Daniel Galera: "Ninguém nunca devia ser convencido de nada. As pessoas já sabem o que querem e sabem do que precisam. Persuadir uma pessoa a não seguir o coração é obsceno, a gente sabe do que precisa e ninguém pode nos aconselhar." FOTO: AVANI STEIN_ÍMÃ FOTOGALERIA_2012
A hora e a vez do homem sem nome
Em Barba Ensopada de Sangue, Daniel Galera vai a Garopaba ver como se formam as figuras da nacionalidade
Mario Sergio Conti | Edição 74, Novembro 2012
Barba Ensopada de Sangue, o novo romance de Daniel Galera, é uma sobreposição caleidoscópica de rumores, lendas e episódios pitorescos, todos inventados. É também uma narrativa realista ambiciosa, na qual um jovem autor se desvencilha de muitas das amarras da subjetividade e tematiza a fragmentação da sociedade nacional, investigando o que nela permanece em meio a mudanças vertiginosas.
Depois de uma introdução breve e enigmática, o livro começa com um diálogo:
“Que cara é essa?”, pergunta um filho ao pai.
“A mesma de sempre”, é a resposta.
A conversa, que é longa e carregada mas concisa, mostra grande domínio de técnica literária: o trecho foi selecionado para figurar na edição da revista inglesa Granta dedicada a ficcionistas brasileiros jovens, que será lançada neste mês nos Estados Unidos e depois na China.
No diálogo, o pai avisa de chofre ao rapaz que se suicidará em breve. E pede ao filho que sacrifique sua cadela, Beta, depois de ele se matar. É afeiçoado ao animal de estimação e não quer que ele fique sozinho. O jovem rejeita o pedido e tenta dissuadi-lo. O suicida, publicitário premiado, retruca:
Trabalhei com persuasão minha vida toda, a persuasão é o maior câncer do comportamento humano. Ninguém nunca devia ser convencido de nada. As pessoas já sabem o que querem e sabem do que precisam. Sei disso porque sempre fui especialista em persuadir e inventar necessidades.
E encerra o assunto:
Persuadir uma pessoa a não seguir o coração é obsceno, a persuasão é uma coisa obscena, a gente sabe do que precisa e ninguém pode nos aconselhar.
Anuncia-se assim um conflito que permeará o romance, o da oposição entre as falsidades da razão argumentativa (“a persuasão é uma coisa obscena”) e as verdades atávicas da natureza (“as pessoas já sabem o que querem”). O antagonismo, que tem história longa na literatura, aqui não produz vagos devaneios de caráter atemporal. O contraponto e a tensão entre pensamento e emoção se situam num ambiente palpável, o que lhes dá dimensão concreta.
Assim, a oposição se desdobra no choque entre sujeito solitário e organização social, família e núcleo urbano, passado e presente, mito e história, mas nunca no plano de ideias ou arquétipos, e sim no hic et nunc de um vilarejo de Santa Catarina. A força da razão esclarecedora – a persuasão – é sacada do pedestal da filosofia idealista para ser associada à propaganda, apresentada como instrumento de venda de necessidades alheias ao indivíduo.
No segundo capítulo, o filho já está em Garopaba, cidadezinha no litoral catarinense onde procura uma casa para alugar durante um ano. Chega ao dono de uma, um argentino, que lhe pergunta se fugiu de uma metrópole para o balneário a fim de surfar ou esquecer uma mulher. “Eu só quero morar na praia”, responde o outro.
Surfar não era com ele. Mas gostava de correr e nadar, e vem a se empregar como instrutor numa academia local. Esquecer era o que ele mais queria. Não só do pai suicida como da moça por quem era apaixonado, Viviane, que o abandonara para se casar com o seu irmão, Dante.
Sua única companhia é Beta, a velha cadela paterna, que o acompanha silenciosamente. O bicho pode ser visto como um representante da natureza que o pai enaltecera: desde sempre a cadela “sabe do que precisa”, regida que é por necessidades prementes e impulsos inscritos no sangue. Desde Vidas Secas um cão não tinha tanta proeminência num romance nacional.
Ao acompanhar a de ambulação do personagem pela cidade, o romance deixa ver que as primeiras frases trocadas entre pai e filho (“Que cara é essa?”, “A mesma de sempre”) não eram fortuitas. O homem que quer esquecer e superar as perdas do passado recente padece de uma doença neurológica, provocada pela falta de oxigenação no cérebro antes do nascimento, que o leva justamente a perder o essencial: logo que as pessoas saem da sua frente, ele esquece a fisionomia delas.
Caso raro da enfermidade, o protagonista de Barba Ensopada de Sangue não se lembra até do próprio rosto minutos depois de se ver no espelho ou de contemplar o seu retrato. Cada reencontro com gente da qual é íntimo lhe é penoso: não reconhece na rua uma namorada, ou um amigo, ou um familiar, com os quais conversara pouco antes. Para identificá-los, presta atenção a seus gestos, mãos, postura, roupas e ao lugar onde os encontra. É por meio de associações que os reconhece. Para ele, a identidade de homens e mulheres não tem centro aparente, está estilhaçada em cacos de corpo e vestuário e se prolonga pelos ambientes de Garopaba.
“É ali”, apontou Daniel Galera numa manhã recente. Ele indicava um apartamento de 1º andar num prédio pequeno, fincado em cima de rochas no final da praia da Vigia, no centro histórico de Garopaba. Passara verões na cidade na adolescência e visitara-a depois esporadicamente. Como queria escrever um romance ambientado no lugar, alugara o apartamento por um ano e lá viveu sozinho. A casa serviu de modelo para a do personagem principal de Barba Ensopada de Sangue.
Com 33 anos, Galera tem altura média, talhe de atleta, cabelo e barba castanhos e tatuagem no braço. Estava de camiseta verde-escura, sandália de dedo e calção preto. O cotidiano que viveu em Garopaba começava muitas vezes por tomar café, descer a escada das rochas na frente do apartamento e entrar no mar. Nos dias mais frios, vestia roupa de neoprene para cair na água.
Nadava ao longo de galpões de barcos de pesca e de bancas onde a garoupa, a tainha e o polvo são estripados e vendidos. Dos restaurantes Duna’s, Setenta e Sete, Aconchego e Al Andaluz. Da Tropical Modas e da Padaria Santos. Da Pousada da Praia e da Acqua-Viva. Nadava até o ponto onde rareiam as construções costeiras e desaparece a algaravia de nomes. Então retornava. Ao todo, percorria cerca de 4 quilômetros, a depender do capricho de correntes, ventos, maré e ondas.
Comia algo e saía de bicicleta – que ele chama de bike –, percorria a cidade e ia a praias mais distantes. De volta ao apartamento, lia o que estivesse à mão. Ou fazia anotações para o romance que pretendia escrever (uma delas dizia: “Barba Ensopada de Sangue. Um bom título. Mas para o quê?”). Ou traduzia, o seu ganha-pão. Foi publicado há pouco um livro do americano David Foster Wallace, no qual traduziu alguns ensaios, cujo título largado e indeterminado capta a frouxidão de seu dia a dia em Garopaba: Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo.
Galera me explicou que em Garopaba há na verdade duas cidades no mesmo lugar. Uma existe de março a dezembro. É um vilarejo pacato, de gente remota e de poucas palavras. Até as crianças das escolas públicas, vestindo uniformes azuis e brancos impecáveis, andam pelas ruas em fila dupla sem fazer algazarra.
Segundo Manoel Valentim, autor de História de Garopaba: De Armação Baleeira a Comarca, índios carijós teriam construído aldeias na região. Américo Vespúcio passou por ali em 1502, e foi seguido por outras expedições que dilataram a fé e o império e deixaram desgarrados. No século seguinte vieram padres jesuítas que, dizem lendas locais, enterraram tesouros de objetos sacros. Chegaram depois colonos dos Açores, enviados pela metrópole lusa, que cultivaram roças de mandioca e laranja e começaram a pescar baleias.
O sargento-mor Manoel Marques Guimarães, nascido em Lisboa, é tido como fundador da Armação Garopaba, no final do século XVIII. Morreu em 1824, com a patente de major, e foi enterrado na capela de São Joaquim de Garopaba, que ajudou a erigir. Segundo o registro oficial, tinha “65 anos mais ou menos”.
Ele administrava a pesca e o comércio da baleia, um negócio que envolvia barcos, armazéns, barris e arpões. O óleo da baleia servia para gerar a iluminação e de liga para a argamassa de casas, igrejas e fortes. Com as barbatanas se confeccionavam espartilhos, segundo Manoel Valentim muito usados pelas “grã-finas da época”. Tudo era feito com trabalho escravo. Integrada a um circuito econômico de maior alcance, Garopaba importava africanos vivos e exportava retalhos de baleias mortas.
Valentim é um senhor arredio (procurado por desconhecidos, fala para a mulher dizer que não está) que nasceu e mora em Garopaba. Ele pesquisou documentos dos arquivos de freguesias e descobriu que a maior parte dos escravos era casada e tinha filhos regularmente. Constatou também que viviam bastante e concluiu que os cativos “recebiam tratamento humanitário e condigno”. Mesmo assim, há hoje pouquíssimos negros na cidade.
A segunda Garopaba, na explicação de Daniel Galera, existe do Natal ao Carnaval. A população passa de 18 mil para mais de 100 mil pessoas. São gaúchos, argentinos, uruguaios, paranaenses e até paulistas que vêm curtir as praias e o estio ameno. Os moradores recuam então para os arrabaldes e alugam ou vendem aos veranistas tudo que podem: quartos, casas, motos e carros, biquínis, comida, remédios, bronzeadores, megashows de sertanejo universitário, móveis e imóveis, barracas e apetrechos de praia, inseticida, aparelhos de MP3, pranchas de bodyboard e surf, espetos e carvão, fraldas e álcoois, serviços domésticos, médicos, odontológicos e veterinários, conexão com a internet e antenas de televisão.
As baladas bombam. Igrejas e templos evangélicos ficam cheios. Carros com alto-falantes bombardeiam as ruas com ofertas de mercadorias. Há filas de crianças para tomar sorvetes na Gelomel. A espera é de meia hora para conseguir mesa em pizzarias e churrascarias. Adolescentes pilhados flanam em bandos álacres, de celular à mão e piercing no rosto. Góticos, emos, punks, skatistas, darks, neo-hippies, todas as galeras metropolitanas se fazem representar, ruidosamente.
Comparada aos balneários de São Paulo para cima, Garopaba é mais arrumada. Inexiste a escabrosa sequência de favelas de casinhas encimadas por lajes, caixas-d’água azuis e parabólicas. Não há edifícios altos e condomínios fechados. As praias são razoavelmente preservadas. Há espaço e verde, embora as estradas estreitas congestionem e falte lugar para estacionar.
O turismo e a indústria do divertimento são os motores da economia de Garopaba, um pulmão que se expande nas férias do início do ano e se retrai no resto do tempo. Galera chamou a atenção para o número impressionante de casas em construção e notou que os comércios e restaurantes da praça da Matriz, a mais antiga, estavam fechados. “A cidade mudou uma barbaridade desde que vim aqui pela primeira vez”, disse. “Resta ver como a natureza se acomodará à chegada do dinheiro grosso.”
Entramos num dos empórios à beira-mar, no lugar aonde antes chegavam baleias a serem desmembradas e esquartejadas. A pesca da baleia foi proibida no século passado, continuou a existir ilegalmente durante décadas e parou não por força da lei, e sim porque as francas foram dizimadas – eram 100 mil – e consideradas extintas em 1973. Mas algumas sobreviveram. Quase 600 delas sobem do sul do continente para o Brasil, onde acasalam e amamentam as crias. Elas chegam a 20 metros de comprimento, podem pesar 50 toneladas e viver oitenta anos.
Galera perguntou à atendente no balcão se ainda havia baleias à vista. A moça respondeu que dias antes havia doze na praia de Garopaba, com dois filhotes. Naquele dia, elas estavam num costado a quarenta minutos de navegação. O barco para visitá-las sairia no final da tarde, gostaríamos de fazer uma reserva? A baleia já não serve de combustível para a economia local, mas agora rende num veio turístico-ambientalista.
Barba Ensopada de Sangue se passa na Garopaba nos meses desolados em que os termômetros ficam ao redor de zero grau. Gatos e vira-latas vagabundeiam pelas vias desertas e os três pet shops jazem à míngua. A Bali Outlet fecha, mas a Casa Vitor, que vende toalhas, fica aberta. Os personagens secundários são a dona do apartamento alugado pelo protagonista, o budista que gere uma pousada, a garçonete de um pequeno restaurante, a secretária de uma agência de turismo, os pescadores que sobrevivem do que pegam no dia a dia, os jovens que largaram a escola e vivem ao léu. Eles vivem em trânsito, poucos têm profissão definida. O trabalho é algo que se faz com pouco esforço e sem deleite, ao sabor de acasos – uma chateação.
O protagonista sem nome tem um personagem que lhe serve de duplo e espelho, o seu avô Gaudério. Na conversa final com o pai, este lhe conta como o avô morreu. É uma história embaçada e cheia de hiatos. Gaudério frequentava bailes, agitava churrascos, tocava violão e bebia. Tinha o pavio curto. Às vezes, desembainhava a faca; noutras, “distribuía bofetada e pranchaço a torto e a direito”. Perdeu dois dedos numa briga de tiro.
Viúvo, Gaudério piorou de temperamento. Brigou com o filho e se separaram. Andou pela Argentina e pelo Paraná. Sumiu seis meses e um dia telefonou: estava em Garopaba. O filho subiu na moto e foi visitá-lo. Encontrou um bugre de 45 anos, vivendo de bicos e de sua pequena horta, morando entre galinhas numa chácara arruinada.
Ainda que não fosse uma sumidade, Gaudério era prezado na cidade. Prodígio na apneia, permanecia demorados minutos no fundo do oceano. Numa segunda visita, pai e filho foram à quermesse, a festa que marca a temporada da pesca da tainha. Subiu ao palco um cantor de Uruguaiana que Gaudério conhecia de uma temporada na fronteira e com quem cismara. Ao descer do palco os dois bateram boca, o pai puxou a faca e o cantor foi embora. O filho percebeu, porém, que o pai era malvisto em Garopaba. “Ninguém quer ter por perto um gaúcho grosso que acha bonito mostrar a faca por qualquer besteira”, disse.
Muitos meses depois, o filho atendeu a um telefonema de um delegado de Laguna. Dizia que o seu pai tinha sido assassinado num baile de domingo coalhado de gente. No auge da festa faltou luz. Quando a claridade voltou, um minuto depois, Gaudério estava estirado numa poça de sangue, esfaqueado dezenas de vezes. A cidade inteira o matou.
“Só que eu não acredito nessa história”, disse o filho de Gaudério ao seu filho, o personagem central de Barba Ensopada de Sangue. Ele foi a Garopaba e visitou o túmulo do assassinado, e pensou: “Puta que me mordeu, isto aqui não foi cavado semana retrasada nem a pau.” Não encontrou ninguém que confirmasse a história, era como se ela não tivesse acontecido. Gaudério poderia não ter morrido. Sumira.
O contador da história vai ao quarto e pega uma fotografia velha de borda serrilhada. A imagem em preto e branco mostra um homem barbudo sentado num banquinho coberto por um pelego de ovelha. O jovem que esquecia em instantes a imagem do próprio rosto
levanta-se e vai até o banheiro. Compara o rosto da fotografia com o rosto que vê no espelho e sente um calafrio. Do nariz para cima, o rosto que vê na fotografia é uma cópia mais morena e um pouco mais envelhecida do rosto no espelho. A única diferença digna de nota é a barba do avô, e apesar dela tem a sensação de ver uma foto de si próprio.
O protagonista tem assim o terceiro motivo para viver em Garopaba. Quer esquecer o pai que se suicidara. Quer esquecer a namorada que o abandonara para ficar com o seu irmão. Quer descobrir o que aconteceu de fato com Gaudério, o avô que desaparecera na cidade. Na busca do protagonista do romance se cruzam linhas de sangue e afeto, de morte e repulsa, de lembrança e esquecimento. São linhas que traçam a imagem do seu rosto, que ele logo esquece. Ele deixa crescer a barba e fica a cara do avô.
Ao indagar aqui e ali o destino do avô, os nativos se calam, ressabiados. Ou são imprecisos e lacônicos. O jovem de barba apreende pedaços de uma história inconclusiva: Gaudério era valente, enfrentou dezenas numa briga, respirava debaixo d’água, não morreu, nunca esteve ali. As pessoas reconhecem o protagonista, mas ele não. A maioria parece evitá-lo, numa hostilidade surda. Beta o acompanha por todos os cantos. Um dia ele é esmurrado sem motivo por desconhecidos.
Daniel Galera nasceu por acaso em São Paulo, onde seu pai trabalhou por um curto período. Foi criado em Porto Alegre e voltou a passar alguns anos em São Paulo. Quis ser artista gráfico, estudou publicidade sem saber direito por que e trabalhou como diagramador. Como centenas de gaúchos aspirantes a escritor, cursou a oficina literária de Luiz Antonio de Assis Brasil, o romancista e professor de literatura que é secretário de Cultura do Rio Grande do Sul.
“Assis Brasil nos orientava a escrever contos”, contou Galera num restaurante a quilo de Garopaba. “Toda semana eu tinha que escrever com um narrador diferente, em primeira ou terceira pessoa, e o conto resultante era comentado pelo professor e pelos colegas. Foi bom para pegar mão, ser criticado.”
As oficinas literárias são uma indústria acadêmica nos Estados Unidos. Aqui, o Rio Grande do Sul é o estado onde estão mais enraizadas. A de Assis Brasil é a de maior tradição e respeito. Ela integra um universo literário de produção continuada. No Sul foi fundada a Editora Globo, responsável pela publicação de dezenas de clássicos. A tradição letrada vem de Augusto Meyer, Dyonélio Machado, Mario Quintana e Erico Verissimo, passa por Moacyr Scliar, Caio Fernando Abreu, João Gilberto Noll e chega a Michel Laub. A Feira do Livro de Porto Alegre, cuja última edição atraiu quase 2 milhões de visitantes, completará em breve 60 anos.
Galera é criatura desse ambiente. Foi com amigos da universidade que passou a publicar contos num fanzine digital que marcou época nos anos 90, o Cardoso Online. Criou também com alguns deles a editora independente Livros do Mal, que lançou o seu livro de estreia. Mas está longe de ser um regionalista ou tradicionalista. Ele é um jovem intelectual cosmopolita.
Ou seja, não tem interesse por política. Os livros atuais lhe falam mais à sensibilidade do que os clássicos. Multimídia, tocou numa banda pop e fez um romance em quadrinhos, Cachalote, com o desenhista Rafael Coutinho. Interessa-se pelo cinema da Hollywood de hoje. É louco por games e escreveu um enorme ensaio a respeito deles. Não quer retratar a dita realidade brasileira na sua arte, e sim se expressar. “Se a complexidade nacional aparece ou aparecer nos meus livros, melhor, mas não é esse o objetivo”, disse.
Ele detecta duas influências em Barba Ensopada de Sangue. Talvez a mais presente seja a do realismo de Cormac McCarthy. A ausência de travessões nos diálogos, que intercalam a voz do narrador em terceira pessoa, ecoa procedimentos do escritor americano. McCarthy é o autor de Onde os Fracos Não Têm Vez. Adaptado para o cinema pelos irmãos Coen, o filme ganhou quatro Oscar em 2008.
A outra influência é de David Foster Wallace, mas num detalhe, as notas de rodapé, que o americano usa com profusão e prolixidade. “Ele me libertou para o uso de notas, mas as minhas são muito diferentes das dele”, disse o brasileiro. Em , o narrador entrega as notas de rodapé a personagens diversos, que falam do protagonista, e não ao narrador.
Galera encontrou em Barba Ensopada de Sangue uma combinação intensa de localismo e cosmopolitismo. A dona da livraria de Garopaba lhe disse que queria organizar uma noite de autógrafos para lançar o livro no fim do ano. Antes mesmo de publicado no Brasil pela Companhia das Letras, agora em novembro, o romance foi vendido para grandes editoras da Alemanha, da Inglaterra, dos Estados Unidos e da Itália. A alemã Suhrkamp pagou 18 mil euros para publicá-lo, cifra bem alta para os padrões brasileiros.
“Eu te conheço de onde?”, perguntou um rapaz a Galera, que tomava café. “Daqui mesmo de Garopaba, acho que nos vimos no Al Capone”, respondeu o escritor, citando o nome de um bar. Houve uma conversa semelhante quando Galera se aproximou de uma banca na praia para ver os peixes recém-pescados. Ao saber que o outro era escritor, o pescador lhe deu um conselho: “Faça letras, ajuda no teu trabalho.” Fã de Olavo Bilac e Carlos Drummond de Andrade, ele compõe letras de música e também quer fazer literatura.
Encontrou ainda um atleta com quem treinara quando lá morou. Mesmo durante os meses frios, esportistas profissionais vão à cidade para se exercitar nas praias desertas. Garopaba é uma das mecas do circuito do surfe. Junto com o esporte vem toda a sua subcultura: o culto da natureza, a alimentação saudável, a cerveja e a maconha, o alto astral juvenil, a vida ao ar livre, o visual descolado e um misticismo difuso, de índole orientalista e new age. Revista Trip, em suma.
Tudo isso é o que é em si e é também mercado. Fica em Garopaba a Mormaii, uma das gigantes mundiais do surfwear. Seu criador, Marco Aurélio Raymundo, que se faz chamar de Doutor Morongo, era um surfista recém-formado em medicina quando se estabeleceu na cidade, há mais de quarenta anos. Queria estar perto das ondas o ano todo e trabalhou em postos de saúde. Para enfrentar a água gelada do inverno, começou a fazer as próprias roupas de surfar. Passou a vendê-las e criou a Mormaii.
Hoje a empresa tem representantes em dezenas de países, vende 5 mil itens, de isotônicos a óculos e automóveis, e fatura 400 milhões de reais ao ano. O Doutor Morongo mora numa casa que ocupa quase um morro inteiro à beira do mar. E continua citando Carlos Castaneda e meditando numa geodésica privada.
Barba Ensopada de Sangue reverbera a vaga new age que se propaga pela cidade no verão. E a combina com lendas ancestrais de Garopaba. Enquanto procura rastros do avô, o protagonista resvala num misticismo ou outro. Por fim, ele mesmo faz uma espécie de viagem iniciática de mais de dez dias, nos quais passa fome e perde a noção de tempo e espaço até que chega a uma caverna sinistra. Numa cena gótica, com relâmpagos, trovoadas e tudo, encontra um homem que o ataca com uma faca – será o seu avô Gaudério?
O protagonista cai num abismo e perde a cadela Beta. Insone, delirante e doente, precisará resgatá-la das mãos de um nativo estúpido. É a sua vez e a sua hora. Pela primeira e única ocasião no romance, um dos que acompanha a briga diz: “Ele é neto do Gaudério.” O dono da cadela virou, também ele, um mito. O sangue ancestral lhe encharca a barba.
O romance termina com outro longo diálogo, dessa vez entre o protagonista e Viviane, a namorada que o abandonara para ficar com o irmão. (A relação ficcional entre os três tem vaga origem na realidade: uma namorada do escritor veio a namorar o ator que interpretou um personagem semelhante a Galera, num filme baseado em um dos seus livros.)
Viviane está grávida de Dante, o irmão, e pede que o homem de barba o perdoe. Ele não o faz. Mas a palavra final fica com Viviane. Ou talvez fique com o filho dela: é ele, o bisneto de Gaudério, o neto do suicida, o sobrinho daquele que briga por Beta, quem escreve a introdução ao livro. O sangue está sempre circulando, participando da criação de possíveis mitos.
Assim como Cidade de Deus e Pornopopéia, o romance de Galera exclui do entrecho as classes dominantes – elas não fazem parte da literatura brasileira contemporânea de maior alcance. São incapazes de gerar personagens, e muito menos mitos. É uma limitação. Mas talvez isso ocorra porque as figuras hoje mais marcantes da nacionalidade sejam os policiais, traficantes e favelados cariocas do romance de Paulo Lins. Ou os boêmios degradados e drogados da São Paulo de Reinaldo Moraes. Um mito possível do sangue está no homem sem nome que não reconhece a si mesmo na Garopaba de Galera.