Caos urbano: como os carros ocupam a maior parte dos espaços das ruas, embora transportem só uma parcela dos passageiros, eles demandam áreas que as cidades poderiam destinar à absorção das águas, prover moradias e espaços públicos ILUSTRAÇÃO: ANGELI_2008
A dupla exclusão
Como a quarentena joga luz sobre as crises do clima e das cidades
Roberto Andrés | Edição 165, Junho 2020
A pandemia do novo coronavírus, assim como as Manifestações de Junho de 2013 no Brasil, se inscreve naquilo que alguns filósofos chamam de acontecimento. São eventos capazes de abalar a inércia das coisas e inaugurar um outro tempo. Existiria um mundo antes e outro depois do acontecimento. Como a infraestrutura da vida não se altera em poucos meses, a mudança diz respeito à forma como nos relacionamos com a nova realidade. Alteram-se os softwares, não os hardwares.
No mundo anterior à Covid-19, nos longínquos meses de janeiro e fevereiro de 2020, a tragédia que se abatia sobre as cidades brasileiras vinha na forma de enchentes, deslizamentos e inundações. Em pouco tempo, ocorreram precipitações de grande volume. Além do aumento na média mensal de chuva, houve também maior intensidade. Concentrada em poucas horas, ou diluída em vários dias, a mesma quantidade de água gera impactos muito distintos.
Em Minas Gerais, os deslizamentos e inundações, em apenas vinte dias, deixaram 50 mil pessoas desabrigadas e sessenta mortos – mais do que o acumulado dos quatro anos anteriores. Em Belo Horizonte, ruas viraram rios, que arrastaram carros, adentraram bares, lojas e casas. Na Avenida dos Andradas, no Centro da capital mineira, a pressão da água do Ribeirão Arrudas, encaixotado e coberto por pistas de tráfego, produziu um espetáculo de beleza e violência incomuns: uma catarata irrompia de baixo para cima, subindo em movimento sincronizado pelas frestas dos respiradores do rio.
Em São Paulo, as chuvas fortes do início de fevereiro fizeram a cidade parar. Enterrados em nome do progresso, córregos e ribeirões voltaram à superfície, como costuma acontecer nas enchentes de tempos em tempos. Entre os dias 9 e 10 de fevereiro, caiu cerca de metade do volume de água esperado para todo o mês, de modo que os alagamentos foram regra, e não exceção. Ruas e avenidas foram interditadas, as marginais se alagaram, quem tentou sair ficou preso no trânsito, quem pôde cancelou compromissos e ficou em casa.
No Rio de Janeiro, depois que as chuvas num fim de semana no início de março resultaram em quatro mortes, o prefeito Marcelo Crivella afirmou que o problema é que as pessoas gostam de morar na beira do rio, para “se verem livres dos esgotos” e gastarem “menos tubos para colocar cocô e xixi”. Perante uma barbaridade como essa, melhor fez o prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil, que afirmou que “a água vem do céu, não vem de incompetência administrativa” e que, “em desastres, não há responsabilidades”.
Mas a culpa pelas mortes, obviamente, não é da população, nem das chuvas. Mesmo porque tragédias geradas por tempestades de verão não são novidade nas cidades brasileiras. Ao contrário, têm sido recorrentes no último século. Uma recapitulação das políticas de tratamento das águas em Belo Horizonte, feita pelo geógrafo Alessandro Borsagli, mostra que praticamente todas as administrações da cidade, que foi inaugurada em 1897, conviveram com problemas graves durante as chuvas (as obras que visavam combater as enchentes, em vez de resolvê-las, muitas vezes intensificaram seus impactos).
As tragédias do verão de 2020 só diferem das anteriores em intensidade. Além do aumento da média de temperatura, o aquecimento do planeta intensifica a ocorrência de eventos climáticos extremos. Chuvas como a deste ano acontecerão cada vez com mais frequência – e mais força. Deslizamentos de encostas e inundações de fundos de vale, também. Na origem das tragédias, está um modo excludente de produzir cidades, pautado pela negligência com a população mais pobre e com os limites da natureza.
No fim do século XIX, o Brasil era um país majoritariamente rural, com menos de 10% de sua população vivendo em cidades. Em 1890, Rio de Janeiro, Salvador e Recife eram as únicas três cidades do país que superavam a marca de 100 mil habitantes. Na virada do século, essa lista ganhou a adesão de São Paulo, que crescia em ritmo acelerado graças ao boom da economia do café, e já passava de 200 mil moradores.
O regime escravocrata de mais de três séculos havia sido recentemente abolido – e nunca é demais lembrar que o Brasil foi o último país das Américas a fazê-lo – e deixou como legado um enorme contingente de negros livres, mas desprovidos de terra, moradia, formação profissional e inserção social. Como se não bastasse, o mercado de trabalho sofria a crescente competição de imigrantes europeus e asiáticos, que desembarcavam às hordas no país.
A formação do Brasil urbano se deu a partir da exclusão da população pobre, grande parte dela integrada por negros. A absorção dos trabalhadores nas cidades ocorreu, já na Primeira República, pela ocupação de áreas informais, lindeiras às ferrovias na planície paulistana, nos morros cariocas ou nos mangues e áreas alagáveis no Recife e em Salvador. A segregação dos pobres se deu junto ao desdém pela natureza. A história de Belo Horizonte, cidade planejada com pretensões de representar o espírito republicano e a modernidade, ilustra bem essa dupla exclusão.
Já durante sua construção, a nova capital de Minas Gerais convivia com favelas, onde residia parte da classe trabalhadora. Quando a cidade foi inaugurada, embora a ocupação da área planejada fosse incipiente, havia gente que não podia morar nela. Como aconteceria em Brasília sessenta anos depois, aos responsáveis por erguer a cidade não foram reservados espaços para que existissem dentro dela. A modernidade brasileira sempre se ancorou na manutenção da precariedade e de bolsões de atraso.
O plano urbano de Belo Horizonte, com seu traçado geométrico saído da prancheta positivista do engenheiro Aarão Reis, excluía também os elementos do mundo natural: a vegetação, a topografia e os cursos d’água. Embora uma das justificativas para a escolha do local onde se ergueria a nova capital fosse a qualidade e a fartura das águas da bacia do Ribeirão Arrudas, o projeto urbanístico deixou-a em segundo plano. O caminho dos córregos que atravessavam a área planejada não foi considerado no desenho das ruas.
Como a topografia tampouco foi considerada, o arruamento demandou grande movimentação de terra, que eliminou vegetação, assoreou córregos e fez da cidade, por muito tempo, um lamaçal. Como os cursos d’água passavam no meio dos quarteirões, logo começaram a causar problemas. A retificação chegaria em algumas décadas; em seguida, viria o tamponamento. O desmatamento de cabeceiras minou nascentes que pouco antes eram fartas.
Como resultado, uma década depois de sua inauguração, Belo Horizonte ainda era uma cidade vazia, mas já começava a faltar água. Córregos que corriam limpos e com peixes, em relação harmoniosa com o antigo arraial que fora eliminado para a construção da cidade, estavam poluídos. O esgoto, depois de longos debates na Comissão Construtora sobre a melhor forma de tratamento, acabou sendo lançado à rede fluvial ou diretamente nos cursos d’água, devido à pressa para inaugurar a nova capital.
Em 123 anos, Belo Horizonte passou por muitas mudanças, mas a dupla exclusão prevaleceu. Nas áreas centrais, os elementos naturais foram recorrentemente ignorados, suprimidos ou escondidos. Enquanto isso, as políticas urbanas não levavam em conta a população pobre, que era forçada a construir seus próprios bairros nas franjas da cidade, desprovidas de infraestrutura. É possível dizer que esta foi a regra na maior parte das grandes cidades brasileiras no mesmo período. As tragédias do verão de 2020 são uma decorrência desse modelo: nos fundos de vale, as águas vieram mostrar que não caberiam no encaixotamento que buscava anulá-las; nos bairros periféricos, a carência de infraestrutura cobrou seu preço – construções desabaram, muitos perderam suas casas, seus pertences, suas vidas.
A segregação social assumiu diferentes formas nas cidades brasileiras ao longo do tempo. As cidades do início do século XX eram bastante compactas, geralmente ocupando territórios pequenos com alta densidade. A segregação se dava, principalmente, pelos tipos de casas. Cortiços, favelas e outras formas de moradia precária se situavam em regiões próximas aos centros ou às linhas de trens e bondes, enquanto as casas das classes média e alta eram instaladas em bairros mais bem urbanizados – mas todos partilhavam de certa proximidade.
Não que a elite da República Velha lidasse bem com a diversidade social nos centros urbanos. Ao contrário, remover os pobres das áreas centrais foi um projeto recorrente em diversas cidades. Em São Paulo, os cortiços, vistos como focos de doenças morais e sanitárias, representavam o inimigo a ser eliminado por diferentes administrações. No Rio de Janeiro, a gestão do prefeito Pereira Passos – o engenheiro que acompanhara as reformas empreendidas por George-Eugène Haussmann em Paris e que, nomeado pelo presidente Rodrigues Alves, governou a então capital brasileira de 1902 a 1906 – foi exemplar na extinção de cortiços e na expulsão dos pobres da região central.
Como esses projetos não eram acompanhados de políticas habitacionais adequadas, à população removida restava procurar outras áreas para ocupar. Mas as políticas higienistas enfrentavam um limite físico naqueles tempos, em que a maioria das pessoas se deslocava a pé, de trem ou bonde. Querendo-se ou não, boa parte da população pobre continuava relativamente próxima às áreas centrais – ou não teria condições de acessá-las para trabalhar. A tensão entre o desejo higienista das elites e os limites de espraiamento que os modos de deslocamento impunham marcou o período das cidades compactas e segregadas. Período que se encerraria a partir da década de 1940, graças à intensificação da industrialização, ao crescimento da população urbana e à consolidação do transporte rodoviário – este último era a peça que faltava para que os pobres pudessem ser finalmente enviados para os confins das cidades. Com estradas, automóveis e ônibus urbanos, passava a ser possível morar em bairros afastados e trabalhar nos centros.
Do ponto de vista das elites, a opção rodoviarista significou um ganho quádruplo: permitia que os mais ricos se destacassem da plebe e ganhassem tempo em seus distintos automóveis; valorizava terras rurais no entorno das cidades; tirava as zonas de pobreza do campo de visão das classes média e alta; e, por fim, inaugurava um novo nicho de exploração empresarial, o do transporte coletivo urbano.
Entre 1940 e 1980, a população urbana brasileira cresceu de 13 milhões para 82 milhões de pessoas. Poucos países no mundo tiveram uma taxa de urbanização semelhante. A absorção de dezenas de milhões de pessoas nas cidades foi marcada pela segregação territorial e pela atuação seletiva do Estado (quando não inexistente) nos bairros pobres. As obras rodoviárias serviam para justificar a remoção de pobres de áreas centrais na medida em que demandavam espaço para viadutos e avenidas e, ao mesmo tempo, criavam as condições para que eles pudessem ter opções de transporte em bairros distantes.
A partir de meados dos anos 1970, esse modelo começou a atingir seus limites. Com a explosão de carros nas cidades, os centros urbanos entraram em processo de degradação: tornaram-se barulhentos, poluídos, perigosos e indesejáveis. Como resultado, iniciou-se uma fuga dos centros, no embalo de uma vida junto à natureza e protegida da violência. Iniciava-se a era dos condomínios privados e dos shopping centers. Neles, vendia-se a ideia de fugir dos problemas das cidades mantendo-se o acesso a elas. A segregação passava a se dar por meio de muros, cercas elétricas, guaritas e seguranças armados.
O movimento serviu também a uma nova fase de negócios imobiliários, com valorização de terras, incorporações, empreendimentos. Tudo isso viabilizado, mais uma vez, por novas rodovias e novas avenidas que o poder público se prestava a construir. Se na primeira metade do século XX a elite brasileira espraiou a cidade compacta por não suportar a vizinhança dos pobres nas áreas centrais, na segunda metade ela abandonou as áreas centrais porque não suportava o que ela mesma havia feito delas.
É possível enxergar a história das metrópoles brasileiras – e de outros países na periferia do capitalismo – como uma versão microterritorial da crise climática que hoje vivemos em escala planetária. Ambas as crises têm em sua origem um modo de organização da vida humana que desconsidera e estressa os limites do mundo natural. Ambas operam com alta dosagem de desigualdade social, de modo que seus impactos são maiores entre os mais pobres.
A bem ver, as diversas fases da catástrofe climática global já foram trilhadas pelas grandes cidades brasileiras. Inicia-se por uma ocupação voraz do território, indiferente aos elementos naturais: impermeabilização extensiva do solo, supressão da vegetação, emissão de poluentes. Quando os problemas começam a incomodar, opera-se como se eles fossem, por um lado, males necessários para o progresso, e, por outro, como se fossem solucionáveis no futuro, graças a alguma inovação tecnológica que virá. Enquanto isso não acontece, a roda segue a girar e os problemas seguem intensificando-se.
Soluções faraônicas são buscadas – grandes obras de canalização para conter inundações, grandes viadutos e avenidas para melhorar o trânsito. Muitas vezes, essas soluções alimentam o mesmo ciclo que pretendiam reverter. As enchentes ficam piores ou migram para outro ponto. O trânsito piora. Quando as complicações chegam a níveis extremos, a elite busca alguma fuga que resolva o seu problema: a saída para os condomínios talvez seja o antepassado primitivo da busca pela colonização de outros planetas. Vai-se embora e deixa-se o abacaxi para aqueles que não podem partir.
No centro da crise climática urbana está o automóvel. Nascido para ser um item de luxo, o carro tornou-se, quando se difundiu na sociedade, um agente cancerígeno no tecido urbano. Os produtos de luxo costumam perder valor quando seu uso se generaliza. O carro passou por esse risco. Foi criado para que alguns burgueses muito ricos pudessem ganhar tempo e distinção, mas sua popularização acabou por subtrair-lhe essas duas qualidades. Quando todos têm um carro, ninguém ganha tempo, e a distinção perde relevância. Ainda assim, o carro não perdeu com isso, como aconteceu com outros itens de luxo ao longo da história, porque seu uso por alguns o tornava necessário para os demais. A partir do momento em que uma parcela da população – a mais rica – se desloca em automóveis, as cidades passam a se moldar a eles. As atividades se espraiam no território, os centros urbanos se degradam e a vida pedestre piora. Comprar um carro para si passa a ser a melhor saída para resolver os problemas gerados pelo excesso de carros dos outros.
Essa equação resulta em uma acentuação progressiva da desigualdade e na propagação do vírus do individualismo. Cada novo motorista melhora as suas condições pessoais de deslocamento à custa da piora das condições de vida dos que não têm carro. Como automóveis são espaçosos, o trânsito para os usuários do transporte coletivo fica pior; como são poluentes, barulhentos e produzem acidentes, todos os moradores das cidades sofrem o seu impacto; tudo isso gera precarização e esvaziamento das ruas. A universalização do automóvel não se deu por suas promessas originárias, mas pelos problemas que sua adoção generalizada criou para a coletividade.
Esses problemas raramente são abordados em sua complexidade. No caso das inundações, a responsável pela impermeabilização extensiva do solo urbano e pela construção de pistas sobre cursos d’água é, precisamente, a enorme demanda de espaço para automóveis. A água da chuva, que deveria ser absorvida pelo solo, corre rapidamente pelas ruas asfaltadas, pela rede fluvial e pelos córregos canalizados – e chega com força aos fundos de vale, onde as áreas de inundação foram ocupadas por avenidas. Quando as águas dos rios transbordam e carregam veículos, estão apenas retomando um espaço que lhes foi roubado, mas que inevitavelmente voltarão a ocupar.
Outras tragédias cotidianas são produzidas pelo automobilismo. A poluição do ar talvez seja a maior delas. Estima-se que quase 9 milhões de pessoas morram anualmente por problemas decorrentes do ar poluído – o que representou uma em cada seis mortes no mundo em 2015. Os automóveis são os principais poluentes nos centros urbanos, onde está a maior parte das pessoas afetadas. A desigualdade também está presente nessa equação: os mais atingidos são os que passam mais tempo nas ruas, como pedestres e usuários do transporte coletivo. Ou seja: as vítimas preferenciais do ar poluído são aqueles que menos poluem.
A quarentena produzida pela Covid-19 jogou luz sobre a máquina da morte – e a paralisou provisoriamente. Sem carros nas ruas, a névoa cinza deu lugar a ares limpos e respiráveis. Estima-se que cerca de 77 mil vidas tenham sido poupadas pela redução da poluição do ar graças à quarentena na China. Em cidades como São Paulo e Belo Horizonte, o isolamento ajudou a derrubar pela metade os níveis de poluentes atmosféricos. Se fossem mantidos os índices, milhares de mortes seriam evitadas anualmente. Além disso, diversos estudos apontam uma relação entre a taxa de mortes por Covid-19 e a poluição do ar, evidenciando que os impactos da doença seriam menos intensos se o ar de nossas cidades estivesse sempre no “padrão quarentena”.
De outro lado, a pandemia evidencia também a manutenção da desigualdade promovida por nosso modelo de mobilidade excludente. Proprietários de automóveis, quando precisam sair de casa durante a quarentena, podem manter o isolamento em seus deslocamentos. A população mais pobre, que em grande parte não parou de trabalhar, segue usando o transporte público. Em decorrência da redução da oferta de trens e ônibus, há notícias de aglomerações em terminais em cidades de todo o país. O transporte lotado potencializa a disseminação do vírus – que as elites trouxeram de avião para o país – nas periferias, onde a desigualdade urbana cobra mais uma vez seu preço: residências precárias, ruas estreitas, pouca ventilação e alta aglomeração dificultam medidas preventivas e amplificam os impactos na saúde da população.
Além disso, a vida em isolamento social se apoia em um agente da mobilidade urbana – o motociclista. Para que as pessoas fiquem em casa, alguém precisa transportar compras, comida, remédios. Os motociclistas são a categoria que mais sofre acidentes no trânsito brasileiro. A regulação atual da profissão de motoboy não impede que os profissionais sejam remunerados por entrega – o que estimula a alta velocidade para ampliar os ganhos. A falta de políticas de controle de velocidade e a pressão financeira, aliada à permissão para que os motoboys circulem na faixa entre os carros, formam um combo explosivo. No ano de 2017, mais de 12 mil motociclistas perderam a vida nas ruas do país – e outras dezenas de milhares foram hospitalizados.
Junto aos poluentes que adoecem nossos pulmões, os canos de descarga dos veículos emitem gás carbônico, contribuindo para o aquecimento do planeta. Nos Estados Unidos, o setor de transportes é responsável por 29% das emissões que geram o aquecimento global – e 59% dessas emissões vêm dos automóveis. Na Europa, onde a proporção é similar, esforços de redução de emissões têm obtido resultados positivos nos setores industrial, residencial, de energia e de agricultura, mas não no setor de transportes, cujas emissões continuam a subir. No Brasil, os transportes respondem pela terceira maior causa de emissões, atrás do desmatamento e da agropecuária.
Podemos dizer que as cidades estão nas duas pontas da crise climática: é nelas que ocorre a maior parte das emissões que geram o aquecimento do planeta – 60%, segundo a ONU-Habitat – e é também nelas que os efeitos são mais sentidos pelas pessoas. Por isso, não há combate à crise climática que não passe por mudanças urbanas profundas.
De um lado, é urgente reduzir emissões, o que demanda alterar radicalmente a forma como nos deslocamos, tratamos nossos resíduos, produzimos energia e alimentos. De outro, como um certo percentual de aquecimento do planeta já é inevitável, é preciso tornar as cidades mais resilientes ao aumento das temperaturas e aos eventos climáticos extremos: será necessário dar espaço para as águas, tornar os solos urbanos permeáveis, ampliar as áreas verdes para amenizar o calor, prover infraestrutura urbana segura para todos.
Nada disso é possível sem se rever a priorização absoluta que automóveis receberam nos últimos cem anos. Como os carros ocupam a grande maioria dos espaços das ruas, embora transportem somente uma parcela dos passageiros, eles demandam áreas que as cidades poderiam destinar para a absorção das águas, prover moradias e espaços públicos. Além disso, veículos particulares são altamente poluentes: calcula-se que emitam oito vezes mais poluentes do que os ônibus por passageiro transportado – enquanto a mobilidade ativa, a pé ou de bicicleta, não produz emissões.
Mesmo a Alemanha, um país com ampla oferta de transporte público de qualidade, não tem conseguido atingir sua meta de redução de emissões por causa dos carros. Ainda que algum dia vire realidade a promessa da consolidação do veículo elétrico, a ocupação de espaço urbano e o gasto de energia necessários seguirão sendo altos – e a energia que abastece a rede elétrica continuará sendo produzida, em muitos países, por fontes emissoras de gases de efeito estufa.
Em cidades que estão levando a sério a saúde de seus moradores e o combate à crise climática, planeja-se um futuro sem carros. Outras tantas fazem investimentos em transportes de massa e subsidiam tarifas – várias estão aderindo à tarifa zero que se defendia no Brasil em 2013. A fim de reduzir emissões e o uso de automóveis, Luxemburgo tornou-se, no dia 29 de fevereiro de 2020, o primeiro país do mundo a oferecer todo o transporte urbano com acesso gratuito.
As propostas desse tipo, no entanto, avançam apenas pontualmente em países do Norte da Europa, caracterizados por uma forte tradição do que urbanistas chamam de Estado de bem-estar social urbano. Na maior parte do mundo, colocar em xeque a prioridade dos automóveis costuma ser recebido como utopia ou simples falta de noção. O debate é interditado de início com base no enorme impacto econômico decorrente da paralisação de uma indústria de cadeia produtiva tão extensa como a automobilística.
Até que veio a pandemia da Covid-19 e pausou parte significativa da atividade econômica. O que parecia impossível de repente aconteceu. As razões econômicas foram para segundo plano, desbancadas pela proteção à vida. A imperiosa necessidade de se manter a roda girando deixou subitamente de ser prioritária. A indústria automobilística passou a fabricar respiradores, em uma inversão simbólica nada banal: em vez de máquinas de poluição do ar, máquinas para salvar vidas da falta de ar.
Uma boa parte dos automóveis está parada nas garagens. As cidades estão silenciosas, pássaros se multiplicam e é possível ver o céu azul. A redução de acidentes de trânsito liberou UTIs país afora para pacientes de Covid-19. Os meses de quarentena possivelmente terão a maior redução de emissões de carbono da humanidade desde a Segunda Guerra Mundial. O sentido de urgência demandado por ativistas do clima foi involuntariamente atendido por um vírus que se espalhou pelo globo. A inação – resultado real em décadas de encontros multilaterais e conferências do clima – foi posta à prova. Ficou evidente que, se houver de fato interesse em alterar a forma de funcionamento da sociedade para preservar as condições de vida do planeta, existe capacidade coletiva de mobilização.
Falando sobre as Jornadas de Junho de 2013, o filósofo Peter Pál Pelbart afirmou que o acontecimento é “um fenômeno de vidência coletiva – enxerga-se o que antes parecia opaco ou impossível”. Assim como naquele momento, a pandemia nos permitiu começar a enxergar aquilo que não se via. Em 2013, nossa perspectiva de mundo alterou-se quando muitos saíram às ruas no Brasil. Agora, alterou-se quando a maioria ficou reclusa em casa. Em 2013, o otimismo pelo crescimento econômico com inclusão evaporou-se, e em seu lugar ficou um país carregado de problemas, com mobilidade excludente, serviços públicos precários e um sistema político fechado. Agora, o véu do hábito caiu por terra e começamos a enxergar que a vida pode ser algo distinto da mórbida chantagem financista a que fomos submetidos.
Mas mudança de mentalidade não significa transformação imediata da realidade – como 2013 não nos deixa esquecer. Se não encontram uma válvula de escape dentro dos sistemas políticos e institucionais, momentos de grande transformação social podem ser estancados ou revertidos. O nível de organização social necessário para que um evento destituinte produza mudanças instituintes não é pequeno. E há o risco de que aqueles que buscam a retomada acelerada do modelo anterior aproveitem a desestabilização para atingir seus objetivos pela via do autoritarismo, da violência e da xenofobia, num momento em que a recessão econômica acentua a pobreza e a desigualdade.
No entanto, é certo que a pandemia abre brechas no monólito dos consensos. A grande mágica da resposta à Covid-19 foi a escolha coletiva por algo que deveria ser elementar: a priorização da vida (e por isso ela incomoda tanto o bolsonarismo, cujo lema poderia ser morte acima de tudo). Atingiu-se um sentido de emergência que é o mesmo necessário para se enfrentar a grave crise climática em que estamos metidos. Ativistas do clima chamavam atenção para essa urgência ao dizer que “a casa está em chamas”, mas a maioria de nós seguia lavando suas vasilhas enquanto o fogo ardia ao redor.
Se cerca de 9 milhões de pessoas morrem pela poluição do ar todos os anos, outro 1,3 milhão perde suas vidas em acidentes de trânsito. Dificilmente a pandemia do novo coronavírus geraria tantas mortes quanto os automóveis – a diferença é que nos habituamos a um, e ao outro, não. No Brasil, os acidentes automobilísticos ceifam cerca de 40 mil vidas por ano. Se as cenas de enterro em covas coletivas em Bergamo, Guayaquil ou Manaus nos mobilizam para a ação preventiva, por que o mesmo não acontece com as cenas não menos horríveis do cotidiano de qualquer pronto-socorro no país, abarrotado de pessoas aleijadas, traumatizadas ou assassinadas por acidentes de trânsito? Nos horrorizamos com a indiferença do presidente da República diante da tragédia gerada pela pandemia – e estamos certos em fazê-lo –, mas costumamos tolerar que nossos políticos e instituições respondam a outras tragédias cotidianas como se elas fossem uma gripezinha. (A violência armada, parte dela perpetrada por agentes do Estado e com viés racista, é um dos capítulos mais tristes da normalização de calamidades no Brasil.)
A precariedade urbana produz diversos outros impactos na saúde da população, especialmente da mais pobre. Na virada do milênio, a ausência de saneamento era, segundo a Organização Mundial da Saúde, a causa de 80% das doenças em países em desenvolvimento. No Brasil, cerca de metade da população não tem acesso a tratamento de esgoto. A precariedade de moradias em vilas, aglomerados e favelas gera problemas respiratórios graves, que possivelmente contribuirão para o aumento do impacto da Covid-19 nessas áreas.
A pausa promovida pela pandemia permite desnormalizar nossa tragédia cotidiana. Não existe um mundo normal e saudável para o qual retornaremos depois da quarentena. O que foi pausado é uma máquina de doenças, mortes e exaustão das condições de vida, à qual nos habituamos, mas que não promete um futuro decente para a nossa e as próximas gerações. Não existe saúde desconectada das condições ambientais. A crise climática planetária e a das cidades são assuntos de saúde pública.
Os mortos e impactados por enchentes, desabamentos, tornados, furacões, desertificação de áreas, migrações em massa, calor excessivo e outros efeitos da crise climática aumentarão a cada ano, em escala imprevisível e potencialmente trágica. Não faltam motivos para seguirmos em modo de emergência. O futuro do mundo pós-Covid-19, a que muitos têm se referido como início do século XXI, dependerá disso.
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