Eliot e Valerie, morta no mês passado: a posteridade revelou um poeta racista, mas cujos versos de amor continuaram bem além da prosa FOTO: ROMANO CAGNONI_HULTON ARCHIVE_GETTY IMAGES
A ninfa partiu
A morte de Valerie e o destino da poesia de T.S. Eliot
Mario Sergio Conti | Edição 75, Dezembro 2012
T.S. Eliot era um homem de feições emaciadas e olhos baços, apesar de translúcidos como os de um felino. Ao chegar à Inglaterra no início do século passado, vindo de Harvard para concluir o doutorado de filosofia, adotou uma pose de respeitabilidade que jamais abandonou. Parecia bem mais velho do que um jovem de 27 anos. Falava pouco e com lentidão exasperante, mal abrindo os lábios. Raramente dizia o que de fato pensava. Era tido nos meios literários de Londres como o pior dos chatos, o monótono.
Com a publicação de um punhado de poemas em pequenas revistas de vanguarda, porém, foi logo percebido como um revolucionário. A debacle europeia na Primeira Guerra Mundial, a atomização de indivíduos massificados e as ruínas precoces da industrialização encontraram forma literária nos seus versos. Fragmentária e eloquente, sua primeira poesia mimetizava vozes perdidas na multidão anônima, e às contrapunha a cacos da tradição literária. A Terra Gasta, de 1922, o tornou o poeta mais conhecido na Inglaterra desde Byron.
A revolução literária operada por Eliot – o modernismo – não teve desdobramento na sua imagem pública. Ele trabalhou anos a fio num banco, o Lloyds. Converteu-se à Igreja Anglicana e ia à missa todas as manhãs. Vestia colete, terno, gravata e chapéu coco, colecionava guarda-chuvas e gostava de discorrer sobre diferentes tipos de chá. Foi o primeiro editor da Faber & Faber e nela imprimiu o seu estilo. Era pomposo, tímido, autocrático, remoto. Foi chamado de “o papa de Russell Square”, a praça onde ficava a editora. Sacerdotal e solene, ali ele pontificava sobre o estado geral das letras, a seu ver decadente desde Dante, no século XIII.
No coração de seu credo literário jazia uma impessoalidade frígida. A poesia para ele não era uma liberação da emoção, mas uma fuga da emoção; não era a expressão da personalidade, e sim uma fuga da personalidade. “Quanto mais perfeito for o artista”, escreveu, “mais inteiramente estarão nele separados o homem que sofre da mente que cria.”
Ou seja, a poesia de Eliot não tinha nada a ver com a vida de Eliot. Seus poemas eram garras arruinadas arranhando o fundo de mares silenciosos, mas que ninguém viesse perguntar como era o bicho que perscrutava as profundezas.
Ele ganhou o Nobel de Literatura em 1948 e sua fama atingiu os píncaros. Onze anos depois, recebeu um título honorário na Itália, e só vendo as fotos para crer: foi recebido como uma celebridade, com estudantes carregando cartazes onde estava escrito “Viva Eliot”. Envolto numa aura de adulação, morreu em 1965 na condição de monumento marmóreo. Não era apenas um nome maior no cânone literário. Era ele que decidia quem deveria entrar ou ficar fora do cânone.
A frieza lhe ditou os termos da carta na qual estabeleceu três pontos inegociáveis quanto à publicação de seus poemas: eles não poderiam ser ilustrados ou musicados, nem deveriam ter notas de rodapé, exceto as dele. Desenhos, estudos e música, argumentou, interferiam na comunicação direta do poeta com os leitores. Quanto a suas cartas, manuscritos, versos inéditos e biografias – nem pensar na sua publicação.
Ocorre que Eliot não era Homero, o nome de um grego do qual não se sabe nada e cuja própria existência é posta em dúvida. O autor de A Terra Gasta era um poeta de carne, osso e nervos que ia para a Faber de ônibus e descia no próximo ponto ao ser abordado por um desconhecido.
Sua viúva, née Valerie Esmé Fletcher, morreu no mês passado. Ela era fã de carteirinha de Eliot desde os 14 anos, a ponto de se fixar como objetivo trabalhar com o poeta. Conseguiu, aos 23, tornar-se sua secretária na Faber, onde se tratavam por “senhor” e “senhorita”. Até que, depois de quase oito anos de trabalho lado a lado, para espanto dos que os conheciam e inclusive dela, Eliot a pediu em casamento. A secretária tinha 30 anos; seu chefe, 68.
Valerie ficou abismada com a proibição do marido em publicar suas cartas e buscou demovê-lo. Eliot negaceou, mas acabou consentindo, desde que a mulher fosse a sua editora e executora literária. Com a morte dele vieram os manuscritos, cartas e biografias. E Eliot nunca mais foi o mesmo.
Não que Valerie tenha sido indiscreta. Ela manteve biógrafos longe do espólio do marido. Mas o seu meticuloso trabalho de edição dos papéis de Eliot caiu num ambiente intelectual diverso daquele em que o poeta viveu. Nele se confundem reavaliações literárias e biografismo escandaloso, a ruína do modernismo e a mixórdia pós-moderna, a estreiteza política com melodramas freudianos e tecnicalidades asfixiantes da crítica literária.
Valerie publicou os manuscritos de A Terra Gasta e ficou mais do que evidente que, sem a edição massiva feita por Ezra Pound, o poema que definiu o modernismo não existiria. Também fez com que viessem à luz os seus poemas inéditos – vagidos adolescentes inacreditavelmente obscenos, imundos em seu antissemitismo e seu preconceito contra negros. Permitiu que Andrew Lloyd Webber musicasse alguns de seus poemas de ocasião e criasse Cats, que rendeu mais de dois bilhões de dólares em bilheterias mundo afora. Eliot é hoje mais conhecido pelo musical do que pela dramaturgia em versos que tentou em vão ressuscitar.
Da junção das boas intenções de Valerie com as mudanças das últimas décadas nasceu um novo Eliot. Ele não é mais um Dante redivivo, mas um escritor preconceituoso e arrogante, brutal, manipulativo e egocêntrico. O homem que sofria e a mente que criava ficaram inextricavelmente associados.
A associação vicejou na vasta terra árida da vida amorosa de Eliot. Ele se casou na juventude, ao que parece ainda virgem, com Vivienne Haigh-Wood. Inglesa, ela vinha de uma família rica e era bem relacionada, e Eliot não queria ceder às pressões da família e voltar aos Estados Unidos. Mas ela era também doente e instável emocionalmente, padecendo de insônia, colite, neuralgia e enxaqueca crônica. Eliot não aguentou o tranco: Virginia Woolf dizia que ele usava pó de arroz verde e pintava os lábios para realçar os traços de mártir.
O poeta aproveitou uma longa viagem sozinho para entrar com um pedido de divórcio. De volta a Londres, caiu na clandestinidade para evitar o assédio da mulher: fez voto de castidade e foi morar com padres anglicanos. À noite, rezava o rosário sozinho em voz alta. Sem que Eliot jamais a procurasse, sua mulher morreu depois de nove anos num asilo. Mas o próprio poeta reconheceu, numa nota privada publicada por Valerie, que A Terra Gasta foi produto de seu casamento com Vivienne.
Ele aprofundou então sua ligação com Emily Hale, uma professora americana da qual era íntimo desde a adolescência. Ela tentou se casar com Eliot quando Vivienne morreu, mas ele respondeu que lhe era impossível viver com uma mulher. Emily teve uma crise nervosa quando soube do casamento dele com Valerie, e Eliot se afastou da amiga de cinquenta anos. (Ela doou mais de mil cartas que o poeta lhe escreveu à Universidade Princeton, que só poderá divulgá-las em 2019).
Eliot tinha outra amiga, Mary Trevelyan. Tomavam chá e iam à missa juntos. Oito dias antes de casar com Valerie, Eliot almoçou durante horas com Mary, e não lhe falou nada. Avisou-a na véspera da cerimônia. Como ela protestasse, o poeta rompeu a amizade de duas décadas. Mary nunca se recuperou.
Valerie e o marido tiveram uma vida pacata e harmônica. Nas raras vezes em que falou da vida conjugal, ela disse que Eliot era “normal” e “obviamente” não morreria sem conseguir um casamento feliz. Viajavam de férias para o Caribe, iam a peças, escutavam música em casa. Todos os domingos ele lhe dava de presente pequenos poemas. Publicou dois deles (ou duas versões do mesmo poema, traduzidos em seguida) quando ainda vivia. Nem de longe estão à altura de “A canção de amor de J. Alfred Prufrock”. Mas expressam algo do amor de Eliot por Valerie que está além da prosa.
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