Diante da Vista de Delft , Bergotte disse: "Seria preciso passar várias camadas de cor, tornar minha frase preciosa em si mesma, como esse pequeno pedaço de parede amarela." ILUSTRAÇÃO: VISTA DE DELFT , JOHANNES VERMEER, 1660_MAURITSHUIS, THE ROYAL PICTURE GALLERY
A morte de Bergotte
A ideia de que não morreu para sempre não é inverossímil. Os seus livros, dispostos de três em três, velavam como anjos com as asas abertas e pareciam, para aquele que não existia mais, o símbolo da sua ressurreição
Marcel Proust | Edição 65, Fevereiro 2012
Fiquei sabendo que naquele dia ocorrera uma morte que me causou bastante pesar, a de Bergotte. Sabia-se que a sua doença vinha de muito tempo. Não evidentemente aquela que tivera primeiro e era natural. A natureza parece quase incapaz de provocar doenças que não sejam bem curtas. Mas a medicina se atribuiu a arte de prolongá-las. Os remédios, a remissão que proporcionam, o mal-estar que a sua interrupção faz renascer compõem um simulacro de doença que o hábito do paciente acaba por estabilizar, por estilizar, assim como as crianças têm acessos de tosse regulares muito tempo depois de serem curadas da coqueluche. Depois os remédios fazem menos efeito, sua dose é aumentada, não fazem mais nenhum bem, mas começaram a fazer mal graças a essa indisposição constante. A natureza não lhes teria oferecido uma duração tão longa. É uma grande maravilha que a medicina quase iguale a natureza e possa forçar a ficar de cama, a continuar a tomar um medicamento mesmo sob o risco de morte. Desde então a doença artificialmente implantada fincou raiz, tornou-se uma doença secundária mas verdadeira, com a única diferença que as doenças naturais se curam, mas jamais as criadas pela medicina, pois ela ignora o segredo da cura.
Fazia anos que Bergotte não saía mais de casa. Aliás, jamais gostara da sociedade, ou gostara apenas um dia, para desprezá-la como tudo o mais e da maneira que era a sua, a saber: não desprezar porque não se pode obter, mas logo depois de haver obtido. Vivia com tal simplicidade que não se suspeitava a que ponto era rico, e caso isso fosse sabido se cometeria outro engano ao acreditar que era avaro, pois nunca ninguém foi tão generoso. Ele o era sobretudo com mulheres, com mocinhas, melhor dizendo, que ficavam envergonhadas de receber tanto por tão pouco. Ele se desculpava a seus próprios olhos porque sabia que nunca poderia produzir tão bem quanto na atmosfera de se sentir enamorado. O amor – não, é exagero – o prazer um pouco entranhado na carne ajuda o trabalho literário porque aniquila os outros prazeres, por exemplo os prazeres da sociedade, que são os mesmos para todo mundo. E mesmo se esse amor traz desilusões, ao menos assim ele agita a superfície da alma, que sem isso correria o risco de estagnar. O desejo então não é inútil ao escritor, para primeiro se afastar dos outros homens e se conformar a eles, e em seguida para devolver algum movimento a uma máquina espiritual que, passada certa idade, tende a se imobilizar. Não se chega a ser feliz, mas se percebe as razões que o impedem de ser e que nos continuariam invisíveis sem essas aberturas bruscas das brechas da decepção. E é claro que os sonhos não são realizáveis, bem sabemos; não os teríamos talvez sem o desejo, e é útil tê-los para vê-los fracassar e para que o seu fracasso nos seja instrutivo. Bergotte também se dizia: “Gasto mais que multimilionários com mocinhas, mas os prazeres ou as decepções que elas me dão me fazem escrever um livro que me rende dinheiro.” Em termos econômicos esse raciocínio era absurdo, mas sem dúvida ele encontrava algum contentamento em transmutar assim ouro em carícias e carícias em ouro. E depois, vimos no momento da morte da minha avó, sua velhice fatigada amava o repouso. Ora, na sociedade não há nada exceto conversas. Elas ali são estúpidas, mas têm o poder de suprimir as mulheres, que não são mais que perguntas e respostas. Fora da sociedade, as mulheres voltam a ser o que é tão repousante para o velho fatigado, um objeto de contemplação.
Em todo caso, agora não se tratava de mais nada disso. Disse que Bergotte não saía mais de casa, e quando se levantava uma hora no seu quarto era todo enrolado em xales, mantas, tudo aquilo que se usa para se cobrir no momento de se expor a um frio intenso e pegar um trem. Ele se desculpava com os raros amigos que deixava entrar e, mostrando seus tartans, suas cobertas, dizia alegremente: “O que você quer, meu caro, Anaxágoras já disse, a vida é uma viagem.”[1] Ele ia assim se esfriando progressivamente, pequeno planeta que oferecia uma imagem antecipada dos últimos dias do grande quando, pouco a pouco, o calor se retirará da Terra, e depois a vida. A ressurreição terá chegado então ao fim, pois por mais que brilhem as obras dos homens nas gerações futuras, será preciso que ainda haja homens. Se certas espécies animais resistem por mais tempo ao frio invasor, quando não houver mais homens, e supondo que a glória de Bergotte tenha durado até lá, bruscamente ela se apagará para todo o sempre. Não serão os últimos animais que o lerão, pois é pouco provável que, como os apóstolos em Pentecostes, eles possam compreender a linguagem dos diversos povos humanos sem a ter aprendido.
Nos meses que precederam sua morte, Bergotte sofria de insônias, e o que é pior, logo ao adormecer de pesadelos que, se acordava, faziam com que evitasse dormir de novo. Por um longo tempo gostou de sonhos, mesmo de sonhos ruins, porque graças a eles, graças à contradição com a realidade que se tem no estado de vigília, eles nos dão, o mais tardar assim que se acorda, a sensação profunda de que dormimos. Mas os pesadelos de Bergotte não eram assim. Quando antes falava de pesadelos, referia-se a coisas desagradáveis que se passavam no seu cérebro. Agora, é como vindos de fora que percebia uma mão munida de um esfregão molhado que, passada no seu rosto por uma mulher má, se esforçava em acordá-lo, cócegas insuportáveis nas ancas, a fúria – pois Bergotte havia murmurado dormindo que ele conduzia mal – de um cocheiro louco de raiva que se jogava sobre o escritor e lhe mordia os dedos, os serrava. Enfim, assim que no seu sono a obscuridade era suficiente, a natureza fazia uma espécie de ensaio sem figurinos do ataque de apoplexia que o levaria: Bergotte entrava de viatura sob o pórtico do novo palacete dos Swann, queria descer. Uma vertigem fulminante o pregava a seu banco, o porteiro tentava ajudá-lo a descer, ele permanecia sentado sem poder se levantar, firmar as pernas. Tentava se agarrar ao pilar de pedra que estava à sua frente, mas não achava nele apoio suficiente para se pôr de pé. Consultou médicos que, lisonjeados por serem chamados por ele, viram nas suas virtudes de grande trabalhador (há vinte anos já não fazia nada), no seu cansaço excessivo, a causa de seu mal-estar. Eles o aconselharam a não ler contos aterrorizantes (ele não lia nada), a aproveitar mais o sol “indispensável à vida” (ele devia alguns anos de melhora relativa tão somente a seu enclausuramento em casa), a se alimentar mais (o que o fez emagrecer e alimentou sobretudo seus pesadelos).Um dos seus médicos, tendo o dom da contradição e da implicância, quando Bergotte o via na ausência dos outros, e para não constrangê-lo lhe submetia como ideias próprias as que os outros lhe haviam aconselhado, o médico do contra, achando que Bergotte tentava que receitasse algo que lhe agradasse, o proibia de imediato, e frequentemente com razões fabricadas com tal rapidez para as necessidades da causa que, diante das objeções materiais que lhe fazia Bergotte, o doutor do contra era obrigado a se contradizer na mesma frase, mas com razões novas reforçava a mesma proibição. Bergotte voltava a um dos primeiros médicos, homem metido a espirituoso, sobretudo diante de um dos mestres da pena, e se Bergotte insinuava “Parece-me, no entanto, que o doutor X me disse – noutro tempo, bem entendido – que isso poderia me congestionar o rim e o cérebro…”, sorria maliciosamente, levantava o dedo e proferia: “Eu disse usar, e não abusar. Todo remédio, é claro, se exageramos, torna-se uma arma de dois gumes.” Há no nosso corpo certo instinto daquilo que nos é salutar, como no nosso coração daquilo que é um dever moral, e que nenhuma autorização de um doutor em medicina ou teologia pode substituir. Sabemos que os banhos frios nos fazem mal, gostamos deles, sempre encontraremos um médico para aconselhá-los, e não para impedir que nos façam mal. De cada um dos seus médicos Bergotte obteve o que, por discernimento, ele se proibira durante anos. Ao fim de algumas semanas os acidentes de outrora haviam reaparecido, e os recentes tinham se agravado. Atormentado por um sofrimento de todos os minutos, ao qual se somava a insônia entrecortada por breves pesadelos, Bergotte não fez mais vir nenhum médico e tentou com sucesso, mas com excesso, diferentes narcóticos, lendo com confiança a bula que acompanha cada um deles, bula que proclamava a necessidade do sono mas insinuava que todos os produtos que o provocam (salvo o contido no frasco que ela envolvia, o qual nunca causava intoxicação) eram tóxicos, e por isso tornavam o remédio pior que o mal. Bergotte tentou todos. Alguns são de uma família diferente daqueles aos quais estamos habituados, derivados por exemplo da amila e do etilo. Não se absorve o produto novo, de composição totalmente distinta, senão com a deliciosa expectativa do desconhecido. O coração bate como num primeiro encontro. A que gêneros ignorados de sono, de sonhos, o recém-chegado vai nos conduzir? Ele está agora dentro de nós, tem a direção do nosso pensamento. De que maneira nos fará adormecer? E o tendo feito, por quais caminhos estranhos, sobre quais picos, a quais precipícios inexplorados o mestre todo-poderoso nos conduzirá? Que novo agrupamento de sensações conheceremos nessa viagem? Vai nos levar ao mal-estar? À beatitude? À morte? A de Bergotte sobreveio na véspera daquele dia, quando se entregara em confiança a um desses amigos (amigo, inimigo?) poderoso demais.
Morreu nas seguintes circunstâncias: uma crise leve de uremia foi motivo para que lhe prescrevessem repouso. Mas, tendo um crítico escrito que na Vista de Delft, de Ver Meer (emprestado pelo Museu de Haia para uma exposição holandesa), quadro que ele adorava e acreditava conhecer bastante bem, um pequeno pedaço de parede amarela (do qual não se lembrava) era tão bem pintado que, visto sozinho, era como uma preciosa obra de arte chinesa, de uma beleza que se bastava em si mesma, Bergotte comeu umas batatas, saiu e entrou na exposição. Logo nos primeiros degraus que teve de subir foi tomado por tonturas. Passou diante de vários quadros e teve a impressão de secura e inutilidade de uma arte tão artificial, e que não valia as correntes de ar e o sol de um palazzo de Veneza, ou de uma simples casa à beira-mar. Chegou enfim diante do Ver Meer que ele recordava mais intenso, mais diferente de tudo o que conhecia, mas onde, graças ao artigo do crítico, reparou pela primeira vez os pequenos personagens de azul, que a areia era rosa, e por fim a preciosa matéria do pequenino pedaço de parede amarela. Suas tonturas aumentaram; fixou o olhar, como uma criança na borboleta amarela que quer pegar, no precioso pedaço de parede. “É assim que eu deveria ter escrito, dizia ele. Meus últimos livros são secos demais, seria preciso passar várias camadas de cor, tornar minha frase preciosa em si mesma, como esse pequeno pedaço de parede amarela.” Enquanto isso a gravidade das suas tonturas não lhe escapava. Numa balança celeste lhe aparecia, pesando num dos pratos, a sua própria vida, enquanto o outro continha o pequeno pedaço de parede tão bem pintado de amarelo. Sentia que imprudentemente havia dado a primeira pelo segundo. “Mas eu não gostaria, disse a si mesmo, de ser para os jornais vespertinos a nota pitoresca dessa exposição.” Ele se repetia: “Pequeno pedaço de parede amarela com um alpendre, pequeno pedaço de parede amarela.” Nisso deixou-se cair sobre um canapé circular; também bruscamente parou de pensar que a sua vida estava em jogo e, voltando ao otimismo, se disse: “É uma simples indigestão que me deram umas batatas malcozidas, não é nada.” Um novo golpe o abateu, ele rolou do canapé para o chão, aonde acorreram todos os visitantes e vigias. Estava morto. Morto para sempre? Quem o pode dizer? Claro que as experiências espíritas não fornecem mais provas do que os dogmas religiosos de que a alma subsiste. O que se pode dizer é que tudo se passa na nossa vida como se nela entrássemos com o fardo de obrigações contraídas numa vida anterior; não há nenhuma razão nas nossas condições de vida sobre esta terra para que nos acreditemos obrigados a fazer o bem, a ser delicados, mesmo a ser polidos, nem para que o artista ateu se acredite obrigado a recomeçar vinte vezes um trecho cuja admiração que suscitará importará pouco a seu corpo comido pelos vermes, como o pedaço de parede amarela que pintou com tanta ciência e refinamento um artista para sempre desconhecido, mal e mal identificado pelo nome de Ver Meer. Todas essas obrigações que não têm a sua confirmação na vida presente parecem pertencer a um mundo diferente, fundado na bondade, no escrúpulo, no sacrifício, um mundo inteiramente diferente desse aqui, e do qual saímos para nascer nessa terra, antes talvez de a ele retornar e reviver sob o império dessas leis desconhecidas, às quais obedecemos porque portamos o ensinamento delas em nós, sem saber quem aí as traçou, essas leis das quais todo trabalho profundo da inteligência nos aproxima e que são invisíveis somente – e se tanto! – aos tolos. De modo que a ideia de que Bergotte não estava morto para sempre não é inverossímil.
Enterraram-no, mas no velório todo, nas estantes iluminadas, os seus livros, dispostos de três em três, velavam como anjos com as asas abertas e pareciam, para aquele que não existia mais, o símbolo da sua ressurreição.
[1]A edição Pléiade diz que a formulação não é de Anaxágoras, filósofo grego do século V a.C., e sim de Sêneca, pensador romano do tempo de Cristo.
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