O que significaria a palavra críptica? Mensagem secreta? A súmula de um governo errático? IMAGEM: CLAY BENNETT EDITORIAL CARTOON_SOB PERMISSÃO DE CLAY BENNETT, THE WASHINGTON POST WRITERS GROUP E THE CARTOONIST GROUP. TODOS OS DIREITOS RESERVADOS.
A gralha que pariu uma montanha
A algazarra em torno de “covfefe”, o enigmático neologismo de Donald Trump
Sérgio Rodrigues | Edição 130, Julho 2017
“Apesar da constante covfefe negativa da imprensa”. Em inglês soa mais enfático, com “covfefe” no fim da fila: Despite the constant negative press covfefe. A ausência do ponto final não é incomum no Twitter, que passa perto de fazer da esculhambação das regras rígidas de escrita uma regra também rígida, mas nesse caso sublinhava uma estranheza. Sob a ótica gramatical, o tuíte publicado na conta pessoal do presidente dos Estados Unidos aos seis minutos daquela quarta-feira, 31 de maio, é uma oração subordinada adverbial concessiva. Sem a companhia da oração principal, que nunca veio, não fazia sentido. Esse era o menor dos problemas.
O problema maior, claro, estava no covfefe. Madrugada adentro, num tom de zoação que não escondia o fundo de inquietação autêntica, a rede social ficou histérica com memes e especulações sobre o que queria dizer a palavra críptica. Mensagem secreta? Aquilo que Bill Murray disse ao ouvido de Scarlett Johansson no fim do filme Encontros e Desencontros? Súmula dadaísta de um governo errático? E o que teria havido com o tuiteiro da conta @realDonaldTrump para deixar a mensagem absurda pendurada no vazio? Sofrera um colapso no meio da digitação? Estaria morto? Tinha endoidado de vez? Um hacker tomara seu lugar?
As regras do Twitter não permitem editar um texto publicado. A conduta normal teria sido apagar a mensagem malformada para substituí-la pela versão corrigida. Mesmo assim, tratando-se do perfil de um sujeito que está sentado sobre uma montanha de armas nucleares, poucos segundos no ar bastariam para dar popularidade ao erro. Haveria fartura de piadas, ainda que, como já foi estimado, cerca de metade de seus 35 milhões de seguidores seja composta de dóceis bots (robôs). Contudo, dificilmente o furor com o deslize iria muito longe. Ocorre que a conduta normal raramente é adotada por Donald J. Trump.
Por descuido ou intenção de distrair a audiência de debates mais sérios, a mensagem enigmática virou a noite no ar. O sol raiava quando, 100 mil compartilhamentos depois, o homem do topete laranja finalmente a apagou. Deixou em seu lugar uma risada: “Quem consegue desvendar o verdadeiro significado de covfefe??? Divirtam-se!” O habitual carrossel internético de tiradas engraçadinhas, que não tinha esperado o convite para girar em velocidade máxima, ganhou novo impulso. Outro estímulo viria algumas horas depois, quando o porta-voz da Casa Branca, Sean Spicer, insinuou para covfefe uma gravidade de código: “O presidente e um pequeno grupo de pessoas sabem exatamente o que ele quis dizer.” Foi a deixa para Hillary Clinton mirar no calcanhar de Aquiles de quem a derrotou na eleição: “Achei que era uma mensagem secreta para os russos.”
Muito barulho por nada? No mundo das pessoas razoáveis, covfefe é só um erro de digitação, aquilo que em inglês se chama typo e em português, gralha. Parece seguro supor que o presidente americano – às voltas naquela noite com a defesa do genro, Jared Kushner, acusado de relações impróprias justamente com os russos – quis atacar seu alvo de sempre, a “cobertura” (coverage) da imprensa, e tropeçou nos próprios dedos. Deslizes do gênero podem ser engraçados. O mesmo Trump produziu um typo de antologia no ano passado, ao tentar escrever unprecedented (sem precedente) e digitar unpresidented (algo como “sem presidente”). Uma gralha que beira o achado poético do melhor trocadilho e que espíritos freudianos chamariam de ato falho, motivos pelos quais o jornal inglês The Guardian elegeu unpresidented a “palavra do ano” de 2016. Covfefe, nonsense puro, não tem a mesma graça. Seu sucesso incomparavelmente superior é uma história mais complexa.
A palavrinha virou a expressão concentrada de um problema que ultrapassa o folclore em torno de um presidente pouco ortodoxo. O uso que Trump faz das redes sociais, sobretudo do Twitter, é um fio desencapado. Não à toa, no dia 12 de junho, o deputado democrata Mike Quigley apresentou uma emenda legislativa chamada COVFEVE Act, nome em que o neologismo trumpiano se torna acrônimo de Communications Over Various Feeds Electronically for Engagement. A brincadeira força a barra: se “Comunicações em Feeds Variados Eletronicamente para Compromisso” é uma tradução desajeitada, o original não soa muito melhor. Mas o conteúdo é sério. Caso aprovada, a emenda de Quigley transformará os posts do presidente em comunicados oficiais. Desse modo, as mensagens serão documentos de Estado e não poderão ser apagadas.
Até hoje, tanto na campanha eleitoral quanto na Presidência, Trump vem usando o Twitter com uma liberdade inédita entre políticos do primeiro time. Certo álibi de “expressão pessoal, espontânea e autêntica” sustentava o ataque feito em 2015 a uma estudante de 18 anos, Lauren Batchelder, que lhe endereçara uma pergunta desafiadora numa convenção em New Hampshire. Em março deste ano, o mesmo álibi se revelou sua única defesa contra a pecha da leviandade maliciosa quando se provaram vazias as acusações feitas a seu antecessor em 133 caracteres: “Terrível! Acabo de descobrir que Obama grampeou minhas linhas na Trump Tower às vésperas da vitória. Não achou nada. Isso é macarthismo!” Em junho, o jornal The New York Times publicou um dossiê intitulado 332 Pessoas, Lugares e Coisas que Donald Trump Insultou no Twitter: uma Lista Completa, com links para milhares de tuítes.
Coube a um jornalista russo, Leonid Bershidsky, a melhor expressão do abismo sobre o qual o tuiteiro mais poderoso do mundo insiste em dançar na corda bamba. Num artigo intitulado “Por que eu não ri do covfefe de Trump”, ele indaga o que aconteceria se a conta @realDonaldTrump estampasse, por um deslize qualquer, uma mensagem semelhante à que Ronald Reagan enviou ao mundo em 1984, quando, sem notar que estava diante de um microfone aberto, brincou que começaria a bombardear os russos “em cinco minutos”. A gafe pegou mal, mas a integridade do planeta não foi ameaçada: ninguém imaginou que o ex-galã de Hollywood pudesse estar falando sério. Bons tempos. “Tremo só de pensar”, pondera Bershidsky, “que medidas seriam tomadas caso um tuíte parecido de Trump ficasse no ar por algumas horas.” Seria, no mínimo, um tremendo covfefe.
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