclinados em direção ao banco da frente, um leve rubor nas faces, e é esquisito mesmo, admito sem hesitar, porque ele nem ao menos é cristão. Tentou com muita força tornar-se um, por pura necessidade, levando sua força de vontade ao extremo, mas não deu certo, o resultado é apenas constrangimento e desgosto. Então o que diabos está fazendo ali? O que estou fazendo ali? Por que permaneço tanto tempo ali sentado?
Permaneço sentado à espera de me tornar completo. Mas não me torno completo. Só piora, e é a mesma coisa quando estou em casa, quando passo andando pela casa onde moro, com os vizinhos sentados nos degraus das suas portas, bebendo café e conversando, e passo por eles vestido com o meu casaco de marinheiro e com o meu cachecol comprido jogado nos ombros como se fosse um artista. Ninguém mais usa cachecol dessa maneira, e eles gritam para mim: “Como é que vai, Persha, toma cuidado com os olhos, viu?” Pois eles sabem que leio muito, meu pai lhes contou, viram com seus próprios olhos, e acham que pode me fazer mal. E gosto tanto deles, dessas pessoas nessa casa comprida e nas outras que a cercam; conheço-as muito bem e elas realmente desejam o melhor para mim. Se importam comigo, e gostaria de poder conversar com elas sobre Tu Fu, sobre Obstfelder e sobre esse livro novo que acabo de ler chamado The Myth of Wu Tao-tzu [O Mito de Wu Tao-tzu], do sueco Sven Lindqvist. Trata de um homem que deseja submergir na arte, a qual julga perfeita e irretocável; saciar a necessidade de harmonia e beleza e ao mesmo tempo escapar do mundo por uma saída de emergência, como conseguiu fazer o sábio e artista Wu Tao-tzu quando escalou a própria pintura dentro da sua cela e desapareceu. Só que não funciona, não há como ele repetir o feito, porque as paredes do mundo estão despencando à volta desse homem, à volta de Sven Lindqvist nos anos 60, e de qualquer forma não tenho como falar desses assuntos, ainda não tenho palavras para descrevê-los, nem mesmo para mim mesmo. Então grito de volta: “Não se preocupem, meus olhos ainda aguentam um tempinho”, enrubesço, aceno para eles e sigo andando, deixo a casa para trás, chego na rua e passo pelo shopping center em direção ao trem que me levará à cidade onde estão todas as livrarias e lojas de discos, e a igreja presbiteriana. Mas assim que subo a colina e minha casa some de vista, parto em dois e fico parado, ofegando, com as mãos apoiadas nos joelhos, antes de conseguir ir em frente. Não sei por que sou desse jeito, não sei se é comum, se os outros sentem a mesma coisa, ou se é algo que acontece somente comigo, mas, para ser bem honesto, é insuportável. Que o mundo não seja inteiro, que o mundo não seja completo, que talvez eu deva decidir me afastar disso tudo, que se quiser fazer alguma coisa da minha vida terei de abandonar tudo que me pertence, tudo que sei fazer e tudo que conheço; abandonar essas pessoas sentadas nos degraus da porta em frente à casa onde moro, bebendo café e conversando sobre o que elas conhecem; dar-lhes adeus para sempre. E se preciso fazer isso para poder evoluir, como se diz por aí, então que sentido faz?
O Martin Eden de Jack London[4] fez isso, deixou para trás tudo que era dele em troca da cultura que via nas classes educadas e na burguesia – a poesia, a filosofia, tudo – porque isso lhe parecia tão atraente, tão sábio, tão belo e necessário; queria elevar-se, queria ter o que eles tinham. Queria cruzar a fronteira. Assim, quando surgiu a oportunidade ele desembarcou em São Francisco e entrou nas mansões dos bairros abastados para conversar com as pessoas que moravam nelas, para confabular (como dizem), para escutar, para tomar livros emprestados, para ser instruído, e ele temia que ao atravessar aqueles recintos com o seu andar de marinheiro os seus ombros fossem derrubar e espatifar no chão toda aquela porcelana, mal conseguia segurar o garfo e a faca como eles, mas estava determinado a aprender o que sabiam e muito mais. E conseguiu, com um esforço tamanho que ainda me comove quando penso no passado e me vejo com a cabeça enfiada no livro que hoje provavelmente é ilegível, mas que me devastou na ocasião, porque quando ele atingiu o seu objetivo, quando Martin Eden pôs a mão na mais recôndita porta, percebeu que as pessoas em que se inspirava, e que respeitava tanto, no fundo não se interessavam como ele, que para elas essa cultura não tinha qualquer importância exceto como fachada, um verniz, um véu cobrindo o que realmente importava – possuir, ter poder – e que para além disso o mundo delas era um lugar vazio, estéril e duro. Enojado, ele deu meia-volta e retornou para as partes da cidade que antes eram dele, para os marinheiros e operários. Mas era tarde demais, a corda tinha sido rompida, eles já não podiam se entender, ergueu-se uma parede de vidro que ele era incapaz de atravessar e, em desespero, ele entrou no seu barco, velejou até a baía de São Francisco, pulou na água e nadou para o fundo, para o fundo, até que a pressão que o puxava para baixo fosse mais forte que a pressão que o empurrava para a superfície, mais forte que a vontade de viver.
É fácil perceber agora que esse livro influenciou muito a minha vida, embora eu jamais tenha tomado consciência plena disso, e é claro que tem algo de muito errado nas conclusões de Martin Eden. É óbvio para todo mundo, e para mim também, mas nunca cheguei a descobrir exatamente qual é o erro, pois de algum modo ele também está certo. Mas nada no mundo me faria ter o mesmo destino que ele, jamais terminaria meus dias, desesperado, no meio das algas e sargaços do Bunnefjord, ou dentro do lago Alun entre percas e lúcios, e é possível que me falte a coragem necessária, tampouco faria como Rimbaud e me tornaria um outro daquela maneira, um vendedor de armas e possivelmente um traficante de escravos na África, portanto tentei reunir tudo dentro do meu corpo, os dois lados ao mesmo tempo, juntando eu a mim, aquele que fui e aquele que poderia ter sido se em algum momento eu tivesse me entregue, tento fundi-los nessa única pessoa que sou, mas raramente consigo, porque na realidade não há espaço suficiente; posso acabar partindo ao meio. Mas enquanto for esse que sou, haverei de sair caminhando pela noite como agora, quase esquecido por mim mesmo, com a escuridão se infiltrando nos meus olhos, com os braços abertos como as asas de um avião, dançando pelo caminho sem ser visto.
E então as nuvens acima se esgarçam, saem correndo em todas as direções e em grande velocidade como se algo importante estivesse prestes a acontecer, e vejo a lua sobre o Portão adiante; uma lua redonda e luminosa sobre o celeiro, e a casa onde moro exibindo-se branca e nítida na luz azulada, e ao me virar e olhar para a floresta às minhas costas projeto uma sombra clara e bem definida. Sinto no mesmo instante: a cisão entre corpo e não-corpo é afiada como uma faca. Dói.
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[1] O sueco Sven Lindqvist, nascido em 1932, é autor de mais de trinta livros de história, filosofia, ensaios, aforismos, autobiografia, prosa documental, reportagens e relatos de viagem. Em Desert Divers (Ökendykarna, 1990), o autor parte de uma viagem pessoal ao Saara para apontar o racismo, a exploração sexual e a matança presentes nas histórias de alguns exploradores e viajantes que foram seus heróis de infância. Bench Press (Bänkpress, 1988) intercala a aventura saariana com memórias de infância e reflexões sobre o corpo e a mente, halterofilismo e o culto da força.
[2] Isabelle Eberhardt (1877-1904) nasceu na Suíça, filha de mãe aristocrática e um pai anarquista de origem armênia. Em 1897, mãe e filha se converteram ao Islã durante uma viagem pelo norte da África. Em 1899, já órfã, Isabelle passou a vagar pelo continente africano disfarçada de homem e travou contato com uma irmandade sufista secreta chamada Qadiriyya. Casou-se com um soldado algeriano em 1901 e morreu numa enchente-relâmpago em 1904, dentro de uma cabana de barro na Argélia.
[3] O aventureiro francês Michel Vieuchange (1904-1930) foi o primeiro europeu a alcançar a mítica cidade de Smara, vedada aos cristãos, no coração do Saara. Desconhecendo qualquer idioma local e passando por duras provações, caminhou 1 400 quilômetros pelo deserto e conseguiu retornar à civilização, mas morreu poucos dias depois de disenteria. Seu diário foi publicado pelo irmão Jean em 1932.
[4] O norte-americano Jack London (1876-1916) é autor de narrativas clássicas de aventura como Caninos Brancos, O Lobo do Mar e O Chamado da Floresta. Martin Eden é protagonizado por um escritor de classe baixa que busca ascender à elite literária, sobretudo para poder se aproximar da mulher que ama, Ruth Morse, de família burguesa. O desfecho suicida da história de Eden é, segundo o próprio autor, uma crítica ao individualismo.