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A natureza da violência
Como o desejo de viver se transforma em disposição para matar?
Jeffrey A. Lockwood | Edição 68, Maio 2012
Sou atacado por animais há mais de trinta anos. Quando trabalhava em uma clínica veterinária durante a adolescência, aprendi como manter um cachorro bravo a distância empunhando um rodo e dominei a arte de recolher gatos feridos. Mais tarde, nos laboratórios de pesquisa da faculdade, volta e meia eu dava com uma ratazana assustada disposta a usar os dentes para se defender. Os camundongos eram menos ameaçadores, apesar de mais rápidos para arrancar o sangue se tratados sem o devido cuidado.
Porém, eu não estava preparado para a ferocidade dos grilacridídeos – insetos que parecem um cruzamento de grilo com gafanhoto. Minha pesquisa como professor da Universidade de Wyoming foi centrada nos gafanhotos, e tive a oportunidade de tirar uma licença sabática na Austrália, onde trabalhei com parentes desses insetos. Enquanto gafanhotos podem ser briguentos, chutando e lutando com valentia quando manipulados, grilacridídeos são ferozes. Levantam as asas para parecer maiores e atiram o abdômen contra o chão como um tambor de guerra, lançando-se contra qualquer intruso. As mandíbulas abertas e em forma de foice não deixam dúvida sobre a intenção de causar o maior dano possível, e as espécies maiores podem deixar um corte profundo na mão de um ser humano.
Os grilacridídeos atacam para sobreviver. O menor desses insetos não é maior que um toco de lápis, enquanto as espécies maiores são mais carnudas que o polegar de um homem. Essas criaturas não têm as defesas comuns aos insetos – não têm mau cheiro nem toxinas ou ferrão. Dada sua morfologia avantajada e a falta de proteção química, os grilacridídeos atraem muitos predadores. A principal defesa dos insetos é uma série de características que evoluíram para ajudá-los a evitar tal destino, fazendo-os passar despercebidos. Sua cor geralmente assume matizes de tons terrosos e opacos. Uma fila de espécimes pregados em uma gaveta de museu pode combinar bem com uma coleção de sapatos masculinos clássicos. Os ninhos, sejam tocas subterrâneas ou camas feitas com folhas secas, são invisíveis à luz do dia. E por fim, os grilacridídeos são estritamente noturnos, evitando os pássaros que se orientam visualmente, principais predadores de muitos insetos. Há, entretanto, vários caçadores noturnos que procuram um lanchinho no meio da noite. Então, quando o disfarce não funciona e um grilacridídeo percebe que está frente a frente com a morte, ele faz uma exibição maníaca de ferocidade, cerrando a mandíbula, dando golpes com o abdômen e batendo as asas. Essas criaturas selvagens me deram ampla oportunidade de refletir sobre a natureza da violência.
Começar uma nova linha de estudo em um novo lugar me fez lembrar dos primeiros dias de pós-graduação, há dezoito anos. As aulas de comportamento dos insetos de meu curso de pós-graduação na Louisiana State University eram dadas, com paixão e intensidade, pelo doutor Jeff LaFage.
Ele era um professor exigente e bondoso, um verdadeiro erudito e homem da Renascença – estudava a evolução da sociabilização dos cupins, colecionava cristais Tiffany e apresentava um programa de música barroca em uma rádio pública. Era incapaz de fazer mal a uma mosca, mas, quando esticava o olho ameaçador por cima da armação dos óculos, fazia encolher o aluno que não havia feito a lição de casa ou estudado para as sabatinas semanais. Como odiava a pretensão, insistia em ser chamado de Jeff em vez de doutor LaFage, mas era um dos poucos acadêmicos que demonstram o verdadeiro sentido do título honorífico e do significado da palavra “ensinar”. Portanto, para mim, ele continua sendo o dr. LaFage.
Durante o semestre do outono de 1983, o dr. LaFage nos revelou os modos dos insetos: as maravilhas da territorialidade, as características da comunicação, as qualidades da socialização e as origens da agressão. Em geral ele usava cenários ecológicos e evolutivos imaginários para lançar uma série de perguntas socráticas que iriam suscitar em nós as respostas sobre as complexas origens do comportamento.
Comportamento, explicou o dr. LaFage, é uma função que revela como um animal percebe a si mesmo e o ambiente, quando limitado pela evolução e pela experiência. Insetos confiam muito no instinto, que lhes serve bem. Por exemplo, muitos insetos reagem a uma onda repentina de dióxido de carbono, uma indicação segura de que um mamífero está por perto. Para os mosquitos, esse gás funciona como uma campainha química a avisar que o jantar chegou. Mas um bafo de ar numa flor induz os tripses, diminutos insetos alados, a abandonar seu refúgio às pressas. Como um enxame de vírgulas vivas, eles evacuam a área em vez de arriscar serem consumidos por um pesado animal que pasta inconsciente da presença deles. Do mesmo modo, muitos insetos sociais como as abelhas e formigas correm do ninho quando sentem a presença do dióxido de carbono. Só que se trata de um ataque, e não de uma retirada: os soldados se dispõem em formação para investir contra qualquer criatura que chegue suficientemente perto para gerar um alarme químico.
Para um homem com modos tão gentis, embora intensos, o doutor LaFage parecia saborear seus estudos do arsenal dos insetos. Essas criaturas têm bocas distintamente adaptadas para esmagar, desmembrar, cortar e furar. As estruturas mais extraordinárias são aquelas cuja função original foi cooptada para o ataque. Em colônias de formigas, abelhas e vespas apenas a rainha se reproduz; as outras fêmeas não utilizam o aparelho reprodutor. Nesta casta celibatária, estruturas para depositar ovos deram lugar a ferrões, e células que antes produziam secreções lubrificantes durante a produção dos ovos se tornaram glândulas produtoras de veneno. Órgãos uma vez usados para perpetuar a vida evoluíram para formar estruturas de matança.
Mas espécies sociais com capacidade de matar umas às outras também desenvolveram métodos sofisticados de comunicar relações de parentesco e submissão. Formigas, abelhas e cupins identificam companheiros de ninho por meio de sinais químicos. Somente os intrusos com odor estranho são rapidamente atacados e picados sem misericórdia. Entre os insetos não sociais, não há restrições à morte. Se um gafanhoto faminto se depara com um companheiro que trocou de pele recentemente, ele devorará a criatura indefesa.
O balanço da evolução, segundo o doutor LaFage, garantiu que o custo genético ou energético da violência era inevitavelmente compensado pelos benefícios potenciais que porventura produzisse. A ferocidade com que as abelhas defendem sua colmeia vem de um capricho genético que garante que todas as operárias sejam irmãs intimamente relacionadas, dividindo mais similaridades genéticas umas com as outras do que com a própria mãe. Como consequência, o desejo de morrer pelo coletivo garante uma produção continuada de irmãs e, desse modo, cópias genéticas exatas de si mesmas.
O doutor LaFage era um radical da bioeconomia. A moeda da evolução é o gene: quanto mais cópias houver de um indivíduo, mais rico ele será. Quando falava das próprias filhas, o tom afetuoso contradizia seu dogmatismo evolutivo, mas quando se referia a insetos mantinha uma objetividade científica rigorosa. Não admitia compaixão pela abelha operária que se eviscerava como resultado inevitável da picada para defender sua colônia. Essa criatura suicida estava simplesmente realizando uma aposta inconscientemente calculada com uma recompensa genética bem definida – se a rainha morresse, a fábrica biológica que produz mais irmãs seria destruída. Para a maioria das criaturas, apenas a própria vida importa, o que explica – pelo menos em parte – por que os predadores têm cerca de 10% de chance de garantir uma refeição quando atacam. Se o predador não se der bem, passa fome. Se a presa não se der bem, morre. O dr. LaFage recitava uma litania de esforços extremos e desesperados usados pelos insetos para escapar das garras de seus predadores: besouros que guincham ou sangram espontaneamente, mariposas que exibem asas posteriores com ocelos parecidos com olhos de corujas e mosquitos tipulídeos que sacrificam as patas enquanto ainda se contorcem. Quando o preço é a vida, seja física ou genética, a abordagem do “nada a perder” se torna viável.
Os grilacridídeos são extremamente difíceis de observar em seu hábitat natural. Passei horas no mato procurando essas criaturas com uma lanterna na cabeça, sob a tutela de um dos melhores entomologistas da Austrália. Mesmo com suas instruções, não consegui ver um único grilacridídeo na natureza. Mais recentemente, um estudante de pós-graduação da Austrália Ocidental conseguiu acompanhar indivíduos de duas espécies durante várias noites. Sua dissertação documentou os complexos comportamentos de retorno à área de origem desses insetos, incluindo sua capacidade de usar pontos pouco iluminados da paisagem como faróis de navegação. Todavia, ele não observou nenhum encontro entre indivíduos. Parece que os grilacridídeos são extremamente territoriais, tendo desenvolvido rudimentos de um sistema social primitivo que diminui o risco de conflitos por meio da aversão a indivíduos da própria espécie.
Enquanto os mais jovens se reúnem em pequenos grupos, supostamente para unir forças contra os predadores maiores, os grilacridídeos adultos vivem isolados, procurando a companhia de outros indivíduos apenas para acasalar. Os adultos solitários procuram alimentos em territórios escavados no árduo interior australiano. Eles exibem uma gama de hábitos alimentares, mas podem ser caracterizados como carniceiros e predadores oportunistas. As mandíbulas desses insetos são adaptadas para esmagar sementes e desmantelar exoesqueletos – incluindo o dos próprios parentes. A violência dessas criaturas reclusas é limitada apenas por sua capacidade física de infligir o mal. No laboratório, os grilacridídeos precisam ser alojados separadamente para evitar que se matem.
Parte da minha pesquisa de laboratório na Austrália envolveu a coleta da seda produzida pelos grilacridídeos para forrar suas tocas ou unir as folhas de seus ninhos. Na natureza, o odor da seda permite que um indivíduo encontre e mude seu ninho após uma noite buscando alimento. No laboratório, cada inseto recebia uma “tenda” feita de fichas de arquivo onde construía o ninho. Em 24 horas, um deles havia construído uma rede rudimentar de seda branca como a neve expelida das glândulas salivares; na segunda noite de trabalho, havia tecido um denso emaranhado de fios para impedir a entrada de predadores. Antes de coletar a seda para análise química, usei uma sonda de vidro fino para importunar o dono da tenda e fazê-lo abandonar o ninho, às vezes recorrendo a empurrões suaves para tirar os insetos recalcitrantes de suas casas. Em resposta à perturbação, um indivíduo bateu o abdômen no chão da tenda em uma demonstração ameaçadora de violência iminente. Quando tentei empurrar a criatura do seu ninho, o inseto esmagou a sonda entre as mandíbulas – o equivalente a quebrar um palito de fósforo.
Os confrontos em meu laboratório imitavam os encontros entre predador e presa. A estratégia inicial do inseto depoisde ser descoberto era se retirar parasua toca ou ninho. Apenas se a provocação continuasse ou se ele fosse enxotado de seu refúgio, sua estratégia mudava do recuo para o ataque. Algumas espécies de grilacridídeos tinham uma tolerância muito alta à agressão, recorrendo ao ataque apenas quando impulsionadas para o exterior. Outras mudavam rapidamente da retirada defensiva para a agressão descarada.
Uma vez em combate, os grilacridídeos insistiam no ataque com um abandono temerário. Para essas criaturas, não havia demonstração de agressão pouco entusiasmada, nem intensificação gradual de hostilidade. Além disso, pareciam completamente incapazes de atenuar a raiva em proporção ao tamanho do intruso e à probabilidade de que tal ferocidade fosse eficaz. Enquanto as espécies maiores eram capazes de tirar sangue da vítima rapidamente, as menores não conseguiam apertar um pedaço de pele entre as mandíbulas. Todavia, um indivíduo do tamanho de um grilo posava de modo ameaçador e batia em qualquer objeto a seu alcance, mesmo que tivesse mil vezes o tamanho do próprio inseto. Quando um grilacridídeo grande se tornava agressivo, o único modo de lidar com a situação era colocar sua gaiola na geladeira por quinze minutos. Com o inseto imobilizado pelo frio, eu podia trocá-lo de gaiola.
Depois de meses de trabalho com os grilacridídeos, compreendi um pouco o que significa ser essa criatura. Considerei esses insetos maravilhas da evolução – exemplares do estado selvagem e da ferocidade –, mas também como professores de duras lições de vida. Um fenômeno com que me deparava diariamente era o desejo de viver deles se tornando uma disposição para matar. Não saberia dizer se agiria diferente se eu fosse um grilacridídeo. Poderia afirmar, contudo, que lamentava o fato de eles serem incapazes de se habituar a mim. O medo que tinham tornou mais difícil a minha vida e a deles.
Certa manhã, pouco antes de eu ir embora da Austrália, feri um dos maiores insetos do grupo. A criatura tinha feito uma demonstração muito agressiva, simultaneamente abrindo as asas e cerrando as mandíbulas. Durante esse frenesi, ele conseguiu subir na extremidade da gaiola para me atacar. Fechei a tampa rápido demais, e sem querer prendi o inseto, que ficou se debatendo. A força da tampa rompeu a membrana abdominal dele. O inseto caiu para dentro da gaiola e, quando sumi atrás da tampa, ele avaliou a situação com calma. Um glóbulo de gordura rajada de amarelo escorreu do ferimento aberto. Ele então curvou a cabeça em direção à víscera que vazava e começou a consumir as próprias entranhas.
Meu coração ficou partido – e com isso descobri que havia violado os ditames da objetividade científica. Eu amava esses animais selvagens, não com a mesma afeição condicional que sentimos por seres que retribuem o nosso afeto, mas com uma compaixão profunda, sem dó. Em última instância, dividimos uma realidade definidora: a capacidade de “relacionalidade” viva – para lutar quando sentimos medo, atacar com raiva e retorcer-nos em dor. Acreditei que por fim compreendi o que Walt Whitman queria dizer ao descrever os animais em Folhas de Relva: “Então eles me mostram seus laços familiares e eu os aceito/ Eles me trazem sinais de mim mesmo, exibidos com clareza em seus domínios.”
Enquanto o grilacridídeo se autocanibalizava, tentei racionalizar e espantar meu sentimento de horror solidário. Os fisiologistas sustentam que, enquanto os insetos sentem dor sob pressão aguda, uma vez que a parede do corpo é rompida parece não haver sensibilidade persistente. O dr. LaFage costumava nos advertir para que evitássemos a subjetividade – nem todos os organismos processam as sensações da mesma maneira. O mundo deles não é o nosso. Dor, dizia ele, é uma experiência cognitiva, não uma mera sensação. Não podemos saber o que outro animal vivencia. O dr. LaFage não aceitava nenhuma tendência antropomórfica latente nos alunos. Meu sentimento sobre o que eu havia feito ao grilacridídeo mutilado não refletia minha formação como pesquisador, tampouco refletia a provável reação do inseto caso trocássemos de lugar. Em vez disso, minha reação foi essencialmente a de um cientista poético, um ser humano tomado pela compaixão. Como criaturas emotivas, não podemos deixar de imaginar a dor de outros seres sensíveis.
Um ano depois de eu ter deixado a Louisiana e ido para o Wyoming, com o título de PhD recém-obtido, o dr. LaFage recebeu a visita de uma cientista e a levou para passear no Bairro Francês de Nova Orleans. Ele acompanhava a colega quando um ladrão agarrou-lhe a bolsa. Ela ficou enrolada na alça e o dr. LaFage pediu: “Não machuque a moça, pode ficar com a bolsa.” Posso imaginá-lo fazendo isso, com a confiança tranquila de um homem que conhece a natureza da violência. Imaginei inclusive o cenário: a rua suja de dejetos de bares e discotecas contrastando com as elegantes grades de ferro das sacadas; o calor sufocante pairando frouxo no ar; a mistura de cheiros de umidade – do suor escorrendo nas costas, da água fedorenta acumulada nas calhas e da urina dos becos. O que eu não podia imaginar foi o momento seguinte: o garoto sacou uma arma e atirou à queima-roupa.
A família e os amigos do dr. LaFage se esforçaram para entender esse ato aparentemente sem sentido. Não tive acesso especial à mente do criminoso, que era, eu suponho, como tantos jovens de nosso país: sem esperança, pobres e agressivos. Mas meu professor tinha fornecido a seus alunos meios de entender o sentido do comportamento. Havia nos oferecido maneiras de ver a vida e as condições de outros seres, para que talvez começássemos a entender a agressão deles. Nós havíamos aprendido que a violência é a estratégia que serve como base para a maioria dos encontros entre as espécies. Essa tendência perde força apenas quando há uma adaptação mais bem-sucedida para se defender ou adquirir recursos vitais.
Para a maioria dos seres humanos, os itens essenciais da vida – comida, abrigo, roupa e autoestima – podem ser adquiridos por meios não violentos. Não tenho dúvida de que aquele homem gentil e generoso teria dado qualquer bem material que o assaltante exigisse. Mas o que aquele jovem furioso e assustado precisava não poderia ser oferecido sob a mira de uma arma, num momento efêmero, numa calçada de Nova Orleans. Pois os itens essenciais da vida humana não se limitam à necessidade do corpo. E assaltos nem sempre dizem respeito a ganhos materiais. A evolução cultural dos seres humanos produziu regras complexas para conter a violência instintiva, mas essas normas devem ser aprendidas dentro de uma rede social viável. Mesmo assim, o desenvolvimento da tecnologia humana deixou para trás as adaptações comportamentais. Nossas armas nos permitem sacar um revólver e atirar muito antes de outro ser humano ser capaz de se submeter à nossa ira ou implorar misericórdia.
Os ensinamentos do dr. LaFage mostraram-se ao mesmo tempo essencialmente importantes e definitivamente inadequados à compreensão da gênese da violência humana. Não posso avaliar o desespero de um adolescente da cidade; não tenho uma fórmula que possa prever quando o medo do meu próximo se transforma em ira. Nem posso inserir em um gráfico a afeição de um aluno por um mentor gentil e exigente. No fim, é claro, o dr. LaFage estava certo: não podemos sentir de verdade a dor alheia. Talvez seja bom que não possamos dividir completamente a angústia dos animais aterrorizados, dos homens moribundos, das viúvas em luto, das crianças órfãs ou dos jovens desalmados. Às vezes nossa própria tristeza é o máximo que podemos suportar.