Nossa cultura, impregnada de psicologia pop, pergunta obsessivamente: Você é feliz? Mas é como se existisse um único enredo bom, um só script satisfatório IMAGEM: RICHARD RUSSELL
A mãe de todas as perguntas
Filhos e clichês da identidade feminina
Rebecca Solnit | Edição 131, Agosto 2017
Há alguns anos, dei uma palestra sobre Virginia Woolf. No momento das perguntas, o assunto que pareceu despertar mais interesse entre o público era se Woolf não deveria ter tido filhos. Atenciosa, respondi que ela, ao que consta, pensou em ter filhos no começo do casamento, depois de ver a alegria da irmã, Vanessa Bell, com os seus. Mas, com o tempo, ela passou a considerar a maternidade uma ideia imprudente, talvez devido a sua instabilidade psíquica. Ou talvez, sugeri, Woolf quisesse ser escritora e dedicar sua vida à arte, o que fez com extraordinário sucesso. Durante a apresentação, eu havia citado de maneira positiva passagens sobre a necessidade de matar “o Anjo do Lar”, a voz interior que instrui muitas mulheres a se sacrificar como servas da vida doméstica e do ego masculino. Fiquei surpresa que o conselho de asfixiar o espírito da feminilidade convencional suscitasse essa conversa.
O que eu devia ter dito àquela plateia era que especular sobre o status reprodutor de Woolf constituía um desvio absurdo e enfadonho das magníficas questões presentes em sua obra. (Creio que a certa altura falei “Foda-se essa merda”, passando o sentido geral da coisa e encerrando o assunto.) Afinal, filhos muita gente faz, mas Ao Farol e As Ondas só uma pessoa fez, e era por causa disso que estávamos debatendo Woolf.
Perguntas daquele tipo me eram bem familiares. Dez anos antes, durante uma conversa que deveria girar em torno de um livro meu sobre política, um entrevistador britânico insistiu que, em vez de falar sobre os frutos da minha mente, deveríamos falar sobre os frutos do meu ventre – ou a falta deles. Ele me perguntava obstinadamente por que eu não tinha filhos. E não se dava por satisfeito com nada que eu dissesse. Parecia defender que eu deveria ter filhos, que era incompreensível que eu não tivesse, e assim tínhamos que ficar falando sobre os filhos que eu não fiz, em vez de falar sobre os livros que eu havia feito.
Quando saí dali, minha assessora de imprensa escocesa – uma moça miúda, de 20 e poucos anos, com sapatilhas cor-de-rosa e um belo anel de noivado – estava espumando de raiva. E esbravejou: “Ele nunca perguntaria isso a um homem.” Tinha razão. (Hoje em dia, uso esse argumento para rebater alguns entrevistadores: “Você perguntaria isso a um homem?”) Perguntas como essa parecem nascer da ideia de que não existem mulheres – esses 49% da espécie humana com necessidades tão variadas e desejos tão misteriosos quanto os outros 51% –, mas apenas a mulher, aquela que deve casar, ter filhos, permitir que os homens entrem e os bebês saiam, como um elevador da humanidade. Essas questões, na essência, não são perguntas e sim declarações que afirmam que nós, com a veleidade de nos imaginarmos como indivíduos, definindo nosso próprio curso, estamos erradas. O cérebro é um fenômeno individual que gera as mais variadas criações; o útero gera apenas um tipo de criação.
Quanto a mim, não tenho filhos por diversas razões: lido muito bem com os anticoncepcionais; a despeito de gostar de crianças e adorar ser tia, também aprecio a solidão; fui criada por gente bruta e infeliz e não quis reproduzir essa forma de criação nem criar seres humanos que pudessem sentir por mim aquilo que às vezes eu sentia por meus pais; o planeta não tem condições de sustentar mais gente do Primeiro Mundo, e o futuro é muito incerto; e eu realmente queria escrever livros, vocação que, tal como a exerço, exige muito. Não sou dogmática contra ter filhos. Poderia ter tido em outras circunstâncias e estaria bem – como estou agora.
Há pessoas que, embora queiram ter filhos, não os têm por várias razões – pessoais, médicas, emocionais, financeiras, profissionais; outras não querem, e ninguém tem nada a ver com isso. Só porque é uma pergunta passível de resposta não significa que a pessoa tenha obrigação de respondêla ou que ela deva ser feita. A pergunta que o entrevistador me fez foi indecente, pois pressupunha que as mulheres deveriam ter filhos e que as atividades reprodutoras de uma mulher eram um assunto naturalmente público. Sobretudo, a pergunta pressupunha que, para as mulheres, só existia uma maneira certa de viver.
Mas mesmo dizer que só existe uma maneira certa de viver pode ser uma formulação demasiado otimista, visto que as mães também são sistematicamente consideradas relapsas. A mãe pode ser tratada como criminosa se deixar o filho sozinho por cinco minutos, mesmo que o pai da criança a tenha deixado sozinha por vários anos. Algumas mulheres me disseram que, depois de terem tido filhos, passaram a ser tratadas como seres apáticos desprovidos de inteligência, que não merecem consideração. Muitas tiveram de ouvir que não podem ser levadas a sério como profissionais porque em algum momento vão engravidar. E muitas mães que de fato se saem bem no exercício da profissão são suspeitas de estar negligenciando alguém. Não existe uma resposta satisfatória para a pergunta “Como é ser mulher”; o truque talvez esteja em saber repelir o questionamento.
Falamos sobre questões abertas, mas também há as fechadas, aquelas para as quais só há uma resposta certa, pelo menos no que concerne a quem pergunta. São indagações que nos forçam a concordar com elas ou que nos ferem quando delas divergimos; que trazem suas próprias respostas e cujo objetivo é coagir e punir. Uma das minhas metas na vida é me tornar bem rabínica, conseguir responder perguntas fechadas com perguntas abertas, ter autoridade interna para frear a aproximação de intrusos e pelo menos me lembrar de questionar: “Por que você está perguntando isso?” Descobri que essa é sempre uma boa resposta para uma questão antipática, e as perguntas fechadas costumam ser antipáticas. Mas, no dia do meu interrogatório sobre filhos, fui tomada de surpresa (e estava com um sério jet lag) e só fiquei pensando: Por que é tão previsível que façam essas perguntas tão infames?
Talvez parte do problema seja termos aprendido a questionar as coisas erradas sobre nós mesmos. Nossa cultura está impregnada de uma espécie de psicologia pop que pergunta obsessivamente: Você é feliz? E perguntamos isso num reflexo tão condicionado que parece a coisa mais natural do mundo querer que um farmacêutico numa máquina do tempo vá entregar um lote de tranquilizantes e antipsicóticos em Bloomsbury, o bastante para a vida toda, pois assim seria possível reorientar uma incomparável estilista literária feminista para a produção de uma ninhada de bebês Woolf.
As perguntas sobre a felicidade geralmente pressupõem que sabemos como deve ser uma vida feliz. Muitas vezes se descreve a felicidade como o resultado de uma longa fieira de coisas – casamento, prole, bens próprios, experiências eróticas –, embora baste um milionésimo de segundo para nos lembrarmos de um monte de gente que tem tudo isso e mesmo assim é infeliz.
Recebemos fórmulas padronizadas a torto e a direito, mas essas fórmulas costumam falhar. Apesar disso, elas não param de chegar. E chegam, e chegam. Convertem-se em prisões e castigos; a prisão imaginária acorrenta muita gente na prisão de uma vida que segue as receitas à risca, e mesmo assim é tremendamente infeliz.
Talvez o problema seja literário: recebemos um roteiro único sobre o que é ter uma boa vida, ainda que não sejam poucos aqueles que sigam o script fielmente e mesmo assim têm uma vida ruim. Falamos como se existisse um único enredo bom e um único final feliz, embora as inúmeras formas que uma vida pode assumir floresçam – e murchem – ao nosso redor.
Mesmo os que vivem a melhor versão do roteiro familiar nem sempre têm a felicidade como recompensa. Não é algo necessariamente ruim. Conheço uma mulher que viveu um casamento de muito amor por setenta anos. Sua vida é cheia de sentido, e ela vive de acordo com seus princípios; é amada e respeitada pelos seus descendentes. Mas eu não diria que ela é feliz; sua compaixão pelos vulneráveis e a preocupação com o futuro lhe dão uma visão sombria do mundo. Para descrever o que ela experimenta, em vez de felicidade, precisamos de uma linguagem melhor. Existem critérios totalmente diferentes para uma boa vida, que podem ser mais importantes para alguns – amar e ser amado, ter satisfação, honra, sentido, profundidade, engajamento, esperança.
Parte de meu empenho como escritora tem sido encontrar formas de valorizar o que é impalpável e subestimado, em descrever sombras e matizes de significado, em celebrar a vida pública e a vida solitária, em encontrar – na expressão de John Berger – “outra maneira de contar”, o que também explica por que é tão desalentador esse repisar constante das mesmas velhas maneiras de contar.
A conservadora “defesa do casamento”, que na verdade não passa de uma defesa do velho esquema hierárquico que era o casamento convencional antes que as feministas começassem a transformá-lo, infelizmente não é monopólio dos conservadores. Muita gente em nossa sociedade se aferra à piedosa crença de que, para os filhos, a família heteronormativa apresenta uma aura mágica maravilhosa, o que leva muitos casais a se manter em casamentos infelizes, destrutivos para todos os que estão por perto. Conheço gente que hesitou por muito tempo antes de sair de um casamento pavoroso, porque a velha fórmula insiste que uma situação que é terrível para um ou para os dois genitores será, de alguma maneira, benéfica para os filhos. Mesmo mulheres com maridos violentamente abusivos são, com frequência, pressionadas a continuar em situações tidas como tão maravilhosas que tais detalhes nem vêm ao caso. A forma prevalece sobre o conteúdo. No entanto, tenho visto a alegria do divórcio e as inúmeras formas que podem ser assumidas por famílias felizes, cada vez mais variadas, desde um genitor só e um filho só até incontáveis configurações de múltiplos lares e famílias ampliadas.
Depois que escrevi um livro sobre mim e minha mãe, que se casou com um profissional liberal muito bruto, teve quatro filhos e vivia nervosa de raiva e infelicidade, uma entrevistadora me emboscou ao perguntar se era por causa do meu pai violento que eu não conseguira encontrar um companheiro. A pergunta vinha carregada de pressupostos espantosos sobre o que eu queria fazer com minha vida e o direito da entrevistadora de nela se intrometer. O livro The Faraway Nearby [O Próximo Distante] discorria de maneira serena e indireta, eu pensava, sobre minha longa jornada rumo a uma vida de fato agradável, e era uma tentativa de dar conta da fúria da minha mãe, inclusive falando de sua origem estar no fato de ela ter ficado presa a expectativas e papéis femininos convencionais.
Tenho feito da minha vida o que decidi fazer, e não era isso que minha mãe ou a entrevistadora imaginavam. Decidi escrever livros, estar cercada por gente inteligente e generosa e ter grandes aventuras. Algumas dessas aventuras incluem homens – casos passageiros, grandes paixões e relações duradouras – e incluem também desertos distantes, mares árticos, cumes de montanhas, levantes e desastres, exploração de ideias, arquivos, registros e vidas.
As receitas da sociedade para a realização pessoal parecem gerar grande infelicidade, tanto nas pessoas que são estigmatizadas porque não podem ou não querem adotálas como naquelas que as adotam, mas não encontram a felicidade. Claro que existem pessoas com vidas bem convencionais que são muito felizes. Conheço algumas, assim como conheço muitos monges, padres e freiras no celibato e sem filhos, gays divorciados e todo o leque de entremeio. No verão passado, minha amiga Emma entrou na igreja acompanhada do pai, e o marido dele foi logo atrás acompanhando a mãe de Emma; os quatro, mais o novo marido dela, formam uma família excepcionalmente amorosa e unida, que luta pela justiça em suas atividades políticas. Neste verão, nos dois casamentos a que fui havia dois noivos e nenhuma noiva; no primeiro deles, um dos noivos chorou porque passara a maior parte da vida privado do direito de casar e nunca pensou que veria seu próprio casamento.
Apesar disso, as mesmas e velhas perguntas continuam rondando – ainda que pareçam mais uma espécie de sistema coercitivo do que questões de fato. Na visão de mundo tradicional, a felicidade é algo essencialmente parti cular e egoísta. As pessoas sensatas buscam seu interesse particular e, quando se saem bem, supõe-se que sejam felizes. A própria definição do que significa ser humano é estreita, e o altruísmo, o idealismo e a vida pública (exceto como fama, prestígio ou sucesso material) não têm muito lugar na lista de desejos. Raramente surge a ideia de buscar significado na vida; as atividades corriqueiras não só são tidas como intrinsecamente significativas, mas são tratadas como as únicas opções dotadas de significado.
Uma das razões pelas quais as pessoas se prendem à maternidade como elemento essencial da identidade feminina é a crença de que são os filhos que permitem consumar a capacidade de amar. Mas há tantas coisas a amar além da prole, tantas coisas que precisam de amor, tantas outras tarefas no mundo que cabem ao amor…
São muitas as pessoas que questionam as escolhas dos que não têm filhos, tidos como egoístas por recusar os sacrifícios que acompanham o papel de genitor; elas se esquecem de que, para quem ama intensamente os filhos, talvez sobre menos amor pelo resto do mundo. Christina Lupton, escritora que também é mãe, apresentou recentemente algumas coisas que teve de abandonar quando estava tomada pelas exigentes tarefas da maternidade, entre elas:
Todas as maneiras de cuidar do mundo que não são tão facilmente validadas quanto cuidar dos filhos, mas que são, da mesma forma, fundamentalmente necessárias para que os filhos cresçam bem. Refiro-me aqui à escrita, à criação, à política e ao ativismo; à leitura, ao discurso público, aos protestos, ao ensino, à realização de filmes… As coisas que mais valorizo e das quais acredito que virá qualquer melhoria na condição humana são, em sua maioria, brutalmente incompatíveis com o trabalho concreto e imaginativo de cuidar dos filhos.
Uma das coisas fascinantes na súbita aparição de Edward Snowden, alguns anos atrás, foi a incapacidade de muita gente em entender como um rapaz podia abrir mão da receita da felicidade – salário alto, emprego estável, casa no Havaí – para se tornar o foragido mais procurado do planeta. Ao que parece, a premissa dessas pessoas é que, como todos são egoístas, Snowden só poderia estar fazendo aquilo por ser interesseiro e querer atenção ou dinheiro.
Na primeira onda de comentários, Jeffrey Toobin, o especialista jurídico daNew Yorker, escreveu que Snowden era “um narcisista enfatuado que merece ir para a cadeia”. Outro especialista anunciou: “Eu acho que o que temos em Edward Snowden é apenas um jovem narcisista que pensa que é mais inteligente do que todos nós.” Outros imaginaram que ele estava revelando os segredos do governo americano a soldo de um país inimigo.
Snowden parecia um sujeito de outro século. Em seus contatos iniciais com o jornalista Glenn Greenwald, ele se nomeava Cincinnatus – o estadista romano que agia em prol da sociedade, sem procurar se promover. Era sinal de que Snowden formara seus ideais e modelos longe das fórmulas padronizadas de felicidade. Outras épocas e outras culturas costumavam fazerperguntasdiferentes das que fazemos agora: O que de mais significativo você pode fazer com sua vida? Qual é sua contribuição para o mundo ou para sua comunidade? Você vive de acordo com os seus princípios? Qual será seu legado? O que significa sua vida? Talvez nossa obsessão com a felicidade seja uma maneira de não responder a essas outras perguntas, uma maneira de ignorar a amplitude que as nossas vidas podem ter, o resultado que o nosso trabalho pode trazer, a abrangência que o nosso amor pode alcançar.
Há um paradoxo no cerne da questão da felicidade. Há alguns anos, Todd Kashdan, professor de psicologia na Universidade George Mason, divulgou estudos concluindo que as pessoas que julgam importante ser feliz são as que têm maior probabilidade de se deprimir: “Organizar a vida tentando ser mais feliz, fazer da felicidade o objetivo primeiro da vida atrapalha a pessoa ser de fato feliz.”
Finalmente tive meu momento rabínico na Inglaterra. Depois de superar o jet lag, fui entrevistada ao vivo por uma mulher com uma entonação compassiva e elegante. “Então”, ela disse, num trinado, “você foi ferida pela humanidade e se refugiou nas paisagens da natureza.” A conotação era óbvia: eu, um excepcional e deplorável exemplar, estava ali em exposição, uma estranha no ninho. Virei para o público e perguntei: “Algum de vocês já foi ferido pela humanidade?” Riram comigo; naquele momento, percebemos que todos tínhamos nossas esquisitices, estávamos todos no mesmo barco, e que é para isso mesmo – para cuidar das nossas feridas, ao mesmo tempo aprendendo a não ferir os outros – que estamos aqui. E também pelo amor, que vem sob inúmeras formas e pode ser dirigido a inúmeras coisas. Há muitas perguntas na vida que valem a pena fazer, mas talvez, se formos sábios, nós possamos entender que nem toda pergunta precisa de resposta.
–
Trecho do livro A Mãe de Todas as Perguntas, a ser lançado este mês pela Companhia das Letras.
Leia Mais