Os adeptos do Estado Islâmico acreditam que o apocalipse se aproxima e gozam com sua condição de minoria. Veem o fato como prova de que a maioria está errada, e não eles ILUSTRAÇÃO: WHY DO THEY G_© IDRIS KHAN_2015_CORTESIA DO ARTISTA E DE SEAN KELLY, NOVA YORK
A guerra do fim do mundo
No que creem os seguidores do Estado Islâmico
Graeme Wood | Edição 129, Junho 2017
Em novembro de 2004 fui trabalhar para uma transportadora no Iraque e me instalei perto do aeroporto de Mossul. Duas pequenas construções temporárias serviam de local de trabalho e alojamento. Eu as dividia com dois gurkhas [soldados nepaleses] saudosos de sua terra e um soldado britânico aposentado. Nossos aviões chegavam do Bahrein, e nós quatro trabalhávamos com uma turma de cinco iraquianos, descarregando e entregando as cargas. Soldados americanos recebiam pacotes com mimos mandados pela família e equipamentos vindos de bases distantes. Iraquianos vinham buscar motores a diesel, máquinas de raio X para o hospital da região e caixas e mais caixas de cigarros jordanianos não tributados, para revender. À noite, os gurkhas inflavam suas contas telefônicas ligando para o Nepal em nosso aparelho via satélite, enquanto o britânico assistia a filmes, tomava uísque, engraxava as botas e limpava a arma.
A ocupação do Iraque, então com mais de um ano, não chegara à sua fase mais perigosa, e os ataques de insurgentes ainda eram esforços de aprendiz, não as obras-primas de calamidade em que se transformariam nos três anos seguintes. As forças militares americanas conseguiam proteger o aeroporto, mas não a cidade ao redor. Insurgentes lançavam morteiros e foguetes regularmente, e o CABUM! distante do fogo iminente servia como um alerta de cinco segundos para eu mergulhar no pequeno bunker de concreto contíguo à minha sala de trabalho e aguardar a explosão. Uma saraivada de morteiros podia durar segundos ou horas, e às vezes eu ouvia o rugido de helicópteros que voavam na direção dos adversários e o rasgo dos disparos que os matavam. No terceiro ataque, tratei de equipar o bunker com um livro e uma lanterna, para nunca ser pego, vivo ou morto, sem ter alguma coisa para ler.
Durante aquelas noites longas e geladas, amontoado com os gurkhas numa cama dobrável, debaixo de 15 centímetros de concreto, eu matutava sobre o homem que tentava nos matar. Teria provavelmente a minha idade, 25 anos, talvez menos. Seria iraquiano ou um estrangeiro que amava aventuras como eu? Neste segundo caso, como chegara aqui, e por quê? Se eu mesmo não sabia exatamente por que viera a Mossul – havia empregos melhores mais perto de casa –, como esperava entender as motivações daquele homem desconhecido? Teria ele também melhores alternativas? Enquanto aguardava o momento certo para carregar um morteiro, estaria ele também grudado numa brochura?
Em 21 de dezembro de 2004, um homem-bomba infiltrou-se em uma das duas lanchonetes do aeroporto e explodiu 22 iraquianos e americanos. Naquela hora eu estava almoçando na outra lanchonete. Salvei-me porque meu estômago roncou defronte de um balcão de comida, e não de outro. Quando fiquei sabendo dos detalhes do ataque – o homem tinha enchido suas roupas de pregos e parafusos para multiplicar os estilhaços –, minha empatia sofreu pane. Eu era capaz de me conceber raivoso, até mesmo violento. Mas, ao imaginar a sensação física do assassino – um colete vergando sob o peso de uma loja de ferragens inteira –, cheguei ao limite e me resignei à perplexidade.
Ao longo da década seguinte, os insurgentes mudaram, e eu também. Voltei ao Iraque como jornalista. Os gurkhas foram para o Barém, e o britânico agora protege a vida de um embaixador em Londres. Os últimos soldados ameri-canos deixaram Mossul no final de 2011. Os soldados iraquianos que os substi-tuíram roubaram e venderam grande parte dos equipamentos que os americanos deixaram no país, segundo meus interlocutores locais.
Na ausência dos americanos, os insurgentes saíram das sombras. Alguns anos depois da explosão na lanchonete, membros do grupo responsável juraram lealdade ao Estado Islâmico do Iraque (ISI, na sigla em inglês), o precursor do Estado Islâmico do Iraque e do Sham (ISIS). Na última vez que estive em Mossul, em agosto de 2012, a cidade estava supostamente sob o controle do governo iraquiano, mas a população vivia com medo do ISI, que eles ainda chamavam de “Al-Qaeda” (um nome que o próprio grupo já não usava desde 2006). O ISI/Al-Qaeda extorquia os comerciantes. Matava e sequestrava. Quando saíamos de carro, meu amigo Yasir pedia que eu me abaixasse no banco e tirasse os óculos de sol de estilo militar, pois as ruas estavam tão perigosas que eu poderia ser confundido com um soldado americano ou um mercenário e ser sequestrado pela Al-Qaeda, ou até ser fuzilado se o carro parasse por causa do trânsito.
Em 10 de junho de 2014, a Al-Qaeda – agora chamada Estado Islâmico – venceu com uma força de 500 a mil homens. O exército iraquiano quase não ofereceu resistência. A população de Mossul, a maioria árabes sunitas que desprezava o governo de Bagdá dominado por xiitas, saudou os combatentes sunitas do EI com apreensão, e depois com aterrorizada aquiescência. O EI impôs a lei da sharia e governou Mossul inconteste até que o Exército do Iraque iniciou o ataque para retomar a cidade, em outubro de 2016. O homem que eu imaginava nos idos de 2004 estava no comando.
Observar a conquista de Mossul pelo Estado Islâmico foi testemunhar algo ao mesmo tempo familiar e novo. Uma década de guerra ininterrupta havia passado desde a ocupação da cidade pelos americanos, e o surgimento de mais um bando de atacantes armados num caminhão não era visto como revolucionário. Os ex-integrantes do governo de Saddam Hussein [membros do Partido Baath, uma legenda secular e nacionalista liderada pelo ditador iraquiano] que figuravam agora entre os líderes do Estado Islâmico também me eram muito familiares. Poucas insurgências no Iraque, seculares ou religiosas, nasceram sem a influência dos baathistas, e alguns baathistas passaram ao conservadorismo religioso com espantosa facilidade. Antes bigodudos como Saddam, deixaram crescer a barba e impuseram os códigos islâmicos na lei, no vestuário e no comportamento. Abu Muslim al-Turkmani, um ex-oficial do Exército, tornou-se o chefe de operações do grupo no Iraque. Izzat Ibrahim al-Douri, o baathista ruivo que comandou o maior contingente de fugitivos saddamistas, elogiou o grupo e aliou-se a ele. Para alguns observadores de fora, as digitais dos baathistas eram uma garantia de que nada mudara e de que o inimigo não era novo.
Entretanto, dedicados estudiosos da jihad – que observavam atentamente o EI e frequentavam os fóruns online de seus combatentes e propagandistas – detectaram algo preocupante. Os jihadistas não consideravam a tomada de Mossul uma vitória local, muito menos uma vitória cujos principais beneficiários eram os capangas de Saddam. Em vez disso, primeiro em sussurros e depois aos berros, alardearam que a ascensão do EI era um acontecimento de importância para a história mundial. Na verdade, fazer referência à história mundial seria diminuir seu mérito, pois era o cosmos inteiro que estava em jogo. Afirmavam que o Estado Islâmico estava realizando uma profecia: que ressuscitava leis e formas de governo adormecidas fazia mais de mil anos e que continuaria a derrotar os inimigos do islã até que o próprio Jesus retornasse como um guerreiro muçulmano para matar o Anticristo [no fim dos tempos].
Tanto a escavação de um passado distante e imaginado como as projeções do futuro eram calculadas para explorar uma narrativa bem conhecida. Entre os muçulmanos, e também entre não muçulmanos, a palavra “califado” (um território governado por um sucessor do Profeta, cujo estabelecimento o EI identificara como seu objetivo) conjurava uma memória coletiva de um passado islâmico imaginado: as cortes de Bagdá, as Mil e Uma Noites, triunfos científicos e filosóficos como a invenção da álgebra e as primeiras teorias da óptica. Crianças adormeciam com visões de palácios e tapetes voadores. Muitos pequenos muçulmanos pediam para dormir com a luz acesa depois de ouvir histórias sobre confrontos de exércitos muçulmanos com o Anticristo e as tribulações do fim do mundo. O EI invocava essa narrativa. Para todos os que aderissem ao movimento, prometia glória e virtude e nada menos do que a honra de participar do grand finale do próprio universo.
Toda geração de cristãos e muçulmanos produz sua safra de lunáticos e candidatos a profeta, e eles sempre provocam calafrios em seus contemporâneos racionalistas. Uma geração anterior preocupou-se com a retórica apocalíptica da Revolução Iraniana. Mais da metade dos evangélicos americanos acredita, ou diz acreditar, na iminência do Juízo Final. Por sorte, a maioria dos movimentos apocalípticos se extingue aos poucos, baixa o tom ou é flagrada no blefe. Muitos dos revolucionários iranianos que pensavam que o aiatolá Khomeini se revelaria como o Mádi – uma figura messiânica que, segundo a maioria dos xiitas, andava escondida desde 941 – agora negam ter algum dia acreditado numa coisa dessas. Os mulás governantes se interessam por acordos comerciais tanto quanto por armas nu-cleares. Quanto aos evangélicos americanos, ao mesmo tempo que afirmam crer que vivem no final dos tempos, não deixam de fazer seus depósitos na poupança para a aposentadoria. Por analogia, de certa forma nos tranquilizamos pensando que são apenas frases de efeito quando ouvimos um jihadista dizer que deseja nos matar, com bilhões de outros, para ocasionar o fim do mundo.
O que me preocupou no caso dos novos senhores de Mossul foram as crescentes provas de que eles – junto com uma sociedade cada vez maior de apoiadores, de todos os cantos do planeta – estavam falando sério. Em vez de tagarelar sobre morte iminente, mas planejar uma vida longa, eles falavam em morte iminente e a buscavam com sofreguidão. Em meados de 2014, combatentes do EI já vinham, fazia tempo, postando no Instagram e no Twitter imagens medonhas – cestos com cabeças, montes de corpos, vídeos de execuções. Ao abordarem as etapas de seu automassacre, intensificaram a discussão sobre o anseio pelo martírio em batalha, e recrutas apressaram-se a emigrar para a pior zona de guerra do planeta. Àquela altura, o EI havia transformado o nordeste da Síria em seu reduto. Segundo fontes militares americanas, até então cerca de 20 mil pessoas haviam viajado para lá a fim de combater, e depois disso outras 20 mil desobedeceram ao governo de seus países e ludibriaram a polícia e as patrulhas de fronteira para fazer o mesmo.
Muitos dos que imigraram – ou, no jargão do Estado Islâmico, “fizeram hijrah [hégira]” – logo morreram em combate. Morrer era o objetivo. Muitos outros, porém, continuaram vivos e incentivaram amigos a se juntar a eles. Alguns alertaram sobre as agruras, declarando-se arrependidos, e com isso puseram suas vidas em risco, pois o Estado Islâmico executa desertores. No entanto, nenhuma campanha de propaganda podia disfarçar o inquietante fato de que, para os que imigravam para o Estado Islâmico, a matança era profundamente gratificante.
As cartas que eles mandavam para casa combinavam dignidade serena com absoluta insanidade moral. Em maio de 2015, doze membros da família Mannan, de Luton, na Inglaterra, viajaram juntos para Raqqa, na Síria, a oficiosa capital do Estado Islâmico. Suas idades variavam de 1 a 75 anos, e uma carta aberta da família repreendia quem desconfiasse de que eles tivessem sido enganados para tomar a decisão de ir. “Que ninguém se surpreenda quando dizemos que nenhum de nós veio forçado, contra a vontade”, escreveram. “É um absurdo pensar que uma família inteira poderia ser raptada e obrigada a migrar dessa maneira.” Eles fizeram a viagem “obedecendo ao comando do khalifah [califa] dos muçulmanos”. E encontraram o que queriam: “Uma terra que instituiu a sharia, onde um muçulmano não sofre opressão […], na qual uma pessoa não teme perder seu filho para a imoralidade da sociedade […], na qual os doentes e idosos não esperam em sofrimento.”
Em junho de 2015, um médico australiano, Tareq Kamleh, apareceu em um vídeo do Estado Islâmico elogiando o sistema de saúde de Raqqa, na Síria. O Estado Islâmico, como qualquer outro governo, tinha de administrar seu território e sua população, e se empenhava em criar burocracias para tributação, saúde, educação e outras funções oficiais. A mídia australiana investigou o passado de Kamleh e descobriu indícios de que ele se tornara devoto havia pouco. Noticiaram que ele tinha sido um “playboy” que colecionava fotos das “garotas sexies” com quem saía. O Departamento de Regulação da Prática dos Profissionais de Saúde da Austrália comunicou por escrito ao médico que seu serviço ao Estado Islâmico representava uma violação ética que invalidava sua licença para praticar a medicina. Ele respondeu:
Tomei uma decisão calculada e muito bem informada quando vim para cá, e não houve lavagem cerebral. Desde que cheguei aqui, tenho visto que não estão, de modo algum, como descrevem os bombásticos políticos australianos, “assassinando e estuprando por onde passam”… [Não são] “um culto da morte”. As únicas mortes com que tenho de lidar desde que cheguei aqui têm sido causadas por patologias ou ataques de drones da coalizão. Ao cuidar das vítimas pediátricas dos ataques, meu momento favorito foi quando tive de dizer à mãe de uma menina de 6 anos que o fato de o cérebro da filha estar no rosto significava que ela estava morta. […] Belo trabalho, “Time da Austrália”! Pelo que tenho visto, vocês têm mais sangue nas mãos do que o EI em suas facas…
[…] Não será também o meu dever humanitário ajudar essas crianças?!… Ou apenas crianças de pele branca e passaporte azul? Nego formalmente ter sido participante de qualquer conduta profissional que pudesse pôr em risco minha relação médico–paciente.
Não pretendo retornar à Austrália; voltei, enfim, para a minha terra.
A extensão do fascínio pelo Estado Islâmico era tão chocante quanto sua profundidade. Três gerações de muçulmanos conservadores nos arredores de Londres, um solteirão mulherengo do sul da Austrália e dezenas de milhares de outros haviam, todos, bebido nas mesmas fontes quando se inspiraram. Além do califado físico, com território, guerra e economia para administrar, havia um califado da imaginação, para o qual toda essa gente já tinha emigrado muito antes de transpor a fronteira da Turquia. Eles acreditavam que o Estado que os aguardava purificaria suas vidas, proibindo o vício e promovendo a virtude. Seu líder, Abu Bakr al-Baghdadi, unificaria os muçulmanos de todo o mundo, restauraria sua honra e lhes permitiria residir na única sociedade virtuosa. Seus cidadãos muçulmanos desfrutariam da igualdade perfeita, livres das iniquidades que haviam sofrido em razão de diferenças de raça, riqueza ou nacionalidade no país natal.
Para realizar esse sonho, eles aderiram a um movimento fascista e expansionista de alcance global. Rejeitaram os valores que antes pautavam suas vidas e esposaram práticas como escravização, mutilação e extrema violência contra não muçulmanos e muitos autointitulados muçulmanos. Foram persuadidos pela mesma propaganda e, em muitos casos, pelas mesmas pessoas.
Comecei a procurar esses sedutores. Alguns ainda não haviam emigrado, por uma razão ou outra, portanto estavam ao alcance de um jornalista infiel. Muitos adoraram a atenção. Fiz sempre perguntas ingênuas: O que você quer? Quem é você? Por que, dentre todas as versões do islã, essa mais implacável o atraiu?
Em dezembro de 2014, numa tarde quente em Melbourne, na Austrália, comecei a obter as respostas. Um dos mais prolíficos defensores do Estado Islâmico é Musa Cerantonio, de 32 anos, um convertido do catolicismo que na época vivia sob vigilância do governo em Footscray, subúrbio de Melbourne. Há palestras, ensaios e traduções de sua autoria por toda a internet jihadista, e em meados de 2014 analistas do terrorismo consideravam-no uma das principais influências sobre os partidários do Estado Islâmico. Autoridades localizaram-no no sul das Filipinas, deportaram-no para Melbourne e confiscaram seu passaporte. Os tabloides australianos acharam o máximo ter um jihadista por perto – uma cara barbuda para estampar abaixo das manchetes estridentes sobre terrorismo em casa. Quando ele desembarcou em Melbourne, o enxame de repórteres lembrou um desfile de inimigo cativo para fins de humilhação pública. Em meados de 2014, o Facebook cancelou a página pessoal dele, que atingira um pico de 12 mil devotos, e Cerantonio se aquietou por alguns meses.
Quando o encontrei, ele estava pronto para falar. Aliás, estava tão ansioso para responder às minhas perguntas que me pagou o almoço: carne de cordeiro com quiabo em um modesto restaurante sudanês. Reconheci nele uma forma familiar de fervor missionário: ao falar comigo sobre sua religião, ele me vinculava a ela, removia a ignorância da lista de desculpas que eu pudesse usar perante Deus no dia do Juízo Final. Através de mim, ele vincularia os meus leitores também. Nessa conversa, a primeira de muitas, ele descreveu em linhas gerais o dever dos muçulmanos de escolher um califa, um sucessor do Profeta, e obedecer a ele. Explicou que o Estado Islâmico fizera exatamente isso, portanto cumprira uma obrigação desconsiderada por muitas gerações anteriores, passível de risco para suas almas. “Eu diria até que o islã foi restabelecido”, afirmou.
Avisou-me que não demorariam a chegar os últimos dias profetizados por Maomé. A Terra sofreria secas – um terço do planeta ficaria sem chuva por um ano, e dois terços no ano seguinte. Viveríamos em uma era de milagres, tanto falsos como reais, de sofrimentos, massacres e tribulações inimagináveis, de guerra global travada com os mais variados instrumentos, do sabre à bomba termonuclear. Os que sobrevivessem, muçulmanos ou não, ansiariam pela morte.
Isso tudo ele relatou com a maior calma enquanto eu o ouvia e comia o meu cordeiro. A cada minuto o almoço perdia o gosto para mim. Diante de batalhas finais e apocalipse, quem é que vai ligar para comida? Quem é que vai ligar para qualquer coisa? As preocupações cotidianas que tinha carregado comigo àquele encontro (Meu gravador está funcionando? Tranquei mesmo o quarto no hotel?) perderam importância. Por um momento, senti a contracorrente da crença e consegui imaginar por que alguém poderia renunciar ao mundo sem graça em que eu vivo em troca do mundo encantado de Musa Cerantonio.
“O sol nascerá no oeste”, ele disse. “Desse momento em diante, Alá não aceitará arrependimento, e a hora final estará sobre nós.” Ele fez uma pausa. Pensei, de início, que ele havia parado porque eu parecia perturbado, absorto na crescente distância emocional e imaginativa entre nossos respectivos universos. Depois percebi que ele parara porque sua narrativa apocalíptica havia terminado junto com o próprio universo.
Ficamos em silêncio por alguns segundos, olhando um para o outro – não de forma hostil, mas para avaliar se valia a pena conversar mais. Ele havia relatado aquelas profecias como fatos triviais, como se descrevesse sua rotina matinal ou me desse uma receita de pudim. Para mim, aquilo podia muito bem ser ficção científica ou uma narração de O Crepúsculo dos Deuses, de Wagner, uma cosmologia apocalíptica reduzida – alguns diriam elevada, mas, de qualquer modo, dessacralizada – à condição de literatura. Contudo, Musa Cerantonio estava me convidando para acompanhá-lo na crença de que aqueles acontecimentos eram tão concretos quanto a mesa e os pratos à nossa frente. Eis o que o Estado Islâmico vai fazer, ele estava dizendo, e como o mundo vai acabar. E ninguém pode impedir.
Era uma conversa grandiosa para um australiano desempregado que lambia os dedos engordurados. Se ele fosse uma voz solitária a falar sobre apocalipse, eu não teria prestado mais atenção. Acontece que, depois de dezenas de entrevistas, com ele e com dezenas de seus companheiros em quatro continentes nestes dois últimos anos, acabei por vê-los como a superfície visível de uma causa que estava mexendo com as emoções e convicções de dezenas de milhões de outros, e que continuaria a inspirá-los ainda por décadas, mesmo se perdesse seu território central na Síria e Iraque. Aqueles homens e mulheres não eram autômatos psicopatas. Na verdade, muitos eram inteligentes, alguns até refinados e muito polidos. E o que eles estavam seguindo era mais do que um sistema de crença. Era um modo de pensar e viver, de compartilhar alegria e devoção; era uma cultura em si mesma.
A dissonância cognitiva ainda me perturba: são pessoas inteligentes que têm crenças extraordinariamente perversas. É tentador procurar resolver essa tensão duvidando da sinceridade deles – com certeza não desejam o genocídio, com certeza não me querem ver morto. Mas procurei por sinais de embuste e, se houver algum, eles são as vítimas, não os autores. Quando alguém diz algo maldoso demais para que acreditemos, nossa resposta não é duvidar de sua sinceridade, mas expandir nossa capacidade para imaginar o que podem desejar pessoas que, não fosse por isso, pareceriam íntegras. Essa é a resposta apropriada ao Estado Islâmico, concluí. Ouvir suas vozes e ver seu interminável currículo de apedrejamentos, imolações e balas na cabeça deixam-me com a mesma sensação daqueles pesadelos apavorantes que acabam nos acordando por serem vívidos demais. O terror torna-se tão intenso que nos arranca do sono. Entretanto, esse pesadelo só tem feito tornar-se mais real, sem um retorno ao estado de vigília, e ainda não concluiu sua expansão da nossa intimidade com o mal.
Alguns continuarão a ver os partidários do Estado Islâmico como maníacos e duvidarão da importância de analisar minuciosamente a loucura, quanto mais a propaganda nauseante. Que benefício pode haver na leitura do palavrório desatinado de gente maluca, mesmo que esteja citando o Alcorão corretamente? Isso me faz lembrar a história do falecido crítico de cinema Roger Ebert sobre seus tempos de repórter novato, quando ele entrevistou um pregoeiro de parque de diversões.
Sua estrela era um ganso que arrancava com o bico a cabeça de galinhas vivas e bebia o sangue delas.
“Este é o melhor ganso nesse ofício”, me garantiu o homem.
“Qual a diferença entre um ganso bom e um ganso ruim?”, perguntei.
“Quer examinar as galinhas?”
É preciso examinar as galinhas. Não é bonito, porém traz mais resultados do que os detratores do Estado Islâmico poderiam pensar. Já faz anos que o Estado Islâmico e seus partidários produzem ensaios, fatwas (determinações religiosas), filmes e tuítes em escala industrial. Quando estudamos essas mensagens, percebemos uma visão de mundo coerente, alicerçada na interpretação da escritura islâmica por uma minoria, uma interpretação que existe, em várias formas, há quase tanto tempo quanto a própria religião. Essa versão do islã tem apenas uma ligeira semelhança com o islamismo praticado ou adotado pela maioria dos muçulmanos. Os seguidores da corrente principal do islã ressentem-se porque o Estado Islâmico afirma ter acesso exclusivo à sua religião; em solidariedade a essa repulsa, muitos não muçulmanos olham para o outro lado e desconsideram propositalmente as especificidades das afirmações religiosas do Estado Islâmico. Essa desatenção premeditada tem sido um erro muito caro. Nosso inimigo nos convida a conhecer mais sobre ele, mas nos sentimos tão enojados que recusamos a oferta.
Os seguidores do Estado Islâmico deleitam-se com sua condição de minoria. Veem o fato como prova de que a maioria está errada, e não eles, e ressaltam que os primeiros muçulmanos, a quem procuram imitar tão ostensivamente, também foram uma minoria perseguida que triunfou e remodelou o mundo. E a confiança dos partidários do Estado Islâmico em sua própria retidão se fortalece quando alguém – em geral um inimigo que nunca se deu ao trabalho de examinar o que eles afirmam – lhes diz que eles não sabem nada sobre a religião deles, quando, na verdade, o mais das vezes eles sabem muito (quase sempre mais do que seus críticos) sobre a escritura, a lei e a teologia, ainda que não sobre as virtudes humanas básicas que a maioria dos muçulmanos considera fundamentais em sua fé. Acontece que eles preferem sua interpretação violenta, e não a pacífica favorecida por seus críticos.
Uma tarde, em Oslo, fui comer pizza na hora do almoço com uma delegação da Profetens Ummah [a Comunidade do Profeta], um grupo islamita norueguês de talvez 100 membros ligado aos “choudaretes”.[1] (Como de hábito, nenhum dos integrantes declarou apoiar o Estado Islâmico. Mas muitos postavam imagens da Síria em suas páginas em redes sociais, e seus comentários eram invariavelmente consistentes com a ideologia do Estado Islâmico.) Após horas discutindo sobre decapitações e escravização, um homem de barba branca chamado Abu Aisha – que viera da Argélia para a Noruega em 1989, aos 24 anos – tocou meu antebraço em um gesto amistoso e disse: “Respeito quando você diz que não apoia o Estado Islâmico. Mas por quê? É por causa do que vê na mídia – porque você viu o que pessoas dizem sobre eles?”
Respondi que havia muitas razões.
“Qual é a principal?”
“Matança, escravidão, amputação”, respondi, e acrescentei que poderia continuar citando.
“Compreendo”, ele disse. “Você acha que isso é demais, e não é o único. O próprio Profeta disse que pessoas lhe fariam oposição. Isto é uma guerra – e não uma guerra que nós escolhemos. Não fazemos isso porque desejamos ferir vocês. Fazemos porque desejamos lhes oferecer alguma coisa.” Ele virou as palmas das mãos para cima, no gesto universal que representa dar. “Queremos ver todos os seres humanos no paraíso. Esta não é uma religião egoísta. Queremos ver vocês lá conosco.”
Ele avisou que o tempo estava se esgotando. “Quando o Profeta era vivo, Alá deu-lhe milagres”, disse Abu Aisha. “Alá concedeu a ele a capacidade de ver tudo até o dia do Juízo Final.” Esse dia está próximo. “Sempre devemos procurar por asharat sa ‘a [os Sinais da Hora]”, ele explicou, citando a literatura do hadith [relato sobre as palavras de Maomé] sobre os sinais do fim do tempo. Deus não é incompreensivo. Ele nos disse tudo o que precisamos saber para reconhecer a hora final, declarou.
“Por que acreditamos no Estado Islâmico? Porque o Profeta disse que ele está chegando.” A era dos califas passará e será substituída pela era dos reis, a era dos reis dará lugar à era dos califas, e então os sinais do fim irão proliferar. “Um hadith autêntico diz que haverá um khilafah ‘ala manhaj al-nabuwa [califado segundo a metodologia profética]”, ele explicou, fazendo eco ao lema do Estado Islâmico. “Será como no tempo do Profeta: se você roubar, perderá a mão. As Nações Unidas podem não gostar, mas é assim que vai ser.”
Abu Aisha enumerou os Sinais da Hora – acontecimentos preditos na profecia que lentamente vêm sendo cumpridos ao longo dos últimos mil anos. Entre eles um embargo ao Iraque (cumprido nos anos 1990 sob Saddam Hussein), o governo de nações muçulmanas por pessoas indignas (como os governantes pretensamente apóstatas atuais) e uma guerra entre muçulmanos e judeus (confere). A deidade pré-islâmica Lat – um dos ídolos de Meca despedaçados pelo Profeta em pessoa – uma vez mais encontrará devotos. (A principal revista produzida pelo ei, a Dabiq, chama o partido xiita libanês Hezbollah [Partido de Deus] de “Hizb al-Lat” [Partido de Lat].) Os muçulmanos cavalgarão e empunharão espadas – como fazem em muitos vídeos de propaganda do Estado Islâmico.
Muitas das predições referem-se à decadência dos costumes e da moral. Haverá muitos escritores e críticos – “Você!”, disse Abu Aisha –, e tolos discorrerão sobre assuntos de grande importância. (Eu também? Minha educação não me permitiu perguntar.) Haverá ignorância generalizada, fornicação frenética e consumo de álcool, diz uma tradição. Haverá música, diz outra, e as pessoas fornicarão nas ruas, como asnos. (Esta talvez seja a única profecia de uma religião importante que poderia ser cumprida com um festival anual de hip-hop.)
“Pastores nus e descalços competirão para erguer construções altas”, diz outro hadith. Abu Aisha diz que o esporte de construir arranha-céus desnecessariamente altos no Golfo reflete essa profecia, pois os príncipes e emires que o fazem estão a apenas uma ou duas gerações de seus antepassados pobres. As profecias também predizem a importação em massa de servos não muçulmanos para terras muçulmanas, além de dinheiro em abundância. Com a riqueza do petróleo e os programas de trabalhadores convidados atraindo centenas de milhares de ocidentais, filipinos e chineses para a região, esses sinais estão inquestionavelmente cumpridos.
Para Abu Aisha, minha obstinação seria cômica se não fosse trágica. Ele parecia pronto para me pegar pelas mãos e me sacudir para ver se eu despertava. Esses sinais – sem falar na perfeição do Alcorão e no exemplo do Profeta – não eram suficientes para me arrancar da hipnose da kufr [descrença]? “Estamos aqui para tornar o islã fácil para você!”
Repliquei que a maioria dos muçulmanos não tinha essa noção de que o mundo terminaria em breve. Ele respondeu que o mundo estava mesmo mudando, e os próprios muçulmanos estavam saindo de uma hipnose. “A primeira geração [de muçulmanos] que veio para a Noruega era muito pobre e ignorante”, ele disse. Fugiram de países que controlavam sua vida política e religiosa. “Só faziam trabalhar, beber leite e dormir. Mas esta [segunda] geração nasceu livre. O governo foi ingênuo se pensou que os descendentes se comportariam do mesmo modo.”
Conversamos mais um pouco, e Abu Aisha me perguntou: “Você tem onde dormir esta noite? Está em segurança?” Ele estava obedecendo a um mandamento do Profeta: se um infiel procurá-lo para indagar sobre a religião, responda às suas perguntas e cuide para que se vá em segurança. Garanti que estava em segurança (alguém está inseguro em Oslo?). A Profetens Ummah pagou a pizza.
Os detalhes do fim do mundo não são uma preocupação para a grande maioria dos muçulmanos. Como no cristianismo, quando o padre do bairro começa a falar o tempo todo sobre o apocalipse, a reação natural é pensar em procurar outro padre. A homilia de domingo não costuma incluir especulações minuciosas sobre a grande Prostituta, a marca da Besta e os quatro cavaleiros do Apocalipse. Os teólogos cristãos sérios encontram temas mais interessantes. O futuro é obscuro demais, desconhecido demais. As profecias são, ao mesmo tempo, vagas e sinistras, e pouco delas se aplica ao cotidiano.
Contudo, tanto no islã como no cristianismo, a escatologia – o estudo do fim dos tempos – é parte da religião. E a curiosidade sobre o fim dos tempos é tão grande no laicato quanto é pequena no clero. As livrarias islâmicas de Whitechapel, ou dos arredores da estação Couronnes, em Paris, contêm vastas seções dedicadas ao apocalipse: estantes e estantes, em várias línguas, que compilam as difusas e fragmentadas declarações do Profeta sobre o fim dos tempos. As capas tendem a mostrar imagens do céu com raios e fogo, em uma estética que, talvez não por coincidência, lembra os livros da série de ficção cristã-apocalíptica Deixados Para Trás e os filmes da literatura cristã evangélica. Em meio a numerosos títulos sobre temas insípidos (vida de califas, tratados morais sobre a pureza, manuais de orações), esses livros relatam histórias dramáticas e impressionantes de batalhas finais entre o bem e o mal, poderes sobrenaturais, a ascensão final de uma elite muçulmana, pragas e carnificina.
Jean-Pierre Filiu, professor de estudos islâmicos na Sciences Po, instituto de estudos políticos de Paris, disse-me que os muçulmanos geralmente aprendem essas histórias não no ensino formal, mas em murmúrios, boatos e casos contados de geração em geração. “A história do dia do Juízo Final é contada aos pequenos muçulmanos na hora de dormir, e até os muçulmanos com níveis rudimentares de conhecimento já ouviram parte dela”, ele diz. “Não é algo tratado nos khutbahs [sermões]. É assunto de bate-papo do lado de fora da mesquita antes de voltar para casa.”
Por sua vez, os imames e os líderes comunitários nada dizem sobre o hadith do apocalipse ou negam explicitamente que ele existe. O chefe do Conselho de Relações Islâmico-Americanas, Nihad Awad, afirma ignorar o apocaliptismo muçulmano. “Não existe um banho de sangue apocalíptico no islã”, ele declarou a um site depois que comecei a escrever sobre o assunto. Porém, sem a menor sombra de dúvida, existe sim um banho de sangue, como muitos muçulmanos mais bem-educados ou menos constrangidos poderiam informar-lhe citando coletâneas canônicas do hadith. São relatos medonhos, e o cenário de muitos dos piores acontecimentos é Sham, a área da Síria e Iraque onde o Estado Islâmico instalou sua base.
Os pregadores de rua do Estado Islâmico não mostram o mesmo embaraço que os doutos do islã majoritário quando falam sobre esse tema. “Se você disser ‘fim dos tempos’ e ‘Sham’ para a massa de recrutas [do Estado Islâmico], eles entenderão imediatamente”, comentou Filiu. Desde meados dos anos 2000, as correntes jihadistas apocalípticas ganharam força. “A Al-Qaeda era tóxica demais, com assassinatos em massa, genocídio. Adicione o apocalipse, e se torna insuportável”, ele diz. A Al-Qaeda agia como um movimento político clandestino, com objetivos mundanos perceptíveis em todos os momentos: expulsar os não muçulmanos da península Arábica, abolir o Estado de Israel, acabar com as ditaduras em terras muçulmanas. Bin Laden raramente mencionava o apocalipse; quando o fazia, insinuava que, ao chegar essa hora, ele já estaria morto havia muito tempo. “Bin Laden e Zawahiri [atual líder da Al-Qaeda] são de famílias da elite sunita que desprezam esse tipo de especulação, pensam que é coisa das massas”, diz Will McCants, da Brookings Institution, autor de um livro sobre o pensamento apocalíptico do Estado Islâmico.
Como aconteceu em muitos rumos recentes do jihadismo – o antixiismo virulento, o deleite com sangue –, a mudança começou com Abu Musab al-Zarqawi [líder da Al-Qaeda no Iraque, que daria origem ao Estado Islâmico]. “Al-Zarqawi injetou a mensagem apocalíptica na jihad”, diz McCants. Nos últimos anos da ocupação do Iraque pelos americanos, os predecessores do Estado Islâmico viram sinais do fim dos tempos por toda parte. Previram a chegada iminente do Mádi, a figura messiânica destinada a conduzir os muçulmanos à vitória antes do fim do mundo. Um proeminente juiz da Al-Qaeda foi avisar Bin Laden em 2008 de que o grupo era liderado por milenaristas que “não paravam de falar sobre o Mádi e sobre a tomada de decisões estratégicas” baseadas em quando eles julgavam que o Mádi chegaria. “A Al-Qaeda tinha de escrever [a esses líderes] e dizer ‘Corta essa!’”, McCants comenta. Em vez disso, reiteraram seu engajamento na narrativa do fim dos tempos.
Historicamente, o messianismo cristão tem sido uma doença mais letal do que o messianismo muçulmano. Este, porém, reapareceu nestas últimas décadas sob formas cada vez mais virulentas. O último precursor do Estado Islâmico também foi um movimento apocalíptico. Nos anos 70, um ex-guarda nacional saudita chamado Juhayman al ‘Utaibi (1936–80) liderou um grupo de justiceiros que buscavam livrar a Arábia Saudita de vícios como álcool, música e uso de manequins em vitrines de loja. Eles consideravam a maioria do establishment religioso saudita desencaminhada, e procuraram (e receberam) a bênção de certos clérigos, entre eles ‘Abd al ‘Aziz bin Baz, que mais tarde seria o grão-mufti da Arábia Saudita. Adotavam práticas minoritárias excêntricas, como por exemplo não tirar as sandálias enquanto oravam (como faziam Musa Cerantonio e seus seguidores em Footscray), e afirmavam que a família real saudita, por não ser da linhagem coraixita, por colaborar com infiéis e omitir-se na jihad, não tinha legitimidade para governar. Finalmente, enfatizavam o monoteísmo devoto de millat Ibrahim [o povo de Abraão] – uma frase que é empregada com destaque na propaganda do Estado Islâmico e que é o nome adotado por um dos grupos jihadistas europeus mais proeminentes que fez hijrah para combater pelo Estado Islâmico.
Em fins dos anos 70, Juhayman e seus seguidores fizeram planos para um califado. Em vez de ocuparem seu lugar na fila dos doze califas justos, eles pularam direto para o último, o Mádi. Compilaram nas profecias uma lista das características previstas para o Mádi, incluindo nome, tamanho da testa e a existência de uma marca de nascença na face. Por incrível que pareça, Juhayman encontrou um candidato adequado com todas as características desejáveis: seu cunhado, Muhammad ibn ‘Abdullah al-Qahtani.
Em 20 de novembro de 1979, o primeiro dia do ano 1400 no calendário islâmico, cerca de 300 conspiradores esconderam numerosas armas em caixões funerários e as contrabandearam para a Grande Mesquita em Meca. Depois das orações, Juhayman se apoderou do microfone, fechou a mesquita, declarou que seu cunhado era o Mádi e lhe prometeu bay‘a [o contrato entre o Profeta e seu súdito] perante uma plateia de peregrinos cuja maioria não falava árabe. Os combatentes previam, com base na profecia, que um exército marcharia sobre eles vindo do norte e, a caminho da batalha, seria engolido pela terra. Seus rádios portáteis não revelaram nenhum acontecimento parecido. Em vez disso, forças de segurança sauditas atacaram e, em quatro dias de luta, o Mádi foi morto (ele estava pegando granadas lançadas pelas forças sauditas e atirando-as de volta, possivelmente convencido de sua invencibilidade). Após duas semanas, os sauditas invadiram a mesquita e limparam a rede de túneis subterrâneos. Morreram por volta de 500 pessoas, a maioria soldados do governo; em 9 de janeiro de 1980, os sobreviventes do grupo de Juhayman, inclusive ele próprio, foram decapitados publicamente em oito cidades do reino.
Cole Bunzel, pesquisador da Universidade Princeton que estuda o Estado Islâmico, classifica o movimento de Juhayman na categoria “apocalipse agora” – um grupo para quem o fim já está acontecendo. Bunzel contrasta-o com o Estado Islâmico, um movimento cuja categoria é meramente a do “califado agora”. No entanto, as ligações entre os dois são claras. Fios de ascendência intelectual ligam esses grupos por intermédio de Abu Muhammad al-Maqdisi [clérigo jordaniano que se tornou o arquiteto intelectual da Al-Qaeda], que já foi um jovem admirador de Juhayman, e seu discípulo Turki al-Binali. No começo dos anos 80, Al-Maqdisi encontrou-se com seguidores de Juhayman no Kuwait, e seus escritos subsequentes adotaram a ideologia intransigente e centrada na jihad de Juhayman, incluindo o conceito de millat Ibrahim, que Maqdisi usou como título de um livro publicado em 1984. Al-Binali aprendeu com exemplos positivos e negativos de Juhayman. Nomear um Mádi podia ter sido um exagero, mas reviver um califado talvez fosse um caminho bem-sucedido para o cumprimento da profecia.
O mais espantoso no golpe sensacionalista de Juhayman é o fato de seu rematado fracasso não ter extinguido seu apelo emocional para muçulmanos de várias origens e inclinações. Osama bin Laden falou positivamente sobre Juhayman. Ilustres eruditos sauditas choraram a morte de Juhayman e seus seguidores, que não eram uns perdedores fanáticos, e sim estudantes dedicados.
Em 2014, antes de o Estado Islâmico declará-lo oficialmente um apóstata, Yasir Qadhi [um erudito muçulmano que leciona nos Estados Unidos] classificou o grupo de Juhayman como “um dos movimentos mais assustadores e perigosos da nossa história recente”. No entanto, reconheceu que tinha dificuldade para discernir heresias em seus textos. Juhayman era ortodoxo e muito devoto, bem na tênue linha limítrofe “entre fanatismo e retidão”. No ano seguinte, no 36º aniversário de sua morte, Qadhi escreveu que a visão proposta por Juhayman era “muito bela e encantadora. No entanto, suas ações acabaram sendo piores que as de seus inimigos”. O Estado Islâmico explora essa mesma veia milenarista, e a inspiração continua a correr por ela, mesmo depois que o ato distintivo do grupo de Juhayman – a nomeação de um Mádi – literalmente explodiu na cara de seus perpetradores.
E essa é a nota final da canção apocalíptica. Poderíamos imaginar que o fracasso da profecia levasse aqueles que semearam tal carnificina em nome do Profeta a fazer uma reavaliação. Por que não apenas derrotá-los em Dabiq [a cidade síria onde os ideólogos do Estado Islâmico preveem que ocorrerá uma das batalhas decisivas antes do fim do mundo] e mostrar que estão enganados? Essa sugestão nasce da mesma visão ingênua da religião que imagina que seus seguidores estão fadados – inevitável e automaticamente – a interpretar texto e história de um único modo.
Em seu clássico estudo sobre um culto a óvnis cuja hora do Juízo Final passou sem novidades em 21 de dezembro de 1954, Leon Festinger[2] apresentou a hipótese de que às vezes a verdadeira crença, quando os acontecimentos provam que ela está errada, reage tornando-se mais forte e mais comprometida. Festinger concluiu que a refutação consolidaria crenças mantidas com toda convicção por pessoas que tinham um comprometimento emocional, espiritual, social e material com sua verdade.
Os seguidores do Estado Islâmico desviaram totalmente suas vidas e fazem de tudo para se isolar em um meio social que apoia a continuidade da crença e pune a dúvida com a espada. Mesmo com o califado desmoronando à sua volta, seus líderes e a propaganda fornecem desculpas, fortalecem sua determinação e se empenham em explicar por que uma derrota acachapante é um passo na direção da justificação.
E, para alguns que deixarem o califado de Al-Baghdadi, o califado sobreviverá em seus corações. Eles não precisam ser violentos e podem reconhecer seu erro e voltar à sociedade. Mas desconfio que poucos se arrependerão verdadeiramente. Serão como aqueles esquerdistas de cabelos brancos que estiveram no extremo da contracultura nos anos 60 e se lembram desse período como aquele que lhes trouxe mais significado. Eles ergueram o punho com os radicais, depois voltaram para a faculdade e se tornaram dentistas. Mas não dispensam as miçangas e sandálias no fim de semana.
Quando o escritor peruano Mario Vargas Llosa esteve no Sertão Brasileiro em 1979, fazendo pesquisa para seu romance sobre a malograda revolta de Antônio Conselheiro, encontrou uma idosa descalça, tostada de sol, em uma das povoações fundadas pelo líder religioso. O homem estava morto fazia 82 anos. “Antônio Conselheiro? Não morreu”, ela disse. “Eu tenho esperança de ver ele, quero pedir conselho antes de eu morrer.” Para pessoas como ela, abandonadas pelo mundo, ou desgostosas com ele,
[o Conselheiro] espiritualizou sua orfandade e lhes deu razões para continuar a viver e enfrentar a morte com bravura. Fez tudo isso remodelando a única cultura ao alcance: a religiosa. Curiosamente, ao optar pela ortodoxia mais rigorosa e tentar trazer à sua conclusão lógica a fé na qual fora criado, ele foi visto como um rebelde contra todas as instituições da sociedade, perseguido e exterminado como um cão raivoso.
Abu Bakr al-Baghdadi não será e nem deve ser lembrado com esse tipo de imparcialidade ou afeto. Seu cinismo e brutalidade não permitem. Mas seus seguidores creem. E isso é uma garantia de que, de uma forma ou de outra, o movimento perdurará.
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Trecho do livro A Guerra do Fim dos Tempos: O Estado Islâmico e o Mundo que Ele Quer, que a Companhia das Letras lança este mês.
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[1] Termo cunhado pelo autor para designar jocosamente os admiradores de Anjem Choudary, nascido em Londres em 1967 e o mais famoso partidário do EI na Grã-Bretanha; em setembro de 2016, ele foi condenado a cinco anos e seis meses de prisão por apoiar o Estado Islâmico.
[2] O psicólogo Leon Festinger (1919–89) infiltrou-se num grupo de pessoas que previa o fim do mundo para o dia 21 de dezembro de 1954; a reação delas, diante do não cumprimento da profecia, embasou sua teoria da dissonância cognitiva: o grupo não só continuou firme em sua crença como a fortaleceu, ainda que os fatos a desmentissem.