Planta de apartamento com quartos de empregada: “Quando me lembro do quartinho, penso como eu era uma criança sozinha. Era eu, minha mãe e a nossa solidão”, diz Ana Paula Pereira
A dependência
As histórias de mulheres e seus filhos que lutaram para sair do quarto de empregada
Tiago Coelho | Edição 191, Agosto 2022
Com este texto, a piauí dá início à publicação de um conjunto de reportagens e portfólios fotográficos que integram o projeto Querino, uma parceria entre a revista, o Instituto Ibirapitanga e a Rádio Novelo. A iniciativa pretende rever a história brasileira sob uma ótica afrocentrada, no ano do bicentenário da Independência, e inclui um site, que já está no ar, e um podcast com oito episódios, que estreia em 6 de agosto.
O projeto é liderado pelo jornalista mineiro Tiago Rogero, com consultoria da historiadora Ynaê Lopes dos Santos e a participação de 42 profissionais, dos quais 28 são negros. Seu nome homenageia o intelectual e abolicionista baiano Manuel Querino (1851-1923), que realizou estudos pioneiros sobre o papel dos africanos e seus descendentes no desenvolvimento do Brasil.
No período colonial, havia dois tipos de senzala para os escravizados no Brasil. Uma, longe da casa-grande, destinada aos que trabalhavam na lavoura. A outra, mais próxima, ocupada pelos negros que cuidavam dos serviços domésticos. Após a abolição da escravatura, uma variação da senzala permaneceu na arquitetura das casas brasileiras, na forma de edículas onde dormiam os empregados fixos de uma família, desprovidos de qualquer amparo legal, recebendo salários exíguos, quando havia. Como a senzala, a edícula ficava do lado de fora da moradia principal.
O país se modernizou, as cidades cresceram, com edifícios brotando em todo canto nas metrópoles. A senzala, porém, continuou fazendo parte do Brasil: os construtores e arquitetos jamais se esqueciam de acrescentar aos apartamentos, grandes ou modestos, o “quartinho de empregada”. “São quartos que, em média, têm 6 m2 e onde cabe no máximo uma cama de solteiro, um pequeno armário e, quando muito, algum eletrodoméstico. É quase uma cela, uma herança do período escravocrata”, afirma o arquiteto e urbanista Ricardo Trevisan, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília e um dos autores, com Maíra Boratto Xavier Viana, do ensaio O “Quartinho de Empregada” e o Seu Lugar na Morada Brasileira.
Além do espaço apertado e do mobiliário básico, há outros elementos que aproximam o “quartinho” de seu ancestral escravocrata. “A falta de ventilação e a pouca iluminação são parecidas, e esses quartos reproduzem o mesmo esquema de alcovas voltadas para a área de serviço, como nas senzalas”, explica Trevisan. A procuradora Silvana da Silva, do Ministério Público do Trabalho do Rio de Janeiro (MPT-RJ), ressalta a precariedade em que vivem as empregadas: “As condições de conforto e higiene são muito inferiores a qualquer outra parte da moradia. É um padrão que a gente vê ainda em muitos apartamentos e casas.”
Nessa modalidade de servidão, as empregadas domésticas moram na casa dos patrões e estão disponíveis de forma quase permanente para o serviço, de dia e de noite. Embora vivam no fundo dos apartamentos, distanciadas da família que as emprega, elas têm sua privacidade sempre devassada e sua liberdade restrita às opressivas paredes do quartinho. “Com esses cômodos no interior dos apartamentos, o empregado fica sob a égide do que o patrão permite ou não”, diz Trevisan.
Com a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 478, aprovada em 2015, os empregados domésticos passaram a ter os mesmos direitos que os demais trabalhadores urbanos e rurais – sob protestos de uma parte da classe média urbana, que achava que a nova situação iria tornar financeiramente inviável a contratação de empregadas. Chamada PEC das Domésticas, a lei, de fato, criou dificuldades para os patrões manterem os empregados em casa sem horário para ir embora, pois isso passou a significar o pagamento de horas extras e outros encargos. “Pesou no bolso. Assim, os quartinhos foram se revertendo a outros usos, seja depósito, seja escritório, como ocorreu em muitas casas durante a pandemia”, afirma o arquiteto.
Apesar disso, o quartinho, também chamado “dependência de empregada” e que normalmente inclui um banheiro, não sumiu dos novos prédios. Havendo espaço, ele reaparece nas plantas e costuma ser um atrativo para os compradores. Se não for possível, que haja pelo menos o banheiro, um cômodo que nunca deixa de constar dos apartamentos, mesmo os mais simples. “Até escritórios de arquitetura renomados ainda projetam os quartinhos, mas com a possibilidade de o comprador reverter o espaço para outra função”, diz Trevisan. “O que não muda nunca nos projetos é a disponibilidade de um banheiro de serviço exclusivo para os trabalhadores.”
Durante décadas, milhões de mulheres, sobretudo negras, viveram nos quartos de empregadas no Brasil, às vezes com um filho ou uma filha. Muitas ainda vivem.
A piauí conta a história de quatro delas. Os relatos descrevem mais que a vida no espaço apertado do quartinho: eles falam sobre o cotidiano opressivo dessas empregadas, as insidiosas maneiras com que foram exploradas em âmbito doméstico, a dependência emocional que os patrões e seus filhos produziram nessas mulheres, que, a duras penas, um dia conquistaram sua liberdade.
O QUARTO DA REVOLTA
Numa folha de papel branco sobre a mesa da sala de uma casa simples na Baixada Fluminense, João Miguel Araújo, de 41 anos, desenha de memória o quartinho de empregada em que viveu por quase vinte anos com a mãe. “Devia ter 1,80 por 2 metros. Dá o quê? Pouco mais de 3,5 m2”, ele calcula, enquanto risca o papel. “Cabia um beliche, um armário pequeno e a máquina de lavar da família. E não tinha janela, só um basculante”, conta, agora desenhando o mobiliário.
“Vai lá dentro, meu filho, e pegue as fotografias”, diz Vera Leide da Silva, de 69 anos. Ele retorna com uma caixa, de onde seleciona algumas fotos. Em uma delas, Araújo está diante de uma mesa de aniversário. A festa é para ele: um garotinho negro que comemora seus 6 anos cercado de crianças brancas na casa dos patrões. Sua mãe, vestindo roupas simples e uma touca de cozinheira, o ajuda a cortar o bolo.
Araújo apanha outra fotografia, em que uma mulher branca está sentada na cabeceira de uma mesa de jantar, cercada de filhos e netos. Atrás dela, está o menino João Miguel, com cerca de 8 anos, e a mãe, de uniforme preto de golas e barras brancas.
As fotos dentro da caixa são lembranças de família em dias de festa. Mas a touca na cabeça e o uniforme de Leide da Silva mostram que são também memórias da rotina de trabalho de uma empregada doméstica.
Ela nasceu em Ipojuca, no litoral de Pernambuco. Em 1968, ainda adolescente, foi trabalhar no Recife como babá de duas meninas gêmeas. Um dia, passava com as crianças por uma praça quando foi abordada por uma carioca, cujo marido trabalhava temporariamente no Recife. A mulher a chamou para cuidar de seus filhos. Leide da Silva aceitou. Um ano depois, o casal precisou voltar para o Rio de Janeiro e convidou a babá para ir com eles. Ela sonhava em conhecer a cidade, e aceitou.
No Rio, o casal e a empregada foram morar em Copacabana, no apartamento da mãe da mulher que contratara Leide da Silva. O imóvel tinha três quartos e, enquanto trabalhou como babá, a pernambucana dormia no quarto das crianças. Quando o casal se mudou com os filhos para o bairro do Grajaú, ela passou a trabalhar para a dona da casa e mudou-se para o quartinho na área de serviço. Dormia na cama de baixo de um beliche. A de cima era ocupada pela cozinheira.
Aos domingos, de quinze em quinze dias, Leide da Silva tirava uma folga. Em uma delas, conheceu o mordomo de uma família rica da Zona Sul carioca, e os dois começaram a namorar. Ela engravidou. Mesmo assim, Leide da Silva não parou de trabalhar, apesar dos enjoos contínuos, das dores nas costas e do cansaço. “Eu não podia reclamar porque a patroa dizia: ‘Ficou grávida porque quis. Podia ter evitado’”, recorda. Até a véspera de ter o bebê, em dezembro de 1980, ela evitou se queixar dos incômodos, tanto mais porque a cozinheira havia sido demitida. Quase todo o trabalho da casa estava agora em suas mãos.
Quando João Miguel Araújo nasceu, o quartinho passou a ser dela e do bebê. Leide da Silva havia terminado o relacionamento com o mordomo e não tinha para onde ir. Ela deixava o menino em um moisés enquanto trabalhava. Não teve licença-maternidade. A criança chorava muito, berrava. “A vizinha de cima uma vez gritou: ‘Vou te denunciar pra polícia por maus-tratos, esse menino chora o dia inteiro.’ Eu não estava maltratando ele. Era colo que ele queria, peito, atenção, mas eu tinha que fazer o serviço”, justifica. Até que uma amiga, também empregada, deu uma ideia: comprar um canguru usado na feira de Acari, na Zona Norte do Rio. Canguru é uma espécie de mochila na qual a mãe coloca o bebê. Leide da Silva passou a cuidar da casa com o menino agarrado ao peito ou preso às costas. Ele se aquietou, mas o cansaço dela aumentou, carregando aquele peso.
Araújo nasceu com alguns problemas de saúde. Na primeira infância, precisou ser hospitalizado para operar a garganta e o nariz, e Leide da Silva avisou aos patrões que ficaria com o filho até ele receber alta. “A patroa falou para eu voltar para o serviço e ainda disse: ‘Nenhuma criança internada no hospital morre por ficar longe da mãe.’ Mas eu bati o pé. Nunca que ia deixar meu menino sozinho.”
À medida que o garoto crescia, o quartinho ficava menor. Ainda hoje, Araújo se lembra de quando ficava sentado entre a cozinha e a área de serviço, vendo a mãe trabalhar. “Sempre que sinto cheiro de água sanitária, eu me lembro de minha mãe. Ela estava sempre com esse cheirinho.” No pedaço de chão que sobrava para circular no quartinho, ele se divertia com os brinquedos que tinha: pedaços de madeira, caixas de fósforo vazias e outros materiais descartados na casa. “Minha mãe ajudava financeiramente alguns parentes no interior de Pernambuco, por isso eu não tinha muitos brinquedos”, diz.
O menino entrou para a escola pública e começou a fazer amigos. Mas não podia levá-los para brincar no prédio em Copacabana. “Não era a minha casa, eu não era autorizado. Mas, ao mesmo tempo, era a única casa que eu tinha.” Ele insistia com a mãe para que o deixasse brincar na rua ou na praia, mas ela explicava que tinha muitas tarefas para fazer e não podia acompanhá-lo. Tampouco podia deixá-lo sair sozinho, pois eles moravam numa área de comércio muito movimentada.
Certa vez, Araújo inventou de brincar com um palito de fósforo perto do aquecedor a gás. A mãe correu para impedir e, assustado, o menino deu um pulo e quebrou o pé. A partir de então, a empregada autorizou que ele brincasse na área comum do prédio e nas escadas. Seu melhor amigo era Daniel, filho de outra empregada do edifício.
Quando se lembra do quartinho, Araújo tem de imediato uma sensação de desconforto e claustrofobia. No verão, o lugar era um forno. Nos dias frios, gelava. “Mas eu detestava mais ainda aquele banheiro.” O vaso sanitário do banheiro de empregada ficava bem embaixo do chuveiro. A máquina de lavar dentro do quartinho também irritava o menino. Aos sábados, quando podia dormir até mais tarde porque não tinha aula, ele era despertado bem cedo pelo sacolejo metálico do aparelho, batendo as roupas. “Se as máquinas modernas fazem barulho, aquele trambolho de aço dos anos 1980 sacudia que era um inferno”, relembra.
Na sua folga quinzenal aos domingos, Leide da Silva sempre dava um jeito de sair de casa com o filho. “Se ficasse em casa, a patroa dizia que eu tinha que limpar a cozinha”, ela conta. Os dois iam para a casa de parentes na Baixada Fluminense e retornavam à noite.
O garoto podia circular pela casa dos patrões e ver televisão em certos horários. Pela manhã, assistia a desenhos animados enquanto a dona da casa se ocupava com a leitura ou o tricô. Quando os netos dela chegavam, Araújo se juntava a eles para ver televisão em qualquer horário. Também comia as mesmas guloseimas que eram dadas aos netos. Assim, aos poucos, Araújo foi se integrando à família. “A dona da casa me ensinou as regras de etiqueta, para não causar vergonha a ela quando chegasse uma visita: não podia comer muito, não podia falar alto nem de boca cheia. Em resumo, eu não podia ser criança.”
Leide da Silva diz, com orgulho: “João era muito bem-educado. Quando os netos da patroa arrotavam ou não se comportavam à mesa, a avó deles dizia: ‘O filho da empregada não faz esse tipo de coisa.’” Araújo ouvia a família dizer às visitas: “Ele é pretinho, mas é muito bonzinho, educado.” Ou: “É filho da empregada, mas é como se fosse da família.” Ele comenta: “Quando eu ouvia isso, achava legal, achava que era de verdade. Mas eles diziam isso apenas pra se exibir aos outros. Nunca fui da família. Não tive acesso às mesmas escolas. Usava as roupas velhas dos netos. Se eu era da família, era bastardo. Tive um ensino muito ruim: fim da ditadura, educação destroçada. Não tinha nem noção do que fazer para entrar numa faculdade. Minha mãe não sabia me dar direcionamento nesse sentido.”
As festas de Natal são as piores lembranças de Araújo, como quando foram passar o fim de ano na casa de férias da família da patroa em Arraial do Cabo, no litoral fluminense. Araújo tinha 7 anos e ficou no quarto das crianças, Leide da Silva dormiu no quartinho, com a empregada que se ocupava da casa. Pela primeira vez, a mãe estimulou Araújo a escrever uma cartinha para o Papai Noel pedindo um brinquedo. Ela achava que não deixariam seu filho de fora.
Na hora da distribuição dos presentes, os netos ganharam os brinquedos mais disputados da época. Araújo ainda se lembra de alguns deles, como Pula Pirata e Pega Pulga. Ele desembrulhou o seu. “Ganhei uma fazendinha feita com tocos de madeira e vaquinhas em miniatura de plástico. Foi decepcionante”, conta. “Lembro que eu chorei muito. Por que Papai Noel tinha dado presentes bons para uns e para mim não?” A mãe também se lembra desse Natal: “Eu jamais poderia imaginar que eles não fossem dar o carrinho que o João tinha pedido. Tive que explicar pra ele que Papai Noel não existe.”
Na véspera do Natal, Vera Leide da Silva sempre acordava bem cedo para preparar o almoço que recepcionaria os parentes da matriarca. Depois, passava o dia ocupada com a preparação da ceia, enquanto seu filho se juntava à família da patroa. Ainda assim, ele se sentia sozinho, porque a mãe nunca estava com ele: continuava na cozinha. “Enquanto moramos lá, não me lembro de um Natal que eu tenha ficado o tempo todo junto da minha mãe. Ela sempre estava trabalhando. No Réveillon, quando dava meia-noite, todo mundo se abraçava e confraternizava na sala. Eu ia na cozinha e dava um abraço nela, desejando feliz Ano-Novo.” Já maior de idade, depois da ceia de Natal, Araújo ia aos bailes funk das favelas próximas encontrar os amigos, beber e esquecer das tristezas.
Depois da festa, Leide da Silva devia limpar a cozinha. Era norma da casa não ir para a cama sem que o local estivesse completamente limpo, sempre, e não apenas nas festas de fim de ano. Sobre o horário de trabalho, só havia uma certeza: a empregada precisava acordar cedo e não tinha hora para dormir. “Eu lembro que, na hora da novela das nove, minha mãe ainda estava na ativa e só ia dormir por volta das dez da noite.”
Certa vez, ela foi trabalhar na casa de uma das filhas da matriarca em Brasília. Ela e o filho se mudaram para uma casa no Lago Sul, de construção mais nova, onde o quarto de empregada era um pouco mais espaçoso, com duas camas e banheiro. Os dois viveram cerca de três anos nessa casa. “Eu ouvia os patrões dizerem: ‘Vou passar a Leide para minha filha em Brasília. Agora vou mandar a Vera lá para minha outra filha, no Grajaú.’ Como se fosse um escravo que se passa como herança.”
De volta ao Rio, a empregada se dividia entre o apartamento da matriarca em Copacabana e o da filha dela no bairro do Grajaú. Duas vezes por semana, Leide da Silva deixava o almoço pronto em Copacabana e seguia para o Grajaú, levando Araújo. Fazia faxina na casa da filha da patroa e voltava para Copacabana a tempo de preparar o jantar. Uma jornada dupla de trabalho, sem acréscimo no salário.
Às sextas-feiras, a matriarca recebia as amigas para jogarem cartas. Adolescente, Araújo acompanhava o desenrolar do carteado e, quando as senhoras iam embora, era ele que as acompanhava até suas casas, tarde da noite. Uma delas costumava dizer: “Esse pretinho é tão bonito. Um dia vou me casar com ele.”
Araújo também acompanhava a patroa em lojas, bancos e consultas médicas. “Eu era praticamente o segurança dela.” Quando Leide da Silva permitiu que ele saísse para ir à praia em Copacabana, foi um alívio para o adolescente. “Eu pude ter a rua como quintal”, diz ele, que para amenizar a rotina extenuante da mãe, ajudava em algumas tarefas domésticas, como levar o cachorro para passear e fazer as compras de supermercado. “Minha mãe ralava muito”, ele diz, e vira-se para ela: “Conta, mãe, como a senhora limpava a janela.” Ela conta: “Eu me pendurava pelo lado de fora para limpar o vidro. O porteiro lá embaixo gritava: ‘Você ainda cai daí e deixa seu filho órfão.’ Mas se eu não fizesse isso, quem limparia a janela?”
Aos 14 anos, João se inscreveu num programa de jovem aprendiz do governo do estado e arrumou um emprego. “Fui trabalhar cedo porque me revoltei. Não queria ficar ali servindo de graça.”
No início dos anos 2000, a família demitiu Leide da Silva, após discordâncias entre a empregada e a filha da patroa sobre a melhor maneira de cuidar da matriarca, que estava doente. Naquela época, empregadas ainda não tinham direito a indenização trabalhista ou fundo de garantia – o que só ocorreria depois de promulgada a PEC das Domésticas, em 2015. Ela havia servido a família por trinta anos. Vinte deles com o filho ao seu lado. Deixou a casa com o salário do último mês de trabalho. A família autorizou que levasse o beliche.
Mãe e filho se separaram pela primeira vez. Ela foi morar na casa de uma prima na Rocinha, e ele, na casa de um amigo, em outro ponto da mesma favela. “Ficamos perdidos. Aquela era a única referência de casa que nós tínhamos. Achei que minha mãe ficaria lá até se aposentar”, diz Araújo. Com o pouco dinheiro que ganhava, ele alugou uma quitinete na Rocinha para ele e a mãe. Nessa época, Leide da Silva teve complicações de saúde e se aposentou por invalidez. Hoje eles vivem juntos, numa casa no município de São João de Meriti, na Baixada Fluminense.
Leide da Silva interrompe nossa conversa, se levanta e serve um café para mim e o filho. “Me desculpe trazer no copo”, diz ela. “É que tem dias em que estou irritada com a vida e para aliviar a tristeza eu jogo a louça no chão. E não sobrou mais nenhuma xícara.”
Araújo bebe um longo gole de café e comenta: “Hoje, adulto, vejo tudo com mais clareza. O quarto de empregada é um espaço de senzala, onde você fica confinado para servir 24 horas. Quando a dona da casa teve um problema de saúde, minha mãe e eu chegamos a dormir no chão, no quarto dela, para o caso de ser preciso ajudá-la. Às vezes eu falo que seria melhor se minha mãe tivesse me deixado pra ser criado no Nordeste, com a minha avó. Teria tido uma vida com mais espaço, mais liberdade.”
A mãe se explica: “Eu não podia deixar ele sozinho. Era muito doentinho. Tinha um monte de alergia. Não iam saber cuidar dele direito. Antes de ter o João, fiz quatro abortos porque não dava pra ter filho sendo empregada doméstica. Quando vi que estava esperando ele, não quis mais abrir mão.”
Araújo fecha a caixa de fotografias. Ele é taxista e me leva da Baixada até Ipanema, onde fica a redação da piauí. Ao chegarmos à Zona Sul, ele me diz: “Vi muito filho de porteiro e empregada desses prédios se perdendo. Uma garotada como eu que, revoltada, se envolveu em pequenos crimes no asfalto ou subiu o morro para trabalhar no tráfico. Nunca fui pra esses lados porque sempre tive medo da minha mãe. Ela marcava junto.”
Já estávamos chegando à revista quando ele acrescentou: “Conhece a música Negro Drama, dos Racionais? Tem um trecho que diz: Família brasileira,/dois contra o mundo/Mãe solteira/de um promissor,/vagabundo. Essa música é muito sobre mim e dona Vera. Só que não virei vagabundo.”
O QUARTO DA SOLIDÃO
Em 1946, uma tia que morava no Rio de Janeiro sugeriu a Arlete da Costa Pereira, então com 13 anos, que se mudasse do distrito de Anta, em Sapucaia, no interior fluminense, para a capital, a fim de conseguir um bom emprego. Foi o que ela fez.
No Rio, Costa Pereira arrumou trabalho na casa de uma família abastada da Zona Sul, em cuja dependência de empregada passou a viver. Nos anos 1950, ela se casou com um jovem comerciário, Celso Eduardo Pereira, e os dois se mudaram para o Morro do Cantagalo, em Copacabana. O casal juntou dinheiro e comprou um terreno em Jacarepaguá, um bairro afastado da Zona Sul e para onde, na época, havia pouca opção de transporte. A ideia de Costa Pereira e seu marido era construir uma casa em Jacarepaguá e só então começar a pensar em filhos, pois ela enfrentava uma dura rotina como copeira de uma mansão em Copacabana: saía de sua casa no Morro do Cantagalo às seis da manhã e não tinha hora para voltar. Ela, porém, engravidou antes que pudessem fazer a casa.
Em 1970, quando tinha 38 anos, trabalhou em pé por longas horas no dia que antecedeu o parto de sua primeira e única filha, Ana Paula Pereira. Era aniversário da patroa, e Costa Pereira serviu aos convidados com um barrigão enorme na festa que varou a madrugada. Voltou para casa no Cantagalo de manhãzinha, descansou um pouco as costas na cama e foi para a maternidade.
Depois do nascimento da menina, a família se mudou para o bairro Cordovil, no subúrbio do Rio. Os patrões da mansão em Copacabana, cientes da distância que a copeira iria enfrentar todo dia, com possíveis atrasos, sugeriram que ela morasse com a filha na edícula dos empregados, mas sem o marido. Costa Pereira voltou à Zona Sul, agora com Ana Paula, de 3 meses. “Em minha memória de menina, eu me lembro da casa muito imponente. Portões de ferro na entrada. Uma sala enorme. Lustres, móveis de madeira de lei e pratos nas paredes. E uma escadaria curva no canto da sala, muito alta. Minha mãe sempre dizia: ‘Não suba ali’”, recorda Ana Paula, que hoje tem 52 anos.
A edícula ficava nos fundos da mansão e era composta de um quartinho, um banheiro e a lavanderia. “Forço minha memória daquele quarto, mas não me lembro de ter janela”, diz ela. “Tinha um beliche e uma cama de solteiro e só, sem nenhum outro móvel.” Ali moravam quatro mulheres: uma cozinheira, uma arrumadeira, Costa Pereira e Ana Paula. As duas primeiras dividiam o beliche, mãe e filha se aninhavam na cama de solteiro. Acima da dependência dos empregados, havia uma suíte que um dos filhos dos patrões usava como “apartamento de solteiro”.
De segunda a sexta, Ana Paula brincava no minúsculo espaço de circulação do quartinho. Quando se entediava, ia para a cozinha. Desenvolveu um comportamento falante nos momentos em que estava ao lado das outras empregadas, as suas únicas companhias. À noite, enquanto sua mãe circulava entre a cozinha e a sala de jantar, escapulia para a sala onde os patrões assistiam à tevê. A mãe alertava: “Não toque em nada, não faça barulho.”
Duas vezes por semana, Costa Pereira era deslocada da mansão por algumas horas para limpar o apartamento, também em Copacabana, de um dos filhos da família, um diplomata que passava a maior parte do ano no exterior. No dia da limpeza, a empregada levava a filha junto. Numa de suas idas ao apartamento, o diplomata estava em casa. Ao ver a garota de 6 anos, ele chamou Costa Pereira e disse: “Vou conseguir vaga para ela num excelente internato católico. Tenho contatos lá.” Sem que a mãe de Ana Paula tivesse tempo de opinar, ele pegou e telefone e ligou para o internato. “Está resolvido. Sua filha tem vaga garantida.”
Quando terminou aquele dia de trabalho, a empregada foi com Ana Paula para sua casa em Jacarepaguá – e nunca mais retornou ao emprego.
Costa Pereira era uma funcionária de confiança da família. Como o diplomata sabia que seu marido estava trabalhando numa fábrica de tecidos na Gávea, foi até lá saber o que tinha acontecido. Ouviu que a mulher estava irredutível: não voltaria a trabalhar para a família e dizia que ninguém tinha o direito de tomar qualquer decisão sobre sua filha. “Minha mãe sempre contou essa história com muita indignação. Viu aquilo como uma tentativa de me tirar dela, sua única filha, que ela demorou tanto tempo para ter”, diz Ana Paula.
Alguns meses depois, Costa Pereira arrumou um trabalho no apartamento de um casal de jornalistas no Leblon, sem filhos, onde passou a viver com Ana Paula. Como a patroa avisou que não queria a criança circulando pela casa, a mãe sempre lembrava a filha para nunca ir além da cozinha. Quando o casal viajava, a menina tinha a chance de conhecer um pouco da casa, auxiliando nos afazeres domésticos: ajudava a tirar o pó dos móveis, passar o aspirador, recolher o lixo e alimentar o cão e o gato que ficavam na área de serviço.
Era um apartamento grande, com três quartos e decoração moderna, tapete azul-royal na sala, cadeiras de vime, quadros abstratos nas paredes, uma cama de tatame no quarto e livros espalhados por todo canto. O quartinho de empregada tinha um armário de solteiro embutido de quatro portas e um beliche que ocupava toda a extensão de uma das paredes. Costa Pereira dormia na cama de cima, e a menina, na de baixo. O local não tinha janela. Para que circulasse um pouco de ar no quarto, haviam colocado uma porta com basculante no alto. Nas noites frias, a mãe recolhia jornais velhos, dobrava e enfiava nas frestas da porta para evitar que a friagem entrasse.
Costa Pereira trabalhava o tempo todo durante a semana. Limpava, lavava e cozinhava. Ana Paula matava o tempo brincando nos fundos da casa. O restante do apartamento era um território proibido. Quando o pai sentia saudades da família, ele ia até o Leblon e levava a filha para tomar sorvete na praça. “Eu sentia muita falta dele”, diz Ana Paula.
Na sexta-feira, a mãe corria contra o tempo para terminar todo o serviço. No final da tarde, as duas deixavam o apartamento, passavam no supermercado para comprar algum mantimento e pegavam o ônibus para Jacarepaguá, onde o casal havia construído uma casa em 1973. “Eu percebia quanto nossa vida era triste observando minha mãe nos dois ambientes”, afirma Ana Paula. “No trabalho, era certinha, cumpria horários, morria de medo de fazer algo errado. Não demonstrava qualquer alegria. Já em casa, cantava acompanhando a música no rádio, era feliz.”
Ana Paula foi matriculada em uma escola pública no Leblon. Quase todos os alunos eram filhos de porteiros ou empregadas das casas do bairro. A menina que ficava trancafiada o dia inteiro na área de serviço, quando estava na escola se soltava. A mãe chegou a ser chamada pela direção da escola porque Ana Paula falava demais. “Eu ficava muito confinada, tendo apenas minha mãe com quem falar. Quando ia para a escola, me libertava.” Depois que foi alfabetizada, ela tomou gosto pelos quadrinhos dos jornais. Gostava de ler Recruta Zero e Fantasma nos fundos do apartamento.
Nos dias de semana, um momento feliz era quando ia com a mãe até uma praça do Leblon levar o cachorro para passear, à tardinha. Certa vez, quando voltavam para casa, o elevador de serviço estava quebrado. Costa Pereira pediu ao porteiro para subirem no elevador social. Ele não autorizou. As duas foram pela escada até o quarto andar. A dieta do cão consistia em pedaços diários de filé-mignon, passados levemente na manteiga, além da ração. Costa Pereira era uma mulher incapaz de quebrar regras, mas quando o casal estava viajando ela abria uma exceção e dizia à filha: “Só o cachorro tem direito de comer filé-mignon? Nós também vamos.” E dividia a regalia em três partes iguais: uma para Ana Paula, uma para ela e outra para o cão.
Os alimentos da empregada e da filha eram de qualidade inferior aos que iam para a mesa dos patrões, e os pratos, copos e talheres, diferentes dos usados por eles. À noite, antes de dormir, a mãe pegava uma revista Manchete de semanas anteriores, e as duas liam juntas. “Quando me lembro daquele quartinho, penso como eu era uma criança sozinha. Minha mãe também. Era ela, eu e a nossa solidão”, diz Ana Paula. “Vem na minha memória a tristeza de minha mãe em criar uma filha nessas condições.”
Certa vez, ela estava brincando com o gato na área de serviço e o bichano atravessou a cozinha, passou sorrateiro pela sala e disparou pelo corredor. A menina foi atrás e, de repente, estava dentro do quarto da patroa. “O que você está fazendo aqui? Não pode andar por aqui”, disparou a mulher. Ana Paula saiu correndo e se atirou na cama do quarto de empregada, chorando.
A patroa reclamou da presença da criança em seu quarto. A empregada disse que aquilo não se repetiria. Depois, foi para perto da filha e a consolou. “Ela dizia que eu não tinha feito nada de errado. Eu estava chorando de medo. Foi traumático”, recorda Ana Paula. “Até hoje sou uma pessoa que sente muita vergonha em diversas situações. De aparecer ou ser notada. Dependendo, sinto que estou num lugar proibido para mim. Esse sentimento vem dessas restrições. A gente não rompe fácil com ele. Marca para sempre.”
Meses depois, Costa Pereira trocou de emprego e foi trabalhar na casa de um militar e sua mulher, em Ipanema. Ela e a filha ocuparam o quarto de empregada. O casal tinha três filhos: dois meninos quase adolescentes e uma menina de 6 anos. Ana Paula estava com 10 anos e foi destacada informalmente para ser a babá da caçula, o que lhe dava acesso a todo o apartamento. Quando a família viajava para Petrópolis ou ia até a casa de parentes na Barra da Tijuca, levava a filha da empregada junto.
Nesses passeios, Ana Paula dormia no quarto das crianças, mas sempre num colchão improvisado, nunca nas camas. Na hora das refeições, as crianças se dirigiam à mesa na sala de jantar e ela se sentava à mesa da cozinha com os outros empregados. “Na minha cabeça, aquilo era normal. Era o lugar ao qual eu pertencia.” Um dia a família a levou à lanchonete Gordon, em Ipanema. Ela adorou o lanche, e numa sexta-feira arrastou a mãe até a Gordon para experimentar o sorvete de que tanto gostara. “As experiências felizes só tinham graça quando eu estava com ela.” Além de olhar a filha caçula, Ana Paula, à medida que crescia, passou a ajudar no trabalho doméstico.
No apartamento de Ipanema, a área de serviço era um pouco maior e havia dois quartos de empregada pequenos. Em um deles ficava a faxineira. No outro, com um beliche e armário, dormiam Costa Pereira e Ana Paula. O banheiro de serviço era dividido pelas três. Mas havia um elemento novo no quartinho: um radinho de pilha adquirido por Costa Pereira. Perto das seis da tarde, ela colocava um copo d’água ao lado do aparelho, ligado na Rádio Tupi e, com a filha, acompanhava a Ave-Maria. “Tenho a lembrança de uma melancolia muito forte quando anoitecia.”
Em todas as casas pelas quais passava, Costa Pereira tornava-se a funcionária de confiança, cuidando inclusive de serviços de banco. O que significava trabalho extra, mas nunca remuneração extra. A empregada confidenciou à filha que mais de uma vez tinha ouvido os patrões dizerem que ela era uma “preta de alma branca”, expressão que a revoltava.
A experiência com o diplomata de Copacabana que quis matricular sua filha num internato marcou a postura de trabalho de Costa Pereira para sempre. Ela dizia a Ana Paula: “Nunca fale da nossa vida privada pros patrões.” Um dia, quando Ana Paula estudava na área de serviço, a patroa de Ipanema reparou no capricho dos cadernos da menina e disse que iria conseguir uma bolsa para ela no Colégio Metodista Bennett, onde os filhos do casal estudavam. “Minha mãe agradeceu, mas recusou a oferta.”
Costa Pereira viveu quase quarenta anos em quartos de empregada, uma parte desse tempo com a filha. Depois, passou a trabalhar em casas de famílias ricas de Jacarepaguá, mais perto de onde morava. A mãe sempre evitou mencionar os episódios que marcaram a vivência das duas dentro dos quartinhos.
Quando Ana Paula entrou na idade de prestar vestibular e não passou, perguntou à mãe por que não tinha aceitado a oferta para que estudasse numa boa escola da Zona Sul. “Ela me respondeu que tinha medo de ficar presa a esse favor”, conta. “Disse que esses favores vinham sempre acompanhados de uma obrigação que a gente teria que cumprir e nos deixaria escravizadas. Ela queria ter sempre a liberdade de ir embora da casa quando achasse que devia.”
Ela recorda que a mãe acrescentou: “Hoje me arrependo. A bolsa teria ajudado no seu futuro.” Ao que a filha respondeu: “Não vamos pensar mais nisso. Já passou.” Ana Paula diz que entende a mãe: “A liberdade era muito importante para ela.”
A vida nos quartinhos privou Ana Paula do hábito de comemorar seu aniversário com muitos convidados. Sua mãe estava sempre ocupada na data, trabalhando. Além disso, a menina não podia receber nem amigos nem parentes nas casas. “Nossos patrões jamais permitiriam.” Ela se habituou a festejar o aniversário apenas com a mãe e o pai. “A gente passou a ficar muito fechada entre nós três. Quando fiz 50 anos, não comemorei. Sinto que é reflexo de uma infância com poucos amigos. Levamos isso para nossa vida.” Ela interrompe – e diz: “Bateu uma emoção.”
Depois, retoma: “Nossa rotina naqueles quartos era muito silenciosa. Não podia fazer barulho, não podia gargalhar. Nos raros momentos de descontração, a gente ria baixinho. A alegria tinha que ser contida. Mesmo depois que ficamos livres do quartinho, a gente não se permitia ter uma alegria esfuziante. Como não me casei nem tive filhos, vivo uma certa solidão. Às vezes, quando bate uma tristeza profunda, parece que nunca saí daquele quarto.”
Arlete Costa Pereira trabalhou até os 73 anos. Morreu aos 75 anos, em 2008. Como nunca assinaram sua carteira de trabalho, não teve aposentadoria. Seu marido morreu há poucos meses, aos 91 anos. Na juventude, Ana Paula tentou uma vaga na universidade, enquanto também procurava trabalho. Em geral, lhe ofereciam emprego de doméstica ou babá. Mas sua mãe falava: “Não estou te criando pra ser empregada doméstica. Faça algum curso enquanto isso. Eu pago.”
Aos 40 anos, Ana Paula se formou em letras e hoje é professora de educação infantil. A mãe a viu entrar na universidade, mas não teve tempo de vê-la formada. “Rompi o ciclo, graças ao incentivo de minha mãe”, ela diz. O quartinho de empregada e a vida na casa dos patrões são memórias que nunca se desfizeram para ela: “Era uma senzala. O normal era que os filhos das empregadas fossem trabalhar para os filhos dos patrões, seguindo a mesma lógica da escravidão, do negro como propriedade. Muitas mulheres da minha geração continuaram como empregadas das mesmas famílias para as quais suas mães trabalharam. Mas as filhas dessas mulheres de minha geração agora estão entrando na universidade. Houve um avanço.”
O QUARTO DA CONTESTAÇÃO
A mãe de Joyce Teixeira[1] trabalhava como cozinheira para um casal de idosos num apartamento no bairro de Higienópolis, no Centro de São Paulo. Como morava em Mauá, situada a mais de uma hora de ônibus do local do emprego, ela contratou uma pessoa para, em sua ausência, cuidar dos dois filhos que criava sozinha. Mas Joyce, de 4 anos, apanhou da babá, e a mãe não teve alternativa: mudou-se com os dois filhos para o quarto de empregada em Higienópolis.
Era um apartamento imenso, onde, além de sua mãe, trabalhavam três pessoas: sua tia, que era arrumadeira, e dois motoristas. No quarto de empregada, havia um beliche e um guarda-roupa de quatro portas, uma mesa baixa onde ficava a televisão em preto e branco e um banquinho de madeira. Joyce e o irmão, um ano mais velho, faziam as refeições e as lições da escola dentro do quarto, usando o banquinho como mesa.
Como a mãe tinha medo de que os filhos caíssem da cama superior do beliche, os três dormiam juntos, na parte de baixo – o menino só passou para a parte de cima quando estava mais crescido. As próprias crianças cuidavam da limpeza do quarto, que era desprovido de janela. Elas passavam boa parte do tempo ali, disputando jogos de tabuleiro em cima da cama ou assistindo a desenhos animados depois da aula.
O prédio não tinha piscina, playground ou qualquer área para crianças. Explorando o local, Joyce e o irmão descobriram um pequeno espaço para jogar bola, próximo à casa do zelador. O homem não deixou que eles ficassem ali. “Mas meu irmão questionou o zelador. Ele questionava tudo e até usava o elevador social, o que era proibido para os empregados”, conta Joyce. “Ele dizia que não tinha motivo para a gente não usar o elevador. Eu insistia para subirmos pelo de serviço. Mas ele me encorajava.”
Joyce passou a pensar como o irmão, e começou a “contestar tudo”. Ela queria saber da mãe por que os três tinham que dormir naquele lugar apertado, se havia um quarto sobrando no apartamento. Queria entender por que não podia ver tevê colorida, se havia uma na sala de visitas. “Mas também me batia um grande medo de ter que sair dali com meu irmão”, ela diz. “Por mais que fosse uma vida privada de liberdade, estávamos juntos da nossa mãe.”
As crianças quase não tinham contato com os donos do apartamento. Por isso ficaram surpresos quando, num fim de semana dos anos 1990, embarcaram com malas no carro dos patrões, rumo à fazenda da família em Ribeirão Preto. “Eu tinha 9 anos. Fomos no banco de trás com eles. Pensei: ‘Acho que agora pertencemos a essa família, somos próximos’”, conta Joyce. O motivo da viagem era a comemoração das bodas de ouro do casal.
Os filhos da empregada ficaram impressionados quando chegaram à fazenda, com sua casa gigantesca, típica construção da era de ouro do café no interior de São Paulo. Joyce ficou animada ao ver a quantidade de janelas do casarão, parecido com o da novela O Rei do Gado, que ela gostava de assistir no quartinho. “Em qual desses tantos quartos vamos ficar?”, ela se perguntou. Depois de conhecer a casa, a empregada e seus filhos foram levados de volta ao térreo – e depois até uma área mais embaixo, onde ficava a cozinha. Ao lado, uma porta dava para um cômodo. Era ali que eles iriam dormir durante a estadia. “Parecia uma senzala de verdade”, recorda Joyce.
O espaço era maior que o quarto em São Paulo, mas também não tinha janela e o ar entrava pela porta com treliças de madeira. A família de Joyce dividiu o espaço com uma senhora idosa que trabalhava na fazenda havia muitos anos.
Os parentes começaram a chegar para a comemoração. Na hora da festa, à noite, as duas crianças se recolheram ao quartinho. De vez em quando, a mãe descia com um pratinho de salgados e doces para os irmãos. Pela treliça, eles viam as crianças da família brincando e correndo no jardim. “Eu via e pensava: por que não podemos participar da festa? Foi quando a ficha caiu. Pertencíamos à classe dos que trabalham. Não dos que festejam”, diz Joyce.
Os irmãos cresceram, e foi ficando desconfortável para mãe e filha dividirem a mesma cama no beliche. Quando os três faziam algum passeio à noite, os donos da casa reclamavam do horário em que chegavam. Uma vez, Joyce recebeu uma ligação de uma amiga no telefone da casa, e a patroa não gostou. A gota d’água foi uma falsa acusação: a suspeita de que Joyce ou seu irmão teria furtado a calculadora científica de um neto do casal. Era demais. Havia chegado a hora de deixar o apartamento. Joyce tinha 15 anos. Seu irmão, 16. Eles haviam passado mais de uma década morando no quartinho.
Pouco antes de decidirem ir embora, a patroa chamou Joyce para ajudar a organizar uma estante. A jovem aproveitou para contar à senhora que tinha desejo de fazer faculdade e ser professora. “Esperava dela uma palavra de encorajamento ou até uma bolsa de estudo. Eles eram muito ricos. Mas ela desconversou, não deu a mínima importância para o que eu disse. Senti que, para ela, meu destino era continuar servindo.”
A volta para a cidade de Mauá, onde a mãe de Joyce tinha uma casa, foi estranha. “O apartamento de Higienópolis não era nosso. Mas a sensação foi de que a casa em Mauá também não era”, afirma. “A gente não pertencia nem a um lugar nem a outro. Até hoje, independentemente de onde eu esteja, me sinto sempre querendo voltar para algum lugar que entenda como sendo meu.” A mãe de Joyce ainda hoje trabalha como babá. Ela não quis ser entrevistada, segundo a filha, porque não quer relembrar o passado no quarto de empregada.
Joyce se formou em história, tornou-se professora, se casou, tem um filho pequeno e leva uma vida feliz aos 38 anos. “Aquele episódio da estante me marcou muito. A ponto de tomar para mim a responsabilidade de ser a primeira da minha família a ter um diploma. Foi o troco que dei pra elite desse país: me formando como uma pessoa crítica, que contesta seu lugar nesse mundo.” Joyce tem orgulho de sua mãe e de tudo o que ela fez por seus dois filhos. “Mas eu posso servir a sociedade de outra maneira. Através da educação”, ela diz.
SEM QUARTO, SEM CHÃO
Thawanna[2] nasceu em São Paulo. Ainda bebê, foi deixada pela mãe em um orfanato da capital paulista. Quando fez 10 anos, em 1981, uma irmã mais velha apareceu para visitá-la. Foi o primeiro contato que teve com alguém da sua família. Aos 15 anos, foi morar e trabalhar na casa onde duas irmãs dela já estavam empregadas como domésticas. “A casa era grande, mas só tinha dois quartos. Eu e minhas irmãs dormíamos no quarto das três filhas do casal”, conta. Com isso, ela escapou do quartinho de empregada, mas não da humilhação: Thawanna e suas irmãs dormiam no chão. Também não recebiam salário.
Cinco anos depois que Thawanna deixou o orfanato, suas irmãs mais velhas deixaram a casa para tentar um trabalho remunerado. Como ela era menor de idade e estava muito apegada às meninas da família, acabou ficando para trás, acumulando o trabalho das irmãs: limpava, cozinhava e cuidava das crianças – sempre sem remuneração. Ela não tinha nada e via como um gesto de bondade a doação que lhe faziam das roupas descartadas pelas filhas do casal. Trabalhou para a família por mais de trinta anos.
O chão do quarto das meninas foi seu quarto durante muito tempo. Depois que elas cresceram, Thawanna passou a dormir no sofá da sala. Tinha que esperar todo mundo jantar, assistir à televisão e se recolher em seus quartos para só então arrumar o sofá-cama. Se havia alguma festa na casa, ela dormia de madrugada, depois de limpar toda a bagunça.
As filhas mais velhas ficaram adultas, se casaram, se mudaram e tiveram filhos. Thawanna ficou sozinha com o casal. “Era uma época em que eu chorava muito.” Como ela gosta de crianças, cada novo bebê das filhas dos patrões a ajudava a superar um pouco a rotina de exploração. “As crianças tiravam um pouco o estresse naquela casa. Elas me distraíam.”
Mas não era o bastante. Por volta dos 21 anos, Thawanna começou a pensar em deixar a casa. “Mas eu não conhecia São Paulo, não sabia andar pela cidade. Não fazia ideia de onde estavam minhas irmãs”, diz. Ela só saía à rua quando precisava acompanhar alguém da família ou ir ao mercado ou à padaria, na vizinhança.
Certa vez, aos 24 anos, falou que queria arejar a cabeça e foi fazer uma caminhada à noite. “Ficar dentro daquela casa estava me matando. Queria conhecer qualquer lugar. Mas estava tudo fechado e fiquei perdida. Fui molestada por quatro homens.” Ela não sabia para onde ir e não tinha dinheiro. Foi um policial que a levou de volta para casa, a partir de indicações dadas por ela. “Fiquei muito assustada. Nunca mais quis sair.”
A própria casa não era um lugar seguro. “Quando eu tinha 15 anos, o pai delas me…” Thawanna interrompe, e começa a chorar. “Esse é um assunto que me machuca muito. Eu tinha eles como minha família. Mas eles nunca me tiveram assim.”
Com a rotina de trabalho pesado, ela desenvolveu uma hérnia e precisou fazer uma cirurgia. Mas não pôde repousar em seguida, o que prejudicou a recuperação. Tempos depois, desenvolveu outra hérnia, voltou ao hospital e acabou descobrindo um tumor no útero. Fez outra cirurgia. O pós-operatório lhe provocava dores terríveis, acentuadas pelo desconforto do local onde dormia, no sofá. “Eu praticamente não dormia. Era uma dor muito forte. Os vizinhos me ouviam chorar, mas não faziam nada.”
Após a morte dos donos da casa, a filha do meio passou a ser a patroa de Thawanna. Seus problemas continuaram. A empregada desenvolveu trombose nas duas pernas, mas não se tratou. Uma vez, quando fazia faxina, caiu da escada e fraturou o quadril. Nunca se recuperou inteiramente. Alguns anos depois precisou recorrer a muletas e, até hoje, não consegue sentar ou ficar de pé por muito tempo sem sentir dor.
No ano passado, aos 50 anos, pegou Covid. Foi levada a um hospital e a deixaram lá. “A patroa disse que voltaria no dia seguinte e não voltou. Fiquei sozinha. Minhas irmãs não sabiam que eu estava internada. Do jeito que eu estava mal, acharam que eu não ia sobreviver.”
Mas ela sobreviveu. O médico falou que deveria repousar por quinze dias. Porém, Thawanna sabia que, se voltasse para a casa, não teria descanso. Ela contou sua história para a equipe médica, que resolveu fazer um check-up na paciente: constataram, além da trombose, que pontos de uma das cirurgias de hérnia estavam abertos. Os médicos denunciaram o caso ao Ministério Público do Trabalho.
Quando a empregada voltou para casa, a família já sabia da denúncia. Ela conta que os patrões disseram que ela era ingrata, pois sempre havia sido tratada como uma pessoa da família. “Demorou pra eu entender que eles nunca foram minha família. Eles martelavam na minha cabeça que ninguém ia conseguir ficar comigo com as pernas debilitadas pela trombose. Diziam que queriam meu bem, que eu estava ficando louca. Comecei a me furar, me machucar. Eu não tinha como sair daquela casa.”
Uma noite, um oficial de Justiça e um terapeuta, com um mandado judicial, bateram à porta da família e levaram Thawanna para um abrigo de mulheres. As filhas dos patrões a procuraram e disseram que a consideravam uma segunda mãe. “Tentaram mexer com minha cabeça. Mas eu já estava vacinada. No fundo, queriam que eu não processasse elas. Mas eu ouvi a equipe que cuidava de mim. E botei na minha cabeça que não fazia parte daquela família de que tanto gostei.”
Thawanna está livre há quase um ano, amparada por terapeutas, médicos e uma educadora social. Aos poucos, tem conhecido a cidade em que nasceu. Visitou uma exposição e foi a uma livraria. “Parei de estudar na quinta série. Mas amo ler. Ganhei de presente um livro da Carolina Maria de Jesus. Era uma batalhadora, feito eu”, diz, destacando a passagem favorita do livro Quarto de Despejo: “Gosto da parte em que ela diz que saía de cabeça erguida pra catar lixo pra sustentar os filhos. É muito bonito.”
O trabalho análogo à escravidão, como o de Thawanna, produz uma situação insidiosa. O próprio explorado leva tempo para se dar conta da exploração, pois os vínculos estabelecidos com a família empregadora se mesclam ao afeto, como diz a procuradora Alline Delena, do Ministério Público do Trabalho de São Paulo (MPT-SP): “As pessoas submetidas não têm família. Foram deixadas por seus familiares para que essa outra ‘família’ as criem. O trabalho muitas vezes envolve o cuidado de crianças, idosos e se estabelece uma relação afetiva. Gera uma dificuldade para a trabalhadora enxergar que quem a acolheu a explorou.”
Delena diz que 90% dos casos de trabalho doméstico análogo à escravidão começam quando a explorada ainda é criança. Quanto mais camadas de vulnerabilidade ela apresenta, maiores são as chances de exploração. “Ela tem dificuldades de se deslocar pelo mundo, de mexer com dinheiro, que nunca recebeu. E essas famílias, quando são denunciadas, costumam dizer que tinham a trabalhadora como filha. Mas os filhos de verdade receberam instrução e tiveram cuidados de saúde, ao contrário de Thawanna.”
O trabalho doméstico foi uma das categorias profissionais que mais tardiamente tiveram seus direitos e garantias reconhecidos. Por isso, o acesso das empregadas domésticas a uma base sindical ainda é insuficiente, o que contribui para que a categoria fique mais vulnerável à exploração, segundo Delena. “Os poucos sindicatos que existem são instituições combativas, mas não existe imposto sindical e são escassas as fontes de custeio. É difícil para os sindicatos apertar a campainha e verificar as condições de trabalho doméstico. Conseguir uma sindicalização efetiva é um caminho”, afirma a procuradora. “É um trabalho que ocorre dentro da casa das pessoas. É preciso ser denunciado por quem está próximo: um parente, um vizinho dessas famílias que exploram o trabalho doméstico.”
Para a psicóloga social Yasmin França, coordenadora do Projeto Ação Integrada: Resgatando a Cidadania, desenvolvido pelo MPT-RJ em parceria com a Cáritas-RJ, as mulheres que passaram suas vidas nos quartinhos de empregada têm a subjetividade fortemente afetada, a ponto de se dessexualizarem. “Elas nunca namoraram, nem tiveram vínculos sexuais saudáveis. Muitas vezes a sexualidade veio através da violência sexual.” Para essas mulheres, ter filhos é uma forma de resistir à subserviência. “Thawanna tinha com aquela família uma relação tão despessoalizada, como coisa, instrumento de trabalho, que seus patrões achavam que ela não precisava nem mesmo de um quarto, por isso dormia na sala”, diz França.
No caso de mulheres que foram libertadas de uma situação análoga à escravidão, são necessárias várias frentes de amparo, a começar por pessoas que verifiquem o estado de saúde delas, já que passaram a vida inteira sem ter cuidados médicos. Depois é importante fortalecer vínculos de afeto comunitários e familiares. E cuidar da situação psicológica. “Observamos nelas um quadro de profunda tristeza e, em alguns casos, falas suicidas. Elas ficam sem chão, perdem a referência”, explica França. “Mas, passado o choque inicial, pouco a pouco, conseguem reconstruir a vida.”
Thawanna nunca recebeu salário. Arlete Costa Pereira nunca teve carteira assinada. A mãe de Joyce ganhava salário mínimo e Vera Leide da Silva, dois salários. Nenhuma delas jamais recebeu adicional noturno ou hora extra.
[1] A pedido da entrevistada, o nome de sua mãe foi omitido.
[2] A pedido da entrevistada, neste relato foi usado um pseudônimo, escolhido por ela.
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