Na campanha à Presidência, Hollande conversa com Valérie, agora sua ex, perto da primeira mulher, Ségolène (E), e da nova namorada, Julie (D) FOTO: CHRISTOPHE PETIT TESSON_MAXPPP
À francesa
François Hollande e os lambris do Elysée
Rosa Freire d’Aguiar | Edição 89, Fevereiro 2014
Quatro e meia da tarde, 14 de janeiro, Palácio do Elysée. Tudo pronto para a primeira coletiva do ano de François Hollande. Na Salle des Fêtes, a mais luxuosa dessa construção do século XVIII, sobressaem as tapeçarias, as pinturas alegóricas, o vermelho-sangue dos tapetes e cortinas, e o dourado flamejante dos lambris. Ali os presidentes tomam posse, outorgam condecorações, oferecem banquetes e organizam as conferénces de presse, vistas como um exercício da rotina republicana.Os 38 ministros do governo – 20 homens e 18 mulheres– e os 600 jornalistas esperam pelo presidente sentados em cadeirinhas tão bonitas como incômodas. Sentados, sim: algum repórter da velha guarda talvez se lembre de que nas primeiras coletivas de De Gaulle ninguém ousava tomar assento diante do gigante de quase 2 metros que simbolizava a resistência à ocupação nazista dos anos 40.
Desde então, aqueles lambris presenciaram estilos diversos e ouviram frases que entraram, senão para a história, ao menos para o folclore. Como a de De Gaulle ao impertinente jornalista que o achava, aos 77 anos, meio velhote para continuar no cargo: “Fique tranquilo, dia desses não vou esquecer de morrer.” François Mitterrand preferia os lambris do Jardin d’Hiver, mas foi entre os brancos e dourados de seu gabinete que, em janeiro de 1991, declarou guerra ao Iraque com o anúncio lacônico: “As armas vão falar.” E Nicolas Sarkozy, que apelou para os marqueteiros como nenhum presidente antes dele, selou seu destino com a ex-top model Carla Bruni sob os lambris da Salle des Fêtes, durante uma coletiva: “Carla e eu, é coisa séria.” Não blefava: pouco depois o Elysée foi palco, pela primeira vez, de um casamento presidencial e do nascimento de uma herdeira.
Ah, se naquela tarde François Hollande pudesse fazer juras de amor à namorada Julie Gayet… A coletiva estava preparada para ser uma pesada contraofensiva em que ele apresentaria urbi et orbi o novo programa previsto para repor o país nos trilhos do crescimento. Todo mundo já se deliciara com a intriga de seus amores secretos, revelada pela revista Closer. Meia dúzia de jornalistas perguntaram sobre a love story, mas Hollande estava afiado: “Passamos por momentos dolorosos… Assuntos privados são resolvidos em esfera privada.” Quanto ao papel da primeira-dama Valérie Trierweiler, que baixara ao hospital, ele só se pronunciou onze dias depois, com raro espírito de síntese: uma frase de dezessete palavras encerrou os sete anos de relacionamento com Valérie e lhe restituiu a vida de solteiro. (A legislação francesa sobre a vida privada é severa, e quem a violar, ainda que revelando fatos verdadeiros, arrisca-se a perder a causa: não mentiu, mas devassou a vida alheia.)
Hollande chegou ao Elysée em 2012 posando de presidente “normal”. Aliviou o truculento esquema de segurança de Sarkozy; em viagens curtas trocou o avião pelo trem. Não fosse a desvairada libido, hoje quem poderia ser presidente era o socialista Dominique Strauss-Kahn. O rocambolesco episódio com a camareira no Sofitel de Nova York pôs tudo a perder. DSK era hors-concours, mas não se imaginava que Hollande, depois de prometer na campanha um comportamento “a cada instante exemplar”, se envolveria nessa trapalhada de adolescente que sai de moto à noite para encontrar a namorada.
A história dos presidentes da República na França está salpicada de escândalos de alcova. Já antes de 1848, quando se torna a residência oficial da Presidência, o Elysée acumulava peripécias de amor e poder. Madame de Pompadour e, mais tarde, Joséphine de Beauharnais lá curtiram a dor de cotovelo ao serem abandonadas, a primeira pelo amante Luís XV, a segunda pelo marido Napoleão, o qual, derrotado em Waterloo em 1815, ali assinou a abdicação sob os lambris folheados a ouro branco do Salon d’Argent.
O mesmo salão foi cenário de uma cena de vaudeville em 1899, quando num fim de tarde lá morreu o presidente Félix Faure, deitado no sofá, seminu, nos braços de Marguerite Steinheil. Ela estava, digamos, com a boca na botija, ao perceber que os dedos do amante em seus cabelos se crisparam, apopléticos. Tocou a campainha e os domésticos acorreram: precisaram cortar suas melenas para que a demi-mondaine saísse da pose constrangedora e escapulisse.
Episódio insólito envolveu, em 1974, um leiteiro e Giscard d’Estaing. Lá pelas quatro da manhã, polícia, bombeiro e ambulância foram acudir um acidente perto do Elysée. Encontraram o presidente, visivelmente bêbado e em bela companhia, que nunca se soube quem fosse. O carro que dirigia entrara na traseira da caminhonete do leiteiro, que deu um tabefe em Giscard, que por sua vez tentou suborná-lo com uma nota de 500 francos. Só o satírico Le Canard Enchaîné revelou o caso, mas nem essa nem outras escapadas noturnas do presidente, na provável companhia de Marlène Jobert, Mireille Darc ou Sylvia Kristel, a eterna Emmanuelle, mereceram investigação da imprensa.
Seu sucessor, Jacques Chirac, chegou ao Elysée com fama de fogoso e rápido no lance, donde a alcunha “Cinco minutos, contando a ducha”. Nos doze anos em que foi inquilino do palácio, corria à boca pequena que seu chofer o levava aos apartamentos das eleitas, entre elas, dizia-se, Claudia Cardinale.
Quem melhor cultivou o gosto da sedução e do segredo da vida dupla foi François Mitterrand. Ele manteve em sigilo, por treze dos catorze anos em que presidiu o país, a existência de uma segunda família. Só em 1994 os franceses conheceram Mazarine, sua filha com Anne Pingeot, quando o fotógrafo Sébastien Valiela – o mesmo que flagrou Hollande entrando no prédio da namorada – clicou pai e filha saindo de um restaurante. A concepção algo monárquica que Mitterrand tinha da Presidência o fez instalar Anne e a menina num apartamento oficial às margens do Sena, onde, graças aos contribuintes, elas viveram por catorze anos.
Se por muito tempo prevaleceu na França a certeza de que as aventuras extraconjugais dos presidentes deviam ser abafadas, foi em parte porque a imprensa parecia ter um pacto tácito para não investigar os potins que circulavam por tout Paris. Essa ambivalência entre curiosidade pela vida íntima e respeito à privacidade persiste, tanto assim que o love affair não abalou a opinião que os franceses têm de Hollande. Se sua vida sexual e sentimental não interferir com as razões de Estado, tout va bien.Não é de hoje que os gauleses são tolerantes, senão simpáticos, com as estripulias mais ou menos indecorosas dos príncipes que os governam. Tal como os lambris dourados do Elysée.
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